quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Elegia da derrota

Naquela noite, a luta durou mais tempo do que o habitual. Ambos estávamos exasperados com a resistência do outro. Os nossos músculos, endurecidos mas flexíveis, davam-nos uma fantástica sensação de amplitude, mais imaginária do que real. Os nossos braços procuravam e encontravam pontos de apoio inesperados. De acordo com as nossas posições, os olhares pousavam ao acaso, no tapete, num canto da cama ou da parede, no espelho. 
Lembro-me de pensamentos dispersos, de esperanças pueris, de sentimentos vexatórios. Imaginei o sangue dela a fervilhar nas veias como o meu. De súbito, sentir que me rendia, que queria ser vencido, embora fosse o mais forte. Um segundo mais tarde, ela, obedecendo a um impulso irreflectido, impôs-me a derrota. O efeito foi de uma estranha grandiosidade. A minha derrota durou uma eternidade. Não senti deslumbramento. O combate prosseguiu, selvagem. Estávamos inconscientes, fatigados, encarniçados. O instinto mergulhava-nos numa bruma de torpor. Ignoro quando reassumi o controlo, sei apenas que o fiz ao mesmo tempo que ela. E a minha consciência não me revelou qualquer crime cometido, nem contra mim nem contra ela.

4 comentários:

  1. Alguma doçura não ficaria mal em tanta luta e encarniçamento. Não sei porque o seu texto me lembra certo acontecimento que uma criança me contava e a que deu fim exclamando, "tirei logo me de lá".

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  2. Tentei comentar mas - não sei!
    .......


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