quarta-feira, 13 de julho de 2022
Insónias em carvão
terça-feira, 5 de julho de 2022
Hendrick´s Neptunia
A cada inspiração, os seus mamilos pressionavam o fino tecido de algodão da camisa de dormir. Os seu lábios sorridentes brilhavam sobre o feixe de luz do candeeiro na mesa de cabeceira. Não havia dúvida. O meu coração ribombava como se estivesse preso numa armadilha. A minha coragem, porém, não conseguiu ir além do gesto de passar os dedos pelos meus próprio lábios. Secos. Foi então que ela abriu os olhos e o seu olhar caiu pesadamente na minha boca. O seu corpo, contrariamente ao meu, não parecia ocultar-se atrás dos pensamentos. Levantou-se e beijou-me os lábios. O gin tê-la-ia posto num estado onírico? Até aí ignorara que o horror e o deleite pudessem ser tão doces. Inclinou-se para trás e apagou a luz. Senti os braços dela puxarem-me para o seu peito e, depois, a respiração quente do seu suspiro queimou-me a testa. Por um instante imaginei outra coisa: não havia fogo algum, a casa não estava a arder. Pensei em correr para a janela para deixar entrar o ar marinho e lavar os meus pulmões. Porém quedei-me indolente e solicito nos seus braços até que o momento passasse e o sono se apoderasse de mim.
Quando voltei à realidade, descobri que a noite nos envolveu ainda mais, pousara a coxa dela, nua, em volta da minha cintura e colocara a minha coxa entre as suas pernas. Quais ramos de uma árvore, cada galho encontrara o seu caminho naturalmente. Embora a minha vergonha fosse poderosa, manteve-se afastada de mim. Aproximei-me e ela acompanhou-me no movimento. Deve ter sido uma noite nublada porque a luz amarela vinda do lado do mar fazia ricochete no céu e entrava pelo quarto dentro. Vi-lhe os olhos pestanejar na fraca luz sépia.
terça-feira, 28 de junho de 2022
Arquitectura da fuga
Há um ínfimo momento naquela música do Jorge Palma, “Quem és tu de novo", em que o desejo assume um novo contorno, ganha uma nova forma, um novo odor, uma nova voz e uma vida própria. Há um trecho de história que acontecesse ali naquele instante, naquela fracção de segundo e que eu sei perfeitamente qual é porque apanho-o num voo planado, capto-o num movimento pendular e porque dele me fui escapando numa estúpida, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de amarga e doce saudade.
quarta-feira, 22 de junho de 2022
Fly into the sun
A sua pele vibrou ao contacto do primeiro raio de sol, que foi deslizando pelo pescoço abaixo, que lhe contornou um mamilo e depois outro, disparando descargas de corrente eléctrica que a invadiram por completo. À lenta e dolorosa distensão do ventre, seguiu-se a sensação de humidade no côncavo acetinado do intervalo das coxas. Sentiu o calor que irradiava dele a espalhar-se dentro de si, e ficou agitada, baloiçou-se para a frente e para trás, precipitando-se desenfreada numa sucessão de ondas que se foram desfazendo. O bater de asas tornou-se mais rápido, num crescendo que passou a rugido, e ela foi completamente revirada por um forte impacto de calor. Um fluido leitoso e quente correu de dentro para fora e veio perder-se por entre as suas pernas.
terça-feira, 21 de junho de 2022
Godot
Eis que, dominado por uma sensação de invisibilidade, como se fosse o único espectador da sua aparição, da sua única aparição, sem que mais ninguém a identificasse no vazio do ali e do agora, me vi perante aquela figura simples, nívea, quase transparente, leve e despretensiosa que se aproximou vagarosamente, e de repente, num assalto de comiseração me surripiou a tristeza, sem a menor intenção de a restituir.
quarta-feira, 15 de junho de 2022
Roseta
segunda-feira, 13 de junho de 2022
Terra e Mar
Mas gradualmente, o seu cabelo alinhado, dourado e cheio de luz, tornou-se, de repente, demasiado familiar. O seu gosto tornou-se insipido, o seu corpo vazio e os olhos de Horácio desviaram-se para outra, tão sensual e com formas arredondadas que poderia ter sido esculpida na própria terra. Aquilo que ele queria, ela não lhe podia mais oferecer: uma carne que não cedesse, um abraço cheio de fricção e resistência. Horácio ansiava por mulheres da cor da terra, de pés descalços tão firmemente pousados no chão que o vento lhes percorria os cabelos como se corresse por entre as folhas. Mulheres que tivessem braços parecidos com ramos maciços, mulheres que criassem raízes num determinado lugar, à espera que ele chegasse para acariciar a casca delicada e achocolatada das suas pernas e as ramificações das suas coxas tão flexíveis. Uma vez e outra, foi à procura delas, ansiando pela terra.
quinta-feira, 9 de junho de 2022
Paula Rego
O que é admirável na extensíssima obra de Paula Rego é que a sua linguagem pictórica e figurativa não romantiza o ser humano. Por mais que o amor possa estar ali representado, é a denuncia das ilusões e da falsa moral, que sobressaem daquelas cenas mirabolantes de chocantes e dolorosas verdades.
Eu estou grato por esse banho de realidade.
quarta-feira, 8 de junho de 2022
O elo mais fraco
terça-feira, 7 de junho de 2022
Que estranha forma de impotência!
Os homens estão a matar a mulheres.
Já sinto vergonha... da vergonha.
Pintar Junho
Há largos meses que não aparecia. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio. Começo com um esboço do seu rosto. Na última vez que posou, favoreci-a na tela. Hoje serei implacável nos pormenores e registo cada ruga ou mudança de cor, ou sinal oblongo. Observo-lhe o busto. Um dilúvio de entusiasmo pela sua pele, aquela seiva provocante que anima os meus olhos, faz-me antever horas sublimes. Mas acabo por esquivar a minha própria rendição, prolongar o tempo em volta de um corpo nunca vazio, dar-lhe vontade de se mostrar nu, fazê-lo encontrar em si essa volúpia. Para que consiga deleitar-se com esse exercício é preciso que goste de si mesma, do seu corpo, mas também da personalidade que sofre dentro dele.
quarta-feira, 1 de junho de 2022
1972
Hoje, ao cabo de um momento, adivinhei tudo; um único minuto bastou para me revelar de repente, sem uma palavra de explicação, graças a um raio de luz irresistível, esta verdade fatal que milhares de factos, repetindo-se todos os dias à minha vista, durante longos anos, não haviam conseguido fazer-me suspeitar.
Ainda sou uma criança.
segunda-feira, 30 de maio de 2022
Banco Alimentar
sábado, 28 de maio de 2022
Linhares da Beira
A forma das casas baixas e sombrias pouco ou nada mudou de há cinco ou seis séculos a esta parte. Julguei sonhar quando vi através das magnificas janelas manuelinas, aqueles grupos de mulheres de olhar selvagem e linha escultural, que fiavam a sua rocada na sombra e conversavam entre si numa língua quase imperceptível. Parece que todos aqueles espectros pardacentos tinham acabado de quebrar a pedra do túmulo para executarem entre si uma cena de outra época, de que fui o único espectador vivo. A pouca vida das ruas da aldeia tem o mesmo caracter de estranheza e arcaísmo que parece fielmente copiado do modo de viver duma geração que já passou.
Não me importava nada de cá morar. Podia manter-me a papas de milho e pesto de urtigas.
quarta-feira, 25 de maio de 2022
Vista aérea
Lá em baixo, homens e mulheres, mensageiros dos deuses, nomeiam as estrelas e as figuras do céu, dizem aos outros homens e às outras mulheres, amamos-vos e ensinar-vos-emos a viver ensinando-vos como curar as maleitas, escutando e transcrevendo o que dizem os vossos gritos e as vossas falas. Ensinar-vos-emos a tornar-vos amigos do mundo para não serdes estrangeiros nele, a sonhá-lo, a sulcá-lo, a usá-lo. Lá em baixo, homens e mulheres derramam a palavra, como um pólen abandonado ao vento, para transmitirem as histórias apreendidas com o refluxo do mar e com o fluxo da névoa, as histórias e lendas do mundo e da vida. Cá de cima, não tarda, o que se verá é a noite a distribuir por cada um a sua solidão, o medo, o susto e a redobrar um sentimento que todos já conhecem - a inquietude da incerteza.
Sou tão telúrico!
sexta-feira, 20 de maio de 2022
A costureira triste
Pude finalmente encontra-la. Vejo-a agora, pela primeira vez, depois da sua triste desaparição. Estava sozinha na sala quando entrei; reconhecendo-me, fez um movimento involuntário, como para se levantar, como que para se pôr em fuga, depois ficou imóvel, e o seu rosto pareceu cobrir-se, repentinamente, com um véu de púrpura inflamada. Foi contagioso, porque eu também senti que corava até à raiz dos cabelos.
Pronunciou estas simples palavras com um tom de voz tão suave, tão tímido -- e tão terno! --, que senti vontade de cair de joelhos diante dela.
Olhou para mim dolorosamente, depois baixou os seus grandes olhos com ar resignado e continuou a trabalhar na Bernina.
quinta-feira, 19 de maio de 2022
Palomar
Está-se no meio do mês de Maio e no ar desta manhã, por entre os pingos da chuva suave, já paira a fragrância do jasmim, do alecrim, da madressilva e das mimosas. Os botões da catalpa rebentam nas árvores, parecendo estrelas, o seu perfume a leite-creme espalha-se delicadamente pelo ar. Numa fase de profundos desafios à humanidade, o Senhor Impontual, figura míope, distraída e introvertida, não para de se interrogar se alguma vez os senhores das armas terão inalado este ar. Talvez não. Não é de espantar, a guerra começa antes da aurora.
quarta-feira, 18 de maio de 2022
Perguntar não ofende
Esta semana há greve da Função Publica. Será sexta-feira?
Tantos países a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas... ninguém resolve o problema do sexo entre pessoas do mesmo casamento?
Há serviços públicos, como por exemplo as Conservatórias, que não atendem o telefone há dois anos por causa da pandemia. Será um problema endémico?
Em que planeta fica o «mundo livre« que a NATO defende?
Como é que se ressuscita uma tangerineira moribunda ?
Marcelo, o presidente, disse que «Portugal é um beneficiário liquido da situação de guerra». Isto diz-se?
Sabem o significado da palavra «abesbílico»?
Segundo um estudo publicado no jornal Publico, quatro em cada cinco jovens gays ocultam a orientação sexual aos professores. Mas porque é que os jovens deveriam revelar a sua orientação sexual aos professores?
E no festival de Cannes? Há algum filme ucraniano?
É este mês que se paga o IMI, não é?
Já leram o artigo do MEC de hoje no Publico?
Varíola dos macacos?
Porque é que isto nos está a acontecer?
terça-feira, 17 de maio de 2022
Metadados
É certo que se tem vontade, necessidade, que o mundo seja branco ou negro, que os homens sejam inocentes ou culpados, santos ou escumalha. É uma cisão que dá segurança. Cada um tem o seu modo de vida, tem o seu papel. O cinzento, isso é que não é assunto nosso. O intermédio não se sabe bem onde se encontra. As fronteiras devem estar claramente estabelecidas, desenhadas. Consoante o lado onde cada um se encontra, assim se é capaz de dizer a que campo se pertence. Tem-se necessidade de coisas límpidas, e legíveis, e duras. No entanto, a mim, acontece-me acreditar que a realidade é mais contrastada. Aprendi que a luz e a sombra são indissociáveis. Aprendi que é preciso fazer escolhas na base da tridimensionalidade. Na sombra própria e na projectada. Apreendi a puxar-me as orelhas.
segunda-feira, 2 de maio de 2022
De Dostoiévski a Shevchenko, num ápice
Está uma tarde maravilhosa, uma dessas tardes que apenas são possíveis quando somos crianças. O céu está tão cheio de azul, tão luminoso, parece pintado de fresco, que quem erguer os olhos para ele vê-se forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens maus e caprichosos? A própria pergunta é infantil, muito infantil, mas oxalá ao amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!
Mais uma vez o sangue das pessoas.