segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Marginal
terça-feira, 18 de agosto de 2020
Um homem...
... que é um vigoroso animal insatisfeito, que pressente que a consciência dos outros homens está adormecida, reclusa numa passividade que não lhes permite, de momento, intentar ideias claras sobre a sua própria singularidade e identidade. Um homem que sabe que todo o ser humano é uma criatura única, irrepetivel e preciosa, com crescente predisposição para o espanto, mas que, todavia, nem sequer resolve a sua própria individualidade, vai agora atentar na insidiosa escalada populista que floresce a céu aberto... é um homem perigoso. Não é?
sábado, 15 de agosto de 2020
Deusa
Veja-o subir a rua com o pescoço resoluto, a cabeça erguida, embora o tronco ligeiramente curvado; o movimento dos braços dessincronizado, as mãos abertas, à defesa. Vejo-a e parece uma deusa a subir a calçada. Mas, repare-se, uma deusa também altiva e sobranceira, talvez irada com o que em seu redor ocorre, a ira encoberta porém, o olhar apertado, os músculos faciais tensos e compridos, a boca desdenhosa, passos firmes cujo ruído, o silêncio circundante logo absorve. Uma deusa mas occasionatus. Limitada como eu, claro.
terça-feira, 11 de agosto de 2020
Palomar
O Senhor Impontual andou pelo mundo ou por aquilo que se considera ser o mundo, e sabe não haver qualquer tipo de engano: tudo é um curso ininterrupto de sentimentos e de acções consequenciais. O lugar onde o Senhor Impontual se encontra agora - em casa - constituiu alguma excepção, mas não deixa de agudizar inquietações. Como é possível nascermos, vivermos (e morrermos) num mundo assim feito, frágil e instável? Mas nada existe de estoicamente definitivo; obscuros clarões de uma ambígua esperança surgem em grandes paradas citadinas, em ajuntamentos de rua onde se fala de um Estado empenhado na sanidade e nas liberdades individuais dos cidadãos, de estabilidade no trabalho e de tranquilidade nas consciências, quando na realidade o que se vê é um desfile de pessoas num movimento pendular entre a fuga e a nostalgia, como se cada um e todos tivessem o corpo e a alma desgovernados.
segunda-feira, 10 de agosto de 2020
GPS (VIII) - A caminho de casa
Beber um copo onde ninguém conhece ninguém, mas onde todos examinam as estaturas com muda apreensão e indiscreta curiosidade. Retomar a marcha. Avançar pela estreita faixa entre as esplanadas e o rio, aproveitar a sombra proporcionada pela correnteza de prédios antigos, palacetes e velhos solares. Comer melancia e melão. Observar as vendedoras ambulantes ajoujadas sob o peso das bancas amovíveis. Marginal acima, passo corrido, tronco dançante, cada uma delas possuindo uma maneira de andar, seios e nádegas soltos, voluptuosas. Às vezes param e miram com velada tristeza as vielas outrora pejadas de gente. Observar as subtis rotações das coisas, os relativos destinos,a reverberação do sol nos vidros das janelas, o voejar de pombos em bandos, os murmúrios imperceptíveis, o amargo da dúvida, a explosão das certezas, o chiar dos eléctricos nos carris, os pregões, tudo para esvaziar a terrível sensação gelada de um mundo adormecido, aquiescente.
quinta-feira, 6 de agosto de 2020
GPS (VII)
Os dias rumam, consomem-se, remontam e impõem a força indistinta do que tem de ser. Os dias correm, cobertos de demora, de memória, e a sua aparente harmonia parece nascer de um pudor secretamente doloroso e melancólico. J&B, chamemos-lhe assim, meus ocasionais companheiros de viagem, dissipam suavemente os dias, desperdiçando as horas, o tempo, num árido afastamento um do outro. E nenhum deles faz um mínimo esforço para derrubar essa parede de indiferença. Lêem jornais e livros, trocam frases curtas, quase monossílabos, e essas relações concisas exprimem não só um orgulho acossado mas também um desafio escondido. De certa forma, sabem como utilizar o silêncio ou os frágeis factos de somenos para se irritar surdamente um ao outro. São pessoas que têm a ver com o mundo, com as estradas, com os rios - esses caminhos líquidos. E são igualmente pessoas que têm a ver com uma espécie compacta de solidão, a solidão dos diferentes. Talvez seja isso que os torna indiferentes.
terça-feira, 4 de agosto de 2020
GPS (VI)
Agradarmo-nos de uma sombria calma, deixarmo-nos envolver pela plácida sucessão dos dias que ninguém atravessa, que não dá qualquer sentido a cada encontro, que nos faz esquecer o gosto das antecipações, que nos liberta de promessas, que nos impele a mansas displicências, que nos envia os sentimentos da indolência e da letargia, deixar de lado os deveres que a consciência - esse território pantanoso - nos recomenda, não é viver na solidão. É gostar dela para fazer algumas coisas. É, por vezes, lutar contra moinhos de vento.
sábado, 1 de agosto de 2020
sexta-feira, 31 de julho de 2020
GPS (IV)
Gorbea Parque Natural
O problema dos homens é que não lhes podemos oferecer sempre a emoção da caça, aquelas cócegas no estômago e a certeza-incerteza de saberem se a presa será ou não sua. Isso só pode acontecer uma vez com cada mulher. E eu, naturalmente, já joguei esse torneio.
Isto assim dito em basco, garanto eu, tem exactamente o mesmo impacto que dito em russo. Talvez soe de outra forma em português. Mas já bebi uma dose generosa de txakoli. Aquilo é fraquinho, mas nunca se sabe...
terça-feira, 28 de julho de 2020
GPS (III)
Voltamos à grande cidade, na tarde. Alex conduziu o automóvel com a desenvoltura de um rapaz. Pelo caminho foi observando o voo baixo das gaivotas novas. O seu belo rosto enrugado reflecte imensa serenidade. Cumprimentou pessoas pelo caminho, na tarde. Agora, já noite cerrada, à mesa da sua sala, perante o meu entusiasmo com a região, conta-me que a beleza tem o poder de opor resistência à agressão - é certo, mas tempos houve em que não havia dias incomparáveis, requebrados, mansos e absolutamente ternos. Diz-me que aqui todos os dias possuíam no seu bojo uma crueldade latente que frequentemente explodia. Era um reino de silêncio, mas de frias cumplicidades. Um reino de alaridos calados e também de mudas catástrofes. Aqui as pessoas não se preparavam para a felicidade. Brindamos, com patxaran, a longos anos de vida. Dos quais, trinta, passados aqui.
GPS (II)
É uma manhã de fim de Julho e todas as gaivotas levantaram voo para deixar a praia limpa como um lençol. Ao fundo, no mar, cresce todo o ruido cinzento do mundo. À medida que o dia vai transcorrendo, diminui a expectativa e cresce o silêncio, até que a expectativa se esgoste na totaliidade.
segunda-feira, 20 de julho de 2020
GPS
O Senhor Impontual está a fazer uma viagem grande ao volante do seu automóvel. São quilómetros e quilómetros. É incrível como todas as estradas acabam noutras estradas. E essas estradas acabam em aldeias, vilas e cidades. De lá, sai-se para outras estradas, que vão dar a outros países, onde as estradas recomeçam. Em todos os lugares onde o Senhor Impontual tem parado, as pessoas parecem apaziguadas e felizes. Vozes ocultas de comando devem ordenar-lhes que amem em exclusivo, que renunciem ao medo porque o medo torna tudo inseguro. Mas, quando as pessoas se livram de um medo em particular, procuram encontrar a segurança criando outros medos, sem deles darem conta. É assim em todo o lado onde vá dar uma estrada. Os homens nunca sabem muito bem o que querem e muito menos onde vão parar. Os homens* são passageiros de passos perdidos.
O carro de alta cilindrada do Senhor Impontual tem GPS, mas está desligado.
*(Quem diz os homens diz as mulheres, claro está.)
quarta-feira, 15 de julho de 2020
Sessão da Meia-Noite
"Laranja Mecânica" - Stanley Kubrick, 1971
Com Maria (sem rosto) que, por instinto, gosta de olhares fragmentados e consequentes leituras dissonantes.
terça-feira, 14 de julho de 2020
Memento
Observo o interlocutor e sei que tudo aquilo que diz já ocorreu há muito tempo. Eu, como ele, sempre alimentei uma espantosa faculdade de esquecimento. Ambos tomamos notas avulsas para resguardar o passado e alimentar a memória futura.
sábado, 11 de julho de 2020
Palomar
Calções às riscas, camisa de linho branca totalmente desabotoada, cabelo puxado para trás, óculos aviator encaixados no nariz, o Senhor Impontual desliza pelo areal como uma pena. A água salgada, fria, desfaz-se a seus pés num vai-e-vem que nasce e morre na areia saibrosa. O Senhor Impontual vai andando e vai pensado, como é seu timbre: a maturidade de um homem está directamente ligada à perda da sua inocência; à desilusão, ao desencanto. Muda-se-lhe tudo: a maneira de olhar e de examinar as coisas, que se tornam mais distantes; os movimentos mais pausados e calculados; a própria voz que se torna mais grave, menos cristalina e menos feliz. O Senhor Impontual não sabe o que pensar destes desfiles de jovens, desta violência, deste desvario pela captura do momento perfeito, fugaz e inverosímil. Desta gente que não entende que a felicidade e a liberdade são coisas inseguras e instáveis e por isso mesmo belas. Que têm de ser vividas e não apenas fotografadas e difundidas.
Lançam-se num mundo e num tempo hostis e insociaveis - submetem-se a essa domesticação; ignorantes, afáveis e disciplinados. Longe de imaginar que, logo logo, tudo será nocturno e reiteradamente silencioso. As bandeiras penderão murchas, na noite e no silêncio. Logo logo haverá uma parte deles que anda mais devagar.
Sabem agora um pouco de tudo e muito de nada. Saberão mais à frente, sobretudo, que os homens não suportam muita realidade.
quarta-feira, 8 de julho de 2020
Banda sonora
A noite está tropical. Caminho em passo lento. Da rua oiço a voz de um violino. "Pas de deux", Tchaikovsky. A voz do violino sai de uma janela aberta. A janela aberta pertence a um prédio de estilo colonial. Mãos delicadas removem as cortinas e uns olhos brilhantes de um rosto esbatido de obscuridade sobrepõem-se à escuridão por escassos segundos. A música e o prédio de estilo colonial harmonizam-se como um todo perfeito, apenas interrompido por nova e repentina aparição dos olhos brilhantes - um ser imponderável, uma imagem somente imaginada.
A fantasia nunca foi ordenada, concisa e exacta, mas tem sempre uma banda sonora. Ou poderá um homem apaixonar-se pela voz de um violino?
segunda-feira, 6 de julho de 2020
sexta-feira, 3 de julho de 2020
Quarta fase de desconfinamento
Nem sabia muito bem porque aceitara o convite. Na verdade, admitiu, fora para mitigar a intensidade do desejo que sentia por ela. Toda a noite enquanto fazia conversa de circunstância, não parara de pensar em leva-la para a cama e fode-la com força e poucas palavras. O desejo, adormecido até aí, tomara-o de novo de assalto com rudeza. Enquanto ela falava, estivera sentado com um pau inquieto dentro das calças, a imaginar que lho punha na boca, que lhe beliscava os mamilos, que lhe mordia o lóbulo da orelha, que a encostava à parede, que lhe enfiava os dedos, que se servia daquela carne de todas as maneiras e feitios durante toda a noite, até se libertar daquela estranha atracção, e depois refugiar-se-ia novamente no confortável vazio que até então não tivera vontade alguma de quebrar.
quarta-feira, 1 de julho de 2020
Palomar
terça-feira, 23 de junho de 2020
Fadário
Estou sentado junto ao que resta da igreja matriz, de cujo interior, segundo consta, saíam em tempos cânticos hinários, entoados em idiomas bíblicos. Gaivotas circulam baixo e, por vezes, cautelosamente, poisam, em bandos estridentes. O tempo flui e nascem trevas que logo se dissipam. Ou foram apenas brumas procedentes das marés. Agora a largos intervalos tombam gotas nos telhados de zinco gasto, provocando tristes ressonâncias. Mas não chove. Ou, se chove, de onde cai a chuva? Do céu não é, esse está aberto numa claridade primitiva, os aromas são subtis mas profundos. O marulhar da água é ameno. Os raios de sol são paralelos ao atingirem o mar. Aliás tudo no Universo é paralelo. Contemplo o mar, como se o mar fosse uma estrada ou um ligeiro presságio mordido e rendilhado pelo bater das ondas.
Ocorre-me que é isto que nos impede de morrer: andarmos surpreendidos desde que começou o fadário. Tenho muita sorte com a minha profissão que, entre outras agruras, me permite construir destinos. Ou reconstruir, vá lá.
Mas... e o que é o destino?
- Talvez seja isto mesmo: construir para permitir a destruição.
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