segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Pintar Dezembro

Já não vinha posar há mais de um ano. Hoje, de repente, apareceu-me do meio do frio. Tenho as mãos e o pés gelados... e a cabeça fugiu-me para parte incerta. 
Como vou eu pintar em pormenor, e com tão pouca luz, aquele corpo maduro completamente despido? Os seus ombros redondos e tonificados? A sua penugem de pêssego? Embriagar-me no leve odor das suas axilas, captar cada um dos sinais que tem nas costas, registar os seus cabelos de um ruivo muito suave bem como aquelas nádegas que são de um branco leitoso? Tomar nota das marcas ali deixadas pelo aperto das minhas mãos, da vermelhidão e da velocidade com que a mesma desaparece? Sentir o peso e a maleabilidade inesperados do seu peito quando se deita de costas, do tom suavemente corado dos seus mamilos e da forma como reagem ao mais leve dos toques? O umbigo delicado? O glorioso contraste entre o branco de porcelana da sua pele e o negro, como tinta permanente, dos pêlos púbicos que não são nem espessos nem finos? Como hei-de guiar as suas pernas, afastando-as, para lhe explorar o interior? A sua maturidade? A cor? O pulsar? Colocar a cabeça entre as suas coxas para ter a noção da sua perfeição, sentindo o calor que daí emana como se saísse de uma fornalha intrincada? 
Como hei-de eu pinta-la, se estou gelado por dentro e por fora? E a memória me fugiu para parte incerta?

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Pilas moles

Os homens estão a matar as mulheres.
Que estranha forma de impotência! 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Da noite em que eu dormi com a LK*

Perturbado, incerto, inquiridor não cesso de respirar, de tirar proveito de uma presença fulgurante, de um corpo que se move a meu lado, como se ali estivesse o quotidiano de ambos, caminhar juntos nos bastidores das horas perdidas antes de nos enfiarmos nos de uma cidade, debaixo de uma campânula de vidro... debaixo de uma bátega.

Obrigado*.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Breve apostila ao Novembro chuvoso

Corrupção, tráfico de influência, oferta de vantagem. Indiciação. Nenhum arguido acusado. 
Demitiu-se o Primeiro Ministro, cai um governo maioritário, cresce o populismo de extrema-direita, abana-se os pilares da democracia.

Não há previsão de sol para os próximos dias.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Lítio

Se vamos a venerar a memória do desaparecido, ele encontra-se mais presente e terá mais poder do que o vivo. A atenção deve ir mais para aquele que acorda no meio da noite, convencido que ainda tem por cima todas as estrelas do céu, e de repente se sente em viagem. Não há paragem que mitigue a sede. Aquele que desperta, o que procura em primeiro lugar é o inferno. E o inferno... somos nós.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Aline

Saiu da cama e abriu as cortinas, entreabrindo a janela da sacada. A tempestade de Outono deixou-a gelada, mas embora a pele estivesse arrepiada de frio, gostava de estar nua. Fechou os olhos e sentiu o vento, como uma mão, acaricia-la com vigor, desde a testa, descendo pelas maçãs do rosto e pelo pescoço até à garganta e ao peito. Sentiu os mamilos endurecerem quando a temperatura caiu dentro do quarto e o vento a lambeu entre as pernas.
Depois, abriu os olhos e sentiu muitas saudades de estar em Fortaleza, ao ar livre no meio da natureza, nua sobre a areia quente, sentindo o cheiro salgado do mar a envolve-la. Enquanto caminhava pelo quarto, imaginou-se a andar pelo mar tranquilo. Sentiu o peso da nudez e, ao passar à frente do espelho, viu de relance o rabo. Tinha um belo rabo. Os homens sempre lhe haviam admirado o rabo e ela, era obrigada a reconhecer, tinha muito orgulho nele.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Breaking News

Se por um lado, por mera cegueira ideológica, dá-se total cobertura à decapitação de bebés(!?), violação de crianças e mulheres, raptos de idosos, queimar famílias vivas. 
Do outro defende-se com unhas e dentes, como retaliação, terraplanar e alcatroar a Faixa de Gaza.
Oh iluminados!! 

Hipócrates

Um senhor, um homem vulgar, mais fraco que superdotado, a caminho da meia-idade, acorda cedo, à sua hora do costume. O ruído do despertador irrita-o, senta-se um instante na borda da cama, adverte que não é ninguém, ou quase ninguém; gostava das imagens do sonho interrompido que velozmente se vão apagando da memoria. Quer voltar para a cama. Mas não deve fazê-lo. Lembra-se do dia da semana, da hora. Não é uma estreia. Está há vários anos a representar a mesma personagem, embora, como nas séries de televisão, as cenas vão sofrendo algumas alterações. 
Hoje tem de discutir o relatório que há dias o director lhe entregou. Tentará seguir a corrente. Beija com amor e rotina a sua mulher. Quase mecanicamente, sem entrar na situação, troca umas palavras com as crianças e começa a colocar a máscara: barbeia-se, toma duche esfrega-se energicamente, não veste o roupão - já velho, que lhe ofereceu a esposa e com o qual se sente tão bem - nem as calças de ganga, mas o seu fato completo de empregado de escritório. Os do departamento de design e publicidade podem ir vestidos como lhes der na gana, mas ele não. Toma o pequeno-almoço que considera adequado. Põe os óculos que, de acordo com a moça da óptica, vincam a sua personalidade.
Hoje tem de estar firme para discutir o relatório e, embora com firmeza, alegre para receber o espirituoso director. Se durante esta temporada agir bem, talvez para o próximo ano lhe dêem um papel de executivo. E se tiver algum cuidado com o vestuário, mostrar-se afável e ao mesmo tempo seguro de si próprio, talvez Alice, a nova recepcionista, lhe deixe representar um papel de amante, que são os mais bonitos.
Já pôs a mascara, a pessoa. O duche, as fricções no corpo, as palavras trocadas com os filhos, o café desembaraçaram-no e estimularam-no. Uma vez convertido num perfeito hipócrita, lança-se à rua, ao palco. E a palavra hipócrita não contém aqui nada de pejorativo, uma vez que hipócritas chamavam os gregos aos actores. 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Despertador

Podia ter sido do género ópera, cançoneta ou peça de jazz, Händel, Piaf ou Mingus. Mas não foi. Foi Fausto. "Como um sonho acordado".
Foi música que me entrou pela cabeça dentro, igual a uma recordação, como um veneno que se instala até suplantar o desassossego e profanar-me o espírito. 
Abram-se as portas do inferno. 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Palomar


De todo o movimento do Sol na esfera celeste, há um momento que o Senhor Impontual gosta de apreciar com particular delicadeza - que é aquele momento ínfimo em que o Sol diz para a Lua: vem.
O Senhor Impontual gosta de acreditar que um dia a Terra travará de súbito naquele preciso momento e por ali ficará, estática, durante um instante mais alongado. 
Ainda não foi hoje.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Douro

Na encosta, subindo para nascente, onde as nuvens crescem a cada passo, paro pela segunda vez e pela segunda vez lanço um olhar demorado para o vale que, ao fundo, parece de todo abandonado, tão silencioso e imóvel está.
À minha volta a luz acinzentada parece consumir o próprio ar que se respira. Bastou-me olhar para as vinhas que se estendem pela encosta até à margem do rio para sentir, como se fosse um bicho faminto sob a frescura daquele ar, o cheiro acre, saboroso, das videiras banhando-se primeiro do orvalho e depois do sol manso da manhã. Nesta altura já não se percebe se são arbustos vivos, se empedernidos por décadas e décadas de orvalhos, de chuvas, de geadas e de sol. Plantas imóveis, agarradas à terra, parecem esqueletos calcinados à espera de um vento mais forte que as arranque dali.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Questiúncula

Quão intelectual e emocionalmente transviado é preciso uma pessoa ser para ver na novela Rubiales uma degeneração civilizacional que ameaça o pilar essencial da essência humana - que é ímpeto?

sábado, 16 de setembro de 2023

Palomar

 

Nesta manhã de meio de Setembro com céu incerto, o Senhor Impontual veio até ao observatório.
A apreciação unilateral é sempre ruinosa.
A imperfeição completa e a perfeição integral não coabitam o mesmo ponto de mira.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Aposto

Aposto que também tu és uma teimosa e que gostas de escolher o teu caminho, que preferes falhar sendo tu do que acertar sem que o resultado venha de ti, das tuas premências, dos teus anseios, da tua profunda inquietação, da tua loucura também. Aposto.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Acontece sempre nos primeiros dias de Setembro

Começa com um fervilhar de rins ao inicio da tarde, uma substância amorfa que se instala nas entranhas como um incómodo parasita, um veneno adocicado que tem a cor opaca do vazio e a espessura remota da névoa, um desejo inconsciente que embriaga a lucidez, uma chama, um acorde indefinido, uma sonolência mais pesada, a repulsa e simultaneamente a fascinação.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Bosquejo da Jornada

Findas as jornadas, um forte viva ao Papa Francisco. 
Eu, ateu, me confesso: gosto da sua atitude agregadora, do seu radicalismo ideológico, da sua posição de ruptura dentro da própria instituição. Todo o estado de graça que se viveu em Portugal nos últimos quatro dias deve-se exclusivamente a Francisco e não à Santa Madre Igreja. 
Por cá, a Sotaina retrograda, abusadora e impune continuará em funções. Deus queira que Deus exista, porque se não existir, não sei o que há-de ser desta juventude afogada no seu catolicismo herdado e meramente cultural.

Mas...ainda assim... "não tenham medo".

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Adosinda

Barcelona. Ramblas. Quarto 600. Sexto piso. Adosinda já entrou. Antigamente devia fazer parte do sótão do prédio. Tem o tecto inclinado. O ambiente é de um luxo acolhedor. As paredes, os cortinados e até o edredão da cama são de um branco muito espesso. Adosinda está numa nuvem.
À direita há um quadro cinzento, uma aguarela do jardim e da fachada do hotel que lhe recorda o efeito do seu primeiro ataque de ansiedade: a tinta diluída. 
Em cima da mesa do pequeno almoço está um livro "Universo Dali". À esquerda há uma escrivaninha com um prospecto " Museu Picasso". E claro, há as janelas. Foi por isso que veio. Duas janelas discretas que dão para uma varanda de balaustrada muito baixa e perigosa. 
Ao fundo está o mar. Manso. Esverdeado. O ar está abafado. A luz, azulada, fraca, deixa antever a chegada da noite. Apagou as luzes do interior, abriu um pouco as cortinas e aproximou um cadeirão da varanda já iluminada por dois apliques na parede com uma luz difusa, morna.
Demorou cerca de vinte minutos a sair. Tem o cabelo molhado, acabou de tomar banho. Tem uma blusa de seda com renda que parece uma camisa de dormir e que lhe dá um ar de repouso sedutor. 
Distendeu-se na poltrona. Numa cadência de movimentos suaves e lentos, afaga o peito, sente a tristeza na sua pele branca, alguma excitação, o seu próprio cheiro, o suor e os sons interiores. A alma a perder as rédeas. O lume dentro de si. Um lume brando, mas em que não se podia tocar.
Adosinda nasceu para  tocar, não para ser tocada. Para observar, não para ser observada. 

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Projecto de Alvenaria

Ó bom-gosto dos homens, quem seria capaz de te fundar sobre o raciocínio? Quem ousaria usar-te somente conforme os princípios da lógica? Tu existes e não existes. Tu és e não és. Partes sempre de matéria díspar.
Não queiras inventar um palácio onde tudo seja perfeito. O bom-gosto é virtude de curador de museu. Se fores a desprezar o mau-gosto, não terás nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins... nem salário.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Rui Rio

 É odiosa até mais não se poder a ironia, que não faz parte do homem, mas sim do cancro.

Morreste-me

Fiquei insustentavelmente mais pobre, apesar de toda a riqueza que me deixou.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

O outro

Usam um léxico especial, feito de carinhos e palavras imbuídas de brandas melodias, gestos e hábitos muito próprios a conotar a relação proibida, rituais imperceptíveis que, certamente, precedem calorosos encontros carnais, uma espécie de sociedade secreta onde não entra quem quer que seja. Um dia chegará o latido repentino, a sensação que jaz silenciosa, o choque emocional, a queda da pedra basilar -  a consciência da condição. Ainda haverão de tentar fazer tábua rasa, alienar-se, ou escapar à angústia que trazem dentro de si, afundarem-se, desaparecer, desligar todos os sentidos para não perceberem aquilo que vão apreendendo, ou que receiam apreender, no ambiente circundante, adormecer para só despertar quando o pesadelo da perda já se tiver desvanecido. Mas o cálice amargo da culpa não admitirá meias medidas e será esvaziado até ao fundo, transformando "templos" de amor em "infernos" de má consciência.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Moscatel quente

É que não foram assim tão poucas como isso as vezes que o Senhor Impontual viu o virtuosismo enganar as pessoas. O Senhor Impontual, que tenta governar-se por si próprio, aprendeu a sondar a profundidade dos corações virtuosos, para só ao objecto digno de estima dispensar a sua admiração. Mais não faz do que negar essa veleidade às feridas de exibição que empolgam algumas almas virtuosas. Assim como também a nega aos labiosos, e além disso aos muito labiosos.
E o Senhor Impontual sabe muito bem porquê.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Alípio

Chama-se Alípio. Tem cinquenta e três anos, uma idade embaraçosa que hesita entre duas perspectivas da existência, dois mundos contraditórios. Os traços do seu rosto ganham todos os dias mais uma delgada camada de idade. Consume regularmente fosfato de disopiramida, cloridrato de propanolol e, como toda a gente, deixou de fumar. Vive sozinho, janta sozinho, envelhece sozinho, embora se esforce por manter o contacto com os seus dois filhos e o seu neto. De resto, o tempo encarregar-se-á de piorar o que já estava ruim. 
Ainda bem que é um dia de cada vez. Com este calor, dois... Alípio não aguentaria

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Questiúncula

Aquilo que a Senhora Loira que usa aqueles vestidos, sapatos e malas caras queria dizer lá naquilo de Sintra, era que o aumento da inflação ocorreu por causa dos lucros astronómicos das empresas, mas que os salários não podem acompanhar a inflação, caso contrário as empresas vão aumentar ainda mais os preços para manter as margens dos lucros que levaram ao início da inflação. Foi isso, não foi? 

sábado, 17 de junho de 2023

Comissão de Inquérito

Costa, na verdade, vai experimentando ao longo do seu percurso a cólera, a amargura, o ódio e a sede de vingança dos opositores. Nos dias das batalhas perdidas e das rebeliões, à hora do crepúsculo, quando os opositores se veem impotentes e como que fechados em si próprios, por não poderem agir à vontade sobre as tropas em debandada que as suas palavras já não atingem, nem sobre os generais sediciosos que se fizeram passar por imperadores, nem sobre os profetas dementes que de cachos de fieis fizeram punhados de cegos, chegam a sentir a tentação dos homens coléricos.
 
Costa mantem a passada. A comissão, quando atina com a decisão feliz, já é tarde de mais. Recomeça a dar o passo que os teria salvo, mas que, como a hora deles já passou, participam da podridão do sonho. Há efectivamente um general que, segundo os seus cálculos, os aconselhou a atacar a oeste. A comissão reinventa a história. Escamoteia aquele que lhe deu conselhos. Resolve atacar a norte. A mesmíssima coisa que se tentasse abrir uma estrada soprando contra os penedos da montanha.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Chamamento


Quando se pode prescindir de palavras e contrapostas palavras, e a essa alegria se mistura o sentimento do chamamento, acontece sempre um momento superior. A verdade é que o silêncio das pessoas, dos objectos ou mesmo da paisagem podem facilmente tocar-nos sem nos impor nada. Eu, por exemplo, não exijo nada da paisagem e muito menos das pessoas. Aceito-as como são. Embora, às vezes, a inconsequência não me comova menos que um acto de fraqueza.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Quitéria

Acabou de chegar aos cinquenta. Trabalha, paga a sua casa, os seus impostos, vai ao cinema sozinha, faz férias com alguns amigos, passa o Natal com a família. Janta num tabuleiro em frente ao televisor, deita-se, lê um pouco e para adormecer, acaricia-se, tranquila, na sua cama, fecha os olhos e conta a si própria uma história, sempre a mesma, a sua fantasia preferida. Depois dorme como uma criança. 

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Tio Lencastre

É o que vai acontecer contigo, meu rapaz. Os teus pais fizeram-te nascer, fizeram-te crescer, depois a vida encheu-te sucessivamente de desejos, de pesares, de alegrias e de sofrimentos, de cóleras e de perdões, até que te fez ingressar de novo nela. E, no entanto, tu nem és aquela criança, nem aquele estudante, nem aquele profissional, nem aquele esposo, nem aquele novo velho. Tu és aquele que se cumpriu. E, se sabes ver em ti um ramo que baloiça, mal pegado à árvore, hás-de nos teus movimentos gozar uns fogachos de eternidade. E tudo à tua volta se tornará momentaneamente eterno. A eterna frescura da manhã, a eterna escuridão da noite. Depois, o tempo deixará de ser uma ampulheta que vai gastando a areia, e far-te-á lembrar um ceifeiro que ata a gavela.

Parabéns, meu rapaz. Vai lá.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Maria Luísa

Maria Luísa não mente, não engana. É o que é. Pode parecer arrogante, mas é verdadeira. Ganha a vida a aparecer. Transforma facilmente vencimentos muito razoáveis em álcool e más decisões. É depressiva, analítica, estupidamente inteligente e sufoca com o compromisso.
Não é uma mulher normal, nem pretende ser. O seu objectivo é bem mais simples: ser um bocado feliz. Numa tentativa de auto-observação, com uma leve pitada de algofilia, começou no inicio desta semana a consultar um psiquiatra. Dia após dia viu-se forçada a falar sobre o João por quem é apaixonada, sobre o Pedro com quem vai para a cama e sobre o Filipe - o seu apoio emocional. Os três homens que arruinaram a sua vida e a quem é completamente devota.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Albertino

Nunca votou. Era um principio ao qual sempre esperou nunca ter de renunciar. Até agora, resistiu a todas as tentações, a todos os processos de culpabilização, de desestabilização, às pressões, às chantagens, às avalanches de argumentações fundamentadas ou de argúcias falaciosas, agarrando-se ao único cântico do seu modesto breviário, convicto de que, todos sabemos que as eleições são uma cilada para uma pouco invejável congregação. Modestamente esforçou-se, pois, por nunca fazer parte dela. Esta atitude pode parecer um tanto limitada, a certos espíritos subtis, mas a harmonia cristalina desta concisão sempre lhe agradou. Não é este o momento de desenvolver quais os motivos. Digamos simplesmente que, para além da intangibilidade deste intróito, nunca apareceu, ao longo da sua vida, um único candidato em busca de votos a quem confiasse as chaves do seu carro ou de sua casa, em suma, um tipo com quem gostasse de partilhar uns momentos de pesca à linha.

Esta manhã encontrei Albertino no café. No meio de um croissant e um Tutti Frutti, Albertino perguntou-me se já escolhi o molho com que quero ser comido na próxima legislatura.

terça-feira, 9 de maio de 2023

sábado, 6 de maio de 2023

Luzia

Lá em baixo, Luzia caminha para junto da água. Sentou-se sobre a areia quente, com os pés em frente ao mar. Sentiu as ondas a bater contra os tornozelos como um amante que lhe tocava nos dedos com beijos gelados.
Não há sol, mas algumas gaivotas esvoaçam no céu, pequenos pontos de esperança. Luzia sente-se como se estivesse a afastar-se do mundo real e a entrar noutro universo. Um lugar povoado de fantasias. Embora estivesse sentada junto ao mar, podia muito bem estar deitada, completamente nua, numa nuvem branca, espessa. Sentia uma pontinha de medo, porém não o suficiente para querer parar o pensamento. Estava a ficar igual aos demais: encontrara o seu outro eu.
Cá em cima, na esplanada, os efeitos do gin-tónico. A mente a dispersar-se em ramificações eufóricas de fim de tarde.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Menandros

Repete-se até à náusea que o mundo de hoje é um teatro. E isto é assim não porque a natureza tenha per si alguma semelhança com os cenários dos teatros, nem com os anfiteatros helénicos, nem com os múltiplos cenários suspensos de pano ou papel dos teatros à italiana, nem com a sala negra do velhíssimo teatro de vanguarda. São os políticos. Políticos como os nossos, que teimam em fazer das suas vidas quotidianas, dos seus perigosos relacionamentos, das suas insanas prestações sociais e politicas, do seu amor próprio e mesmo da sua solidão, embora a sua profissão não seja a de actor, autênticas peças de teatro. Prestando-se a papeis miseráveis e a representações medíocres como se nessa inevitável ficção, na borda do palco, a cortina nunca se levantasse. Mas levanta, e do outro lado está o publico. Um publico numeroso, um publico frágil, incompreensivelmente silencioso. 

sábado, 29 de abril de 2023

Dança

E quando a violência dos nossos corpos atravessar o canal da linguagem, passar para além das palavras, para além de tudo o que possam dizer as palavras, ocupar-me-ei do teu corpo, centímetro a centímetro, explorá-lo-ei, acariciá-lo-ei, farei jorrar prazer de cada poro da tua pele. Será a grande ocupação da minha vida: dar-te prazer... tratar-te como uma pequena rainha. Apenas ouvirás o roçar do meu corpo contra o teu, as gotículas de suor que rolam na tua pele, a minha boca que as vai sorver, que subirá à tua orelha e repetirá incansavelmente: "diz-me o que queres". Depois, enxaguarei o teu corpo dessa água que corre, dessa sede que jorra entre a tua e a minha pele, essa sede nunca saciada que encontra mil fontes novas em mil recantos escondidos no teu corpo espantado. Por fim deixaremos a beira-mar, os rochedos, a espuma suja das vagas, afogar-nos-emos naquela água salgada, lamber-nos-emos, respirar-nos-emos, ergueremos a cabeça para recuperar o folgo e partiremos para mais longe dançando no desconhecido caminho marítimo dos nossos corpos ...

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Beijo

Entrou e sentou-se ao balcão. Encomendou um Bourbon com 15 anos de idade. O que espera naquele bar sem nome? Cheiro, algo de desconhecido, uma vontade infinita de estranho. O seu desejo da manhã não a deixou. Pelo contrário. Todo o dia a lancinante injunção instilou-lhe urros na pele, os lábios corolas do sexo molharam-se repetidas vezes por um clarão, uma imagem rememorada, monstro enroscado no seu corpo que reclama e exige. Cada veia, cada artéria soletra: fruição, prazer, caricia, pele, vai-e-vem...o sexo que hesita, joga, aflora o clitóris antes de penetrar. Ela pensa penetrar e olha em redor: castiçais, garrafas, copos esguios, o que pode brincar à entrada de um corpo? O ideal, um homem invisível que roçasse e se aproximasse sem ela saber e depois arregaçasse os tecidos e as rendas, tomasse, rasgasse, um homem sem rosto, mudo... e que se sumisse. Acto continuo. Incógnito. Uma sombra.

Pagou a conta e foi-se embora. Avançou sóbria de presente, ancas a ondular sobre o único palco onde se joga o bailado de uma vida. Na rua, a ausência da Primavera, o acaso dos transeuntes. Frágil entre frágeis. Também precisava de um beijo.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Caxinas

Três dias depois, a mesma luz de ouro. Três dias em que nada aconteceu a não ser o roer incessante da saudade que aumenta com a luz e com a luz diminui. O sol está fixo sobre a marginal. O paredão está vazio, mas iluminado. Luz de ouro fixa, batida pelo vento. Odor mesclado de iodo e sal, odor ácido e desenterrado das águas. O mar bate forte, sobre o céu limpo, as areias agitam-se, correm, gritam, as gaivotas lutam contra o vento, demoradas no voo. Às vezes o vento acalma-se, as areias sossegam, o mar torna-se chão e o aglomerado contínuo de casas estende ao sol vidas paradas. A brisa continua fresca, a cobrir a praia. A luz vai baixando sobre um céu sem nuvens. A saudade rói de novo.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Disrupção

Esta é uma época estranha, essencialmente trágica, que vamos recusando aceitar. O cataclismo deu-se. Estamos entre as ruinas. Temos de construir pequenos habitats. Alimentar novas esperançazinhas. Cuidar que não sejamos roubados no supermercado. É uma tarefa difícil. Já não há nenhuma estrada suave em direcção ao futuro. Só nos resta rodear os obstáculos, ou passar por cima deles. 
Seja qual for o numero de céus que desabem, temos de viver. Disruptivos. Aguentar até ao próximo Inverno. Mas...e se não chove?

quinta-feira, 30 de março de 2023

quarta-feira, 22 de março de 2023

Miradouro

Através das pálpebras semicerradas vejo indefinidamente o mar ao longe. A cidade ao fundo está invisível, atolada nas suas excreções. No fim do horizonte, por cima do mar, surgem zonas de sombra. O céu encobre-se. Depois começa a chover nas zonas negras. Passado um bocado, por sobre o mar, formou-se um grande tetrágono de luz branca. O tetrágono de luz pluvial desaparece. Outras tempestades rebentam. Por toda a parte. Por cima da minha cabeça surge uma pequena cortina de chuva ensoalhada. Rompendo a cortina, umas aves de cauda bifurcada. Pode ter chegado a Primavera. Mas, quando chegar a casa, tenho de ver se as margaridas já furaram o relvado. 

terça-feira, 21 de março de 2023

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!

Tu és melhor -- muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

sábado, 11 de março de 2023

Observatório

Desde os campos de cultivo às prateleiras dos hipermercados, passando pelos carregadores, os camionistas, os descarregadores e os açambarcadores, o preço dos produtos agrícolas aumentaram cerca de sessenta por cento. Depois de pagarem os impostos, a hipoteca, a contribuição agraria, os manda-chuva, os dízimos e primícias, os camponeses que os cultivam, trabalhando de sol a sol, recebem apenas dezasseis por cento do valor total do produto. O suficiente para, juntamente com o usuário particular, morrerem de fome. Mas sob o império da lei e da graça dos Senhores.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Interpretando Courbet

@Jean-Baptiste Mondino

 

Entrar nesse edifício e passear por esse labirinto de corredores infinitos, desde a cave ao piso mais alto, é passear pela tragédia humana. Às vezes pela comédia divina. Gosto de ir aí. De me perder. De te encontrar.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Palomar

Um homem está parado no areal. O Senhor Impontual caminha, lesto, junto à água lado a lado com o sol poente. Uma mulher está ao cimo, de pé, olhando a praia. O mar está baixo, calmo, a estação indefinida, o tempo lento. A mulher está em cima de um estrado de madeira, ao longo da praia. Veste roupas largas e sombrias. Tem um rosto distinto. Os seus olhos são grandes. Não se mexe: olha o mar, a praia, as poças, as superfícies isoladas de água morta. Depois caminha, afasta-se e volta, torna a partir, a voltar, num caminhar longo, monótono. O Senhor Impontual que já estava a perder-se no horizonte dourado, trava, inverte a marcha, e retorna ao local de partida. O triângulo fecha-se com a mulher de olhos cerrados, sentada contra o muro que separa a praia do fim da cidade. O mar e o céu ocupam o espaço. Ao longe o mar está já oxidado pela luz obscura. E o céu também. O homem, que esteve imóvel durante todo este longo hiato de tempo, inicia a marcha de saída do areal. O triangulo oscila. Desfaz-se. São agora duas pessoas sob o intenso crepúsculo. O dia morre. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

É curioso, mas é um fenómeno do nosso tempo

Apesar de mais educado e de melhor sociedade, o Senhor Impontual é, à sua maneira, mais provinciano e mais tímido do que aquilo que possa parecer. Sente-se à vontade no seu pequeno "grande mundo", isto é, com a aristocracia da terra, mas tímido e nervoso perante esse outro grande mundo que consiste nas hordas das colonizadas classes média e alta. Para dizer a verdade, o Senhor Impontual tem um pouco de receio da insanidade dessas classes que não pertencem à sua classe. O Senhor Impontual está consciente da sua impossibilidade de defesa, embora possua a defesa do privilégio de ser um provinciano. 
É curioso, mas é um fenómeno do nosso tempo.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Entrolhos

Ultrapassada que está a grande marca que Salazar deixou em Portugal - a mordaça - eis que surge a psique colectiva dos entrolhos. A mentalidade de, com os olhos tapados, criar celeuma, dar tiros no escuro, forçar o avanço da solução de reserva mesmo que esta seja inconsistente ou simplesmente não exista. É difícil fazer avançar um país com este intelecto. Com este vinculo K. Com esta estupidificação maligna.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Palomar

Desta mesma janela edénica onde o Senhor Impontual já tinha aprendido a pandemia, de onde já tinha aprendido as doenças da liberdade e da falta dela, de onde aceitou a honra do exílio. Observador atento, o Senhor Impontual, perscruta agora o céu, o horizonte vazio, a lenta cronologia das horas, os rabiscos gigantes das nuvens. Na sua cabeça, palco dilatado, pairam agora frases sarcásticas sobre guerras e politicas de massas que não devem ser pronunciadas com ligeireza. Em combate, sempre os mesmos. O cataclismo deu-se, estamos entre os escombros, desatamos a construir novos pequenos abrigos, a alimentar novas esperançazinhas. Estás vivo, diz de si para si mesmo, no presente vivo, e não no passado vivo. Parou de chover, a tarde serena acolhe o Senhor Impontual. Uma quietude hospitaleira, sem pensamentos nem perguntas, apenas a magnificência do dia cinzento. Ao fundo Zucchero interpreta majestosamente Miserere (Allegri). Uma espécie de banda sonora do tempo paradoO presente, ou seja, aqui e agora.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Outra de coisa nenhuma

Hoje, mais a frio e a destempo, eu que gosto de Lobo Antunes e de livros, facilmente percebo que há memórias mais extensas que outras e que o ritmo e a intensidade desta sequência dependem grandemente da taxa de hormonas, do humor das moléculas, da rapidez das sinapses, de um espírito obnubilado, de um ventrículo palpitante e, por vezes, de um membro sexual inquieto. Já Borges me tinha ensinado algo parecido. O que não deslustra Lobo Antunes.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Ainda hoje é Dia de Reis

E um ano inteiro já lá fora. Um ano todo a pensar que a felicidade consiste em abrir janelas ao amanhecer, em esperar, em supor que apenas com o abrir de portas e janelas algo acabará por entrar, algo eterno que haverá de os transformar e acabará por ser seu. Só seu. Um ano todo a ver passar as coisas, e as coisas ali imóveis, caladas, mudas, surdas, cálidas e enchendo-se das cores da tarde uma e outra vez, tristes e amarelas, até à brancura de um novo amanhecer sem saber realmente que não é suficiente abrir...abrir... abrir. E que tudo é tão fugidio, tão morredouro. Um ano inteiro... já lá fora.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pelé

Discordo em absoluto desta imortalidade que se quer, à força, dar às coisas e às pessoas em todas as suas formas. O fim é requisito de qualquer existência. Da nossa existência, que é fugaz por definição e por necessidade. As coisas que realmente valem a pena terminam. A sua finitude é condição fundamental da sua importância e... da sua beleza.