É odiosa até mais não se poder a ironia, que não faz parte do homem, mas sim do cancro.
quinta-feira, 13 de julho de 2023
quarta-feira, 12 de julho de 2023
O outro
Usam um léxico especial, feito de carinhos e palavras imbuídas de brandas melodias, gestos e hábitos muito próprios a conotar a relação proibida, rituais imperceptíveis que, certamente, precedem calorosos encontros carnais, uma espécie de sociedade secreta onde não entra quem quer que seja. Um dia chegará o latido repentino, a sensação que jaz silenciosa, o choque emocional, a queda da pedra basilar - a consciência da condição. Ainda haverão de tentar fazer tábua rasa, alienar-se, ou escapar à angústia que trazem dentro de si, afundarem-se, desaparecer, desligar todos os sentidos para não perceberem aquilo que vão apreendendo, ou que receiam apreender, no ambiente circundante, adormecer para só despertar quando o pesadelo da perda já se tiver desvanecido. Mas o cálice amargo da culpa não admitirá meias medidas e será esvaziado até ao fundo, transformando "templos" de amor em "infernos" de má consciência.
quinta-feira, 6 de julho de 2023
Moscatel quente
sexta-feira, 30 de junho de 2023
Alípio
quarta-feira, 28 de junho de 2023
Questiúncula
sábado, 17 de junho de 2023
Comissão de Inquérito
quinta-feira, 15 de junho de 2023
Chamamento
terça-feira, 6 de junho de 2023
Quitéria
Acabou de chegar aos cinquenta. Trabalha, paga a sua casa, os seus impostos, vai ao cinema sozinha, faz férias com alguns amigos, passa o Natal com a família. Janta num tabuleiro em frente ao televisor, deita-se, lê um pouco e para adormecer, acaricia-se, tranquila, na sua cama, fecha os olhos e conta a si própria uma história, sempre a mesma, a sua fantasia preferida. Depois dorme como uma criança.
quinta-feira, 1 de junho de 2023
Tio Lencastre
É o que vai acontecer contigo, meu rapaz. Os teus pais fizeram-te nascer, fizeram-te crescer, depois a vida encheu-te sucessivamente de desejos, de pesares, de alegrias e de sofrimentos, de cóleras e de perdões, até que te fez ingressar de novo nela. E, no entanto, tu nem és aquela criança, nem aquele estudante, nem aquele profissional, nem aquele esposo, nem aquele novo velho. Tu és aquele que se cumpriu. E, se sabes ver em ti um ramo que baloiça, mal pegado à árvore, hás-de nos teus movimentos gozar uns fogachos de eternidade. E tudo à tua volta se tornará momentaneamente eterno. A eterna frescura da manhã, a eterna escuridão da noite. Depois, o tempo deixará de ser uma ampulheta que vai gastando a areia, e far-te-á lembrar um ceifeiro que ata a gavela.
Parabéns, meu rapaz. Vai lá.
terça-feira, 30 de maio de 2023
Maria Luísa
quarta-feira, 24 de maio de 2023
Albertino
Nunca votou. Era um principio ao qual sempre esperou nunca ter de renunciar. Até agora, resistiu a todas as tentações, a todos os processos de culpabilização, de desestabilização, às pressões, às chantagens, às avalanches de argumentações fundamentadas ou de argúcias falaciosas, agarrando-se ao único cântico do seu modesto breviário, convicto de que, todos sabemos que as eleições são uma cilada para uma pouco invejável congregação. Modestamente esforçou-se, pois, por nunca fazer parte dela. Esta atitude pode parecer um tanto limitada, a certos espíritos subtis, mas a harmonia cristalina desta concisão sempre lhe agradou. Não é este o momento de desenvolver quais os motivos. Digamos simplesmente que, para além da intangibilidade deste intróito, nunca apareceu, ao longo da sua vida, um único candidato em busca de votos a quem confiasse as chaves do seu carro ou de sua casa, em suma, um tipo com quem gostasse de partilhar uns momentos de pesca à linha.
Esta manhã encontrei Albertino no café. No meio de um croissant e um Tutti Frutti, Albertino perguntou-me se já escolhi o molho com que quero ser comido na próxima legislatura.
terça-feira, 9 de maio de 2023
sábado, 6 de maio de 2023
Luzia
quarta-feira, 3 de maio de 2023
Menandros
Repete-se até à náusea que o mundo de hoje é um teatro. E isto é assim não porque a natureza tenha per si alguma semelhança com os cenários dos teatros, nem com os anfiteatros helénicos, nem com os múltiplos cenários suspensos de pano ou papel dos teatros à italiana, nem com a sala negra do velhíssimo teatro de vanguarda. São os políticos. Políticos como os nossos, que teimam em fazer das suas vidas quotidianas, dos seus perigosos relacionamentos, das suas insanas prestações sociais e politicas, do seu amor próprio e mesmo da sua solidão, embora a sua profissão não seja a de actor, autênticas peças de teatro. Prestando-se a papeis miseráveis e a representações medíocres como se nessa inevitável ficção, na borda do palco, a cortina nunca se levantasse. Mas levanta, e do outro lado está o publico. Um publico numeroso, um publico frágil, incompreensivelmente silencioso.
sábado, 29 de abril de 2023
Dança
E quando a violência dos nossos corpos atravessar o canal da linguagem, passar para além das palavras, para além de tudo o que possam dizer as palavras, ocupar-me-ei do teu corpo, centímetro a centímetro, explorá-lo-ei, acariciá-lo-ei, farei jorrar prazer de cada poro da tua pele. Será a grande ocupação da minha vida: dar-te prazer... tratar-te como uma pequena rainha. Apenas ouvirás o roçar do meu corpo contra o teu, as gotículas de suor que rolam na tua pele, a minha boca que as vai sorver, que subirá à tua orelha e repetirá incansavelmente: "diz-me o que queres". Depois, enxaguarei o teu corpo dessa água que corre, dessa sede que jorra entre a tua e a minha pele, essa sede nunca saciada que encontra mil fontes novas em mil recantos escondidos no teu corpo espantado. Por fim deixaremos a beira-mar, os rochedos, a espuma suja das vagas, afogar-nos-emos naquela água salgada, lamber-nos-emos, respirar-nos-emos, ergueremos a cabeça para recuperar o folgo e partiremos para mais longe dançando no desconhecido caminho marítimo dos nossos corpos ...