segunda-feira, 21 de março de 2022

Equinócio

Espero que ainda te recordes de como, sob as minhas caricias, o teu corpo se enchia de botões viçosos como antes de florirem. Como gostei de colher as tuas flores, deixando-me embriagar com os aromas que elas exalavam. Alimentava-me do teu suco, mas acabaste por deixar-me em troca da salvação da tua alma. Mas que traição, mas que traição! Não, eu não creio num Criador que exige estes sacrifícios humanos. Não creio num Criador que destrói a vida de um homem para salvar a alma de uma estação. Espero que ainda te recordes. Vem, vem. Preciso de ti.

Díptico


sábado, 19 de março de 2022

A Oeste, o preço do petróleo

Ameaça agora o mundo uma época implacável. Forjamo-la nós, todos, que já somos sua vitima. Que importa que a Rússia seja o martelo e a Ucrânia a bigorna? O importante é que reine a resistência, não a servil rendição do desamparado. Se a vitória, a justiça e a felicidade não forem para a Ucrânia, que seja para outras nações. Que o céu exista, mesmo que o nosso lugar seja irremediavelmente o inferno. 

segunda-feira, 7 de março de 2022

A guerra é uma emoção desgraçada

Bem; basta de desgraça por esta noite. Que triste ocupação esta a de assistir pela televisão a tais coisas! A guerra é uma emoção desgraçada. No entanto, ir acompanhando, parece que me restitui alguma tranquilidade à consciência. A desgraça é, sem dúvida, uma lei sagrada; basta fazer a mais ligeira aplicação dessa lei para experimentar alguma serenidade - temos sorte, não é connosco, estamos vivos. O homem, embora não goste da desgraça, não pode, contudo, desprezar os seus infalíveis desígnios; aproveita-se dela todos os dias; no entanto, olha-a sempre com a mesma repugnância. Parece-me que há nisto uma contradição singular e misteriosa, como se sentíssemos na desgraça, ao mesmo tempo, o castigo e o sinal divino e paternal do juiz.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

A Oeste nada de novo

Quase tão estupido como a própria guerra em si, é o resto do mundo começar a convencer-se que a Ucrânia pode resistir aos russos e que assim sendo não é preciso fazer nada, evitando-se desse modo a sempre chata quezília com o tresloucado papão russo. Que, como bem se sabe, toma Kiev quando quiser e como quiser. 

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Palomar

O Senhor Impontual saiu esta manhã bem cedo em direcção ao mar. Perscrutar o horizonte marinho é um dos passatempos preferidos do Senhor Impontual. Só se lhe compara um outro passatempo que o Senhor Impontual teve em tempos que era, em noites de constelação, tentar acasalar as estrelas. Às vezes dá a sensação de que a lascívia é uma espécie de veneno que corroí a vida. Contudo, a partir do momento em que se compreende que essa mesma vida, pela sua natureza, não dura para sempre e não pode esperar, o veneno passa de uma tentação perigosa à promessa do renascer. Porque não, pois, erguer o copo e brindar? Eis o pensamento pérfido do Senhor Impontual para este Sábado em que o sol veio embrulhado num manto plúmbeo.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Humor Tétrico

Depois de dois anos consecutivos passados no desconforto do entreportas a contemplar com o olhar triste o vazio do mundo, escutando estupidamente os murmúrios e os ruídos monótonos da rua e sentindo-me mais só no meio de um universo parado, mais abandonado e mais perto do desespero que o naufrago que tirita de frio em pleno oceano sobre a frágil tábua a que se agarrou, ainda havia Putin!

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Da Rússia

"Toda a manhã de hoje li jornais. Na Espanha estão acontecendo coisas estranhas. Nem consegui analisa-las bem. Escreve-se que o trono está vago e os graúdos se encontram em grande embaraço quanto à eleição de um sucessor; daí provem grande indignação. Acho extremamente esquisito. Como pode um trono estar vago?

O dia de hoje é um dia de grande triunfo! A Espanha já tem rei. Encontraram-no. Esse rei sou eu. Foi só hoje que eu descobri isso. Confesso, foi como se de repente um raio me tivesse iluminado. Não entendo como pude pensar e imaginar que sou um conselheiro titular. Como foi que esse pensamento louco pode entrar na minha cabeça? Que bom que na época ninguém pensou em me colocar no hospício."

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Devaneio Excessivo Mal Adaptado

Quantas e quantas vezes a memória e a imaginação andam de mãos dadas. Quantas e quantas vezes competem entre si. A memória a apresentar-se real e sólida na medida do possível. A imaginação a bater as asas. A memória a inclinar-se para o conhecido, a imaginação a voar em direcção ao desconhecido. A memória a inspirar-me prazer e paz. A imaginação a fazer-me andar de um lado para o outro acabando por me enfraquecer.
Um dia, mais tarde, não precisa de ser já, ainda hei-de aprender a viver exclusivamente pela memória.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O Homem

Nunca se soube, ou se soube ninguém o disse, o que foi feito do Homem. Alguns supõem que conseguiu confundir-se com a multidão que saiu para as ruas no dia seguinte, como se nada de grave tivesse acontecido na noite anterior. Durante um tempo relativamente breve especulou-se de que ainda estivesse entre nós, escondido nalgum recanto do Universo, mas em breve a cidade retomou o seu pulso normal e enormes cartazes publicitários cobriram as ruas para promover as novidades de Primavera. O Jardim Zoológico abriu as suas portas ao som da banda filarmónica; outros animais raros, raríssimos, foram expostos nas jaulas vagas. Também as prisões voltaram a encher-se. Mendigos e vagabundos encontraram refugio por baixo dos arcos das pontes e envolveram-se à pancada com os zombis e os loucos que de noite pretenderam invadir-lhes a propriedade. Dos espigões do cais, os barcos de cruzeiro partiram em busca de novas aventuras. Dezenas de banhistas gozaram o sol nas areias das praias. E as fabulas, as fábulas de sempre, voltaram a ser contadas - mas o homem, mais uma vez, esqueceu-se do homem.  

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Kamasutra - posição para o dia dos namorados (cara ou coroa)

Os solitários sabem em carne viva que a imposição de uma tarefa tão simples como passar doze horas a esfregar uns sapatos reluzentes, ou doze minutos a aparar o bigode, demonstra, se duvidas houvesse, que a fome de companhia ou a sede de solidão se transformam facilmente em angustias físicas porque o seu alivio nunca depende do esfomeado ou do sedento mas de outro, de alguém, de um semelhante que ofereça um bocado de amizade ou um gole de carinho. O trânsito por este mundo é uma moeda ao ar, um milagre ou uma ciência viva, um tédio ou uma aventura, uma derrota ou uma vitória, uma sorte ou uma maldição, um calvário ou um festim, um inferno ou um paraíso, mas quer a moeda caia cara ou coroa, a outra face será sempre a melhor das surpresas.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Anafilaxia

Inclinou-se sobre aqueles dedos tépidos subindo até ao pulso com uma caricia imprudente que lhe despertou nos olhos uma surpresa, quase uma réstia de alarme.
-- Nunca imaginei que se pudesse seduzir uma mulher só a tocar-lhe na mão, disse-lhe umas horas mais tarde, já nos braços dele, enquanto o sol da tarde anormalmente quente de Inverno entrava obliquo naqueles aposentos soturnos.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Dia de reflexão

O Senhor Impontual não sabe se há-de cumprir o dever de ir votar ou cumprir o dever de ficar em casa.
De qualquer dos modos o Senhor Impontual cumprirá com a sua obrigação cívica.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Fiodor


Fiodor não entende que com o tempo, ou melhor, com o passar do tempo, e já lá vão três actos eleitorais, as pessoas - zangadas e frustradas que estão, e têm boas razões para isso - não compreendam que a lucidez será sempre uma arma superior ao descontentamento transviado, a tolerância e a ponderação mais úteis, mais ferozes que os gestos de raiva e desalento inadvertido, e se proponham protestar votar no Chega.

Pessoas, vós que sois gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes, não desperdiceis as vossas balas. Se quereis ridicularizar e flautear o sistema, parar o tempo, fazer um rewind civilizacional, voltar às pedras da calçada, tendes sempre o Vitorino Silva - um calceteiro profissional, um homem de cabeça limpa. É menos arriscado.

Zé Albino, Bala e Camões, fofosuras, comam mais fruta. Ou então, tomai um Melhoral. Não vos fará bem, mas também não vos fará mal. Venham brincar.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Intermezzo

O sol, a lua e as estrelas projectam a sua luz onde desejam, os navios não são aparelhos para permanecerem nos portos, nem as casas construídas para permanecerem trancadas. As metáforas sucedem-se em cadeia, tocando as suas buzinas como veículos todo-o-terreno num engarrafamento do centro da cidade. Um homem a queixar-se das limitações da liberdade é uma figura tão inepta!

O céu, frio, está coberto de um azul uniforme e a luz, difusa, faz os contornos das coisas parecerem em ebulição. Não sei se meta o cão de pêlo pardo no carro, ponha a Cavalleria Rusticana de Mascagni nas colunas de alta fidelidade e vá dar uma volta de mar ao fundo, ou se fique aqui embrenhado na "mulher mais bonita da cidade"? Já calcei as sapatilhas.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Insubordinação


A mãe mandou ir buscar o Tomás Nevinson, mas eu trouxe a mulher mais bonita da cidade.
Já está no corredor das almas perdidas.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Ordem de manutenção

Há quem argumente que o sentimento a que chamamos desejo não é necessariamente positivo, como o desejo de prazer, de amor, de mudança, de prosperidade, mas que podem considerar-se também desejos, embora negativos, os ciumes, o ódio, o medo. Assim, estes desejos, um por um, unidos ou em oposição, provocam a vivência. Os desejos das pessoas, de uma ou de outra índole, são o motor da actividade humana. E o motor não funciona sem estas duas forças motrizes em acção. Pois que se limpem os injectores, que se regule a tensão da mola.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Ano novo

Parece claro que o passado interfere sempre na vida das pessoas, quase sempre para o mal, mas não sem a sua participação directa. Tomada por uma miríade de pensamentos nefastos, ao ter de lidar com condições desfavoráveis desde tenra idade, qualquer mente se mostra receptiva a formas desconhecidas de apreender o mundo. 
No tempo em que ainda era solteiro, Frederico ocupava os dias com longas meditações filosóficas que o mergulhavam numa doce angustia e lhe davam a sensação de pairar sobre a pobre gente que o circundava. Prisioneiro das questiúnculas tacanhas e mesquinhas que lhe absorviam a vida do dia-a-dia, não havia manhã em que não o assaltassem as mesmas interrogações: "de onde venho eu? Que faço da minha existência? Porque estou vivo? Qual vai ser o meu destino?
Esta manhã as roupas de ambos enrodilharam-se em desordem aos pés da cama e os dois corpos pareciam repousar depois de um duro combate. Amélia tinha ainda na mão o sexo vigoroso e luzidio de Frederico, cujo braço repousava numa prega do peito mole e opulento da amante. Estampou-se-lhes nos rostos aquele ar apaziguado que as crianças exibem durante o sono.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Gloria in excelsis Deo

Em frente ao espelho ajustou o corpete, distendeu milimetricamente as meias pretas de cornucópias, calçou os scarpins igualmente pretos, sobiu a saia para três centímetros acima do nível do joelho, vestiu o capote de burel e deu um último retoque meticuloso no véu que lhe emoldurava o olhar. Logo logo atravessou a praça em passo de sessenta centímetros para ir assistir à missa do galo. Ao entrar na igreja procurou Gabriel Arcanjo com o olhar. Nele reservava a esperança de pôr fim aos dias sombrios, aplacar o espírito impetuoso que a consome. Do céu, profeta de todas as desgraças, caiu o foguetório. 

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Calendário do Advento

Tenho tudo para escrever este tempo anacrónico. As letras perfeitamente alinhadas, os dedos inclinados sobre as teclas, o silêncio nocturno das ruas, o silêncio da minha voz, a nostalgia humedecendo-me a boca, um calafrio na pele, a música invadindo-me o mais recôndito e profundo patamar do âmago. Mas, não. Não me quero implicado em contrariar minimamente esta efémera felicidade que o mundo teima, e bem, em querer viver por estes dias. Nem sequer do mundo que está aqui mesmo ao meu lado. A página continua em branco como que a iludir este tempo circular. Não há palavras para desenha-lo. Não há pernas para pisar o terreiro do romantismo desacreditado. Apenas umas palpitações electrizantes no corpo todo. Um ou outro soluço intermitente. Uma esperança imposta. Uma teimosia pacifica nos subterrâneos da alegria: dar e receber uns abraços, esse talento miraculoso. Erguer uns copos. Comer uma ou duas rabanadas das tias velhas.