sexta-feira, 15 de junho de 2018

Inturgescência


Os aviões sempre exerceram sobre mim um efeito analgésico e euforizante. Talvez em consequência da rarefacção do oxigénio, a não ser que seja o facto de voar a vinte mil pés de altitude que me transmite a inebriante ilusão de me encontrar fora do alcance das contrariedades e das preocupações terrestres. Refastelado no assento, de cabeça apoiada no vidro da janela, apalpo-me por dentro e questiono-me. Aos vinte anos, não temos coração. Julgamos que temos; estamos convencidos de que fomos amaldiçoados com uma coisa sagrada, inchada, que estremece ao ouvir os nomes que adoramos, mas não é um coração, porque ainda que abdique de tudo no mundo - da mente, do corpo, do futuro, até da ultima hora solitária que tem - não se sacrifica a si próprio. Não é um coração, aos vinte anos, é uma rainha gorda que murmura na sua colmeia.
Quando é que nos nasce o coração? Quinze, vinte anos anos depois de precisarmos dele?

3 comentários:

  1. Olá, Impotual.

    Tenho uma foto parecida com esta sua, também tirada através da janela de um avião, só que as 'minhas nuvens' não estão tão intumescidas quanto as suas!

    Li o seu texto várias vezes, Impontual, e ainda prefiro ficar a meditar nas suas palavras, ao invés de comentá-las.

    Um abraço, bom fim-de-semana.

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  2. Penso que este poema de José Gomes Ferreira responde à questão
    :)
    “Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
    para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
    que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
    e esta ternura dos olhos que se dão.

    Nem asas, nem estrelas, nem
    flores sem chão
    - mas o desejo de ser a noite que me guia
    e baixinho ao bafo da tua respiração
    contar-te todas as minhas covardias.

    Ao pé de ti não me apetece ser herói
    mas abrir-te mais o abismo que me dói
    nos cardos deste sol de morte viva.

    Ser como sou e ver-te como és:
    dois bichos de suor com sombra aos pés.
    Complicações de luas e saliva.”

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  3. sempre o mesmo coração a sentir diferente, o tempo tem seus efeitos.

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