Esta manhã acordei no inferno. Primeiro apenas sabia que tinha de escapar ao fogo na cama, depois ao fogo no chão e depois ao fogo no ar. Até correr para a porta não percebi: o fogo era eu, o fogo era eu próprio. E só fugindo de mim próprio conseguiria fugir das chamas. Havia ali forças com as quais não contava. Uma magia poderosa. Não pude impedi-la. Não quis evitá-la. Agora sou cinza.
terça-feira, 27 de dezembro de 2016
terça-feira, 20 de dezembro de 2016
Acendalhas
Em dias como o de hoje em que me permito regressar bem mais cedo do que é habitual e ainda debaixo da luz do dia, gosto de encontrar a casa vazia, fria, triste, escura. Recolher uns "cavacos" na arrecadação, acender a lareira lentamente e ficar ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Tirar um copo e uma garrafa de Cognac de Charente do armário e deixa-los na borda fria da pedra que emoldura o recuperador de calor. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, recolho a garrafa e sirvo uma dose generosa daquele néctar à temperatura certa. Entre uns tragos curtos, gosto de ficar por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde pálida a ser tomada pela noite escura e gélida. Até que me sento na poltrona alumiado apenas pela incandescência da lenha e deixo-me invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso. Vibrações misteriosas que se misturam com o lembrete aflitivo, também ele mental, de que ainda não comprei um único presente de Natal! A diversidade dos seus ecos atordoam-me, por assim dizer, o espírito. A memória, essa, distingue o meio ambiente de um tempo de certo modo longínquo, tempo esse que se dilui até se tornar teimosamente indiscernível. É certo que o tempo se transfigura sempre de acordo com o magnetismo das pessoas que o viveram, porque as coisas não têm outro significado, para cada um de nós, senão aquele que lhe podemos atribuir - as coisas são como são ou foram como foram. O Natal é que já não é grande coisa. Mas, enquanto houver lume e alguns sorrisos para manter vivos, ainda vai acontecendo.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
sábado, 17 de dezembro de 2016
Do clássico jantar de Natal
Era bonita. Muito bonita, mesmo. Alta, longas pernas, ombros redondos e lisos e uma pele de grão mate que convidava a beijos e outras navegações. Mas a fronte e os olhos eram perigosamente grandes. Tinha lábios de adolescente. Apenas as narinas diziam mais. O encanto do contraste, de uma surpreendente violência, entre o seu penteado de colegial e a agitação inconsciente, carnal, das suas narinas. Ficava tão bonita com o vestido púrpura. Bonita e calada. Se não compreendia, não falava, não cultivava por isso qualquer desalento ou angustia. Quando falava utilizava indubitavelmente exclamações; e os seus relatos eram demasiado técnicos para que deles me tenha apoderado; ou demasiado flutuantes para que a minha pena desajeitada consiga reproduzi-los aqui e agora. Mas a fronte e os olhos eram perigosamente grandes, asseguro.
[Já o Joel da informática, a Amélia dos recursos humanos, a Pipa do marketing e o Morais da logística...são uns pândegos.]
[Já o Joel da informática, a Amélia dos recursos humanos, a Pipa do marketing e o Morais da logística...são uns pândegos.]
quinta-feira, 15 de dezembro de 2016
Conchinha
No fundo é disso que gostamos uns nos outros: o lugar vazio que cada um abre para que ali cresçam e se anichem as fantasias do outro?
quarta-feira, 14 de dezembro de 2016
Enfunar
A verdade é que não existem planos que possam reger de maneira fiável o nosso relacionamento com os outros. Não há padrões fixos nem mesmo quando o sentimento primordial que nos governa seja o do afecto. Porque é que perante o mesmo estimulo, umas vezes reagimos com ira e outras com tolerância ou, inclusive, complacência? Porque é que às vezes uma coisa tão vulgar como contemplar alguém querido a segurar uma chávena de café pode precipitar-nos, segundo o dia, do agrado à repulsa extrema. Porque é que às vezes basta um olhar para que nos julguemos vacinados contra toda e qualquer desgraça futura e outras, pelo contrário, é precisamente o mesmo olhar o que faz com que nos afundemos na mais cega melancolia? Costumamos pensar em nós como seres imutáveis, baseados em códigos e gostos fixos, quando na realidade estamos em permanente luta connosco próprios. Dizemos frases como "amo-te" ou "não te suporto mais" e tendemos a crer que estas frases definem o nosso estado de alma, quando na realidade as alternamos como o vento - sempre em mudança de direcção.
terça-feira, 13 de dezembro de 2016
Vermelhão
Quem diz homens, diz mulheres.
Não posso deixar de admirar gente desta
Que desce de forma vertiginosa e assustadora ao patamar mais profundo da vida e por lá fica, de olhos bem abertos num exame escuro, tempo suficiente para perceber o que vê, o que toca: o horror, a angustia e a permanente sensação primordial do medo de ser humano, de estar vivo, de ter que viver e dar vida, de ter de morrer. Mas que, ainda assim, encontra um feixe de luz para lutar e intuir que um dia gostaria de cuidar de fazer do preto, do branco e do cinza amigos de todas as cores do arco-íris.
Hoje recebem o prémio Sakharov pela defesa notável que fazem dos direitos humanos.
Hoje recebem o prémio Sakharov pela defesa notável que fazem dos direitos humanos.
segunda-feira, 12 de dezembro de 2016
Périplos
É sempre que regresso destes périplos, e já depois de as ter revelado, que descubro a insigne grandiosidade das minhas películas e enfrento então três sentimentos absolutamente complementares: a eclosão, o êxtase e a nostalgia -- praticamente simultâneos.
Com a certeza, porém, de que hoje -- no tempo das selfies -- as coisas estão um bocadinho piores. O drama da individualidade é muito antigo, mas nunca foi tão tacanho!
sábado, 10 de dezembro de 2016
Quarto elemento
Amanhã vou a um sitio.
Sempre que lá vou, vou como quem foge de casa.
Tem muito chão, muito ar e muito fogo. Um dia qualquer ainda me queimo.
Lá não tem mar.
(uma espécie de haiku)
Sempre que lá vou, vou como quem foge de casa.
Tem muito chão, muito ar e muito fogo. Um dia qualquer ainda me queimo.
Lá não tem mar.
(uma espécie de haiku)
quarta-feira, 7 de dezembro de 2016
Retardado
Não posso ler ou ouvir nada sobre este homem. O problema sou eu, bem o sei. Mas é que aquela espécie de tom decidido, ameaçador, prudente mas ainda combativo, a fazer recordar outras batalhas, tira-me do sério. Cinza. Será essa, talvez, a tonalidade mais frequente do seu humor: uma raiva subterrânea e quase fisiológica, como as camadas incandescentes por baixo da crosta terrestre. Sempre eminente, portanto. Em tempos ainda quis aprender a dizer adeus. Porém, nunca ninguém lhe ensinou o esquecimento.
Mas o problema sou eu, que no fundo também sou um retardado, bem o sei.
Mas o problema sou eu, que no fundo também sou um retardado, bem o sei.
terça-feira, 6 de dezembro de 2016
Há dois blogs, de natureza algo intimista...
... que eu não consigo ler como era devido - em silêncio.
A Olvido do Acontece a vida acontecer e a Alaska do Lodo Translúcido perdoar-me-ão com certeza.
Mas é que dali saem palavras que se retorcem e espevitam palavras, pensamentos que se retorcem e espevitam pensamentos, que por sua vez espevitam paisagens, não diria inóspitas, mas fragmentadas.
Ah, se soubessem o quanto eu gosto de fragmentos!
Ah, se soubessem o quanto eu gosto de fragmentos!
Masterchef
Anda tudo a comer só pratos finos. Requinte. Sabores. Texturas. Outras culturas. Diferença, dizem-me. Tudo certo, penso eu contrariado. O problema é quando nos convidam gentilmente para almoçar. Acabaram-se as pataniscas de bacalhau com arroz de feijão vermelho, acabou-se o polvo à lagareiro com batatas a murro, acabaram-se as postas de vitela barrosã. Agora é só coisas ao vapor, temperos com cardamomo do Malabar, molhos de mostarda Dijon, reduções manhosas de vinho Bordeaux, saladas de rebentos de soja, peito de frango desfiado com creme de ricota e outros manjares esquisitos regados com água de nascente à temperatura certa. Nunca se sabe o que vem para a mesa!
segunda-feira, 5 de dezembro de 2016
Itália
Está salpicada de belas cidades, cada uma justamente famosa por alguma coisa, seja a perfeição das suas piazzas, o encanto do seu campanário, os frescos invulgares das suas igrejas, o saudável ar da proximidade da montanha, a sua localização junto ao mar, a vista das suas velhas muralhas, a incomparável bistecca servida no restaurante, outrora um mosteiro, um castelo ou uma quinta, as margens de um pitoresco lago, uma alameda de altos ciprestes, uma vinha. Tudo isto povoado por latinos, sabinos, úmbrios, samnitas, oscanos, etruscos, gregos, celtas, germânicos, sarracenos, normandos e... mulheres bonitas. Populista por natureza.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2016
Frederico
A tarde cai fria e as nuvens esmagam-se contra o rio. As palavras, como a imaginação, não têm ossos, retorcem-se até criarem paisagens inóspitas, alamedas de densos arvoredos, bosques carregados de espinhos.
Pouco a pouco vão ficando poucas coisas em que pensar. Entretanto chega a noite e consigo vem o desvelo. E logo: a dúvida. Por último: a angustia. A culpa a perfurar o pensamento e o áspero som do silêncio.
quarta-feira, 30 de novembro de 2016
Questiúncula
Li por aí que os deputados do Bloco de Esquerda há uns dias levantaram-se entusiasticamente a aplaudir um voto de pesar a um ditador morto, mas que ontem aquando da intervenção no Parlamento de um Chefe de Estado - vivo - de uma democracia vizinha se deixaram ficar, malcriadamente, sentados, desrespeitando a boa educação institucional. Não páro absurdamente de me questionar se não terei sido também um nadinha malcriado quando há dias o mesmo Chefe de Estado passou à minha porta e me chamaram para ir à varanda ver o Rei e me deixei sentado na poltrona a ler no Aleph de Borges o que me faltava do curto mas fascinante conto "Os dois Reis e os dois labirintos"?
Depois saltei para o "Deutsches Requiem".
Santo padroeiro.
Mais vale confessar desde já que tenho um pacto com o diabo. Não é nada de extraordinário - uma pitada de niilismo social ali, um pouco de sabotagem comportamental acolá - e receio que faça parte da minha existência. Coisa de nada. Não inspira grandes cuidados.
terça-feira, 29 de novembro de 2016
Regata
Por outro lado as palavras "ir embora", que deveriam ter o efeito de um grande alívio, são quase sempre interpretadas pelas pessoas e pela sua mente baralhada como se fossem o tiro de misericórdia. Como se o mundo fosse um barco e as atirassem borda fora.
segunda-feira, 28 de novembro de 2016
Teresa
Custava-lhe muito fazer aquilo. Sabia que estava a deixar tudo para trás. A mãe, Tecas - o gato maltês, a carreira que nunca lhe agradara, tudo o que fora a sua vida até aí. Mas aquilo não foi verdadeiramente a sua vida. Conseguia agora perceber que nunca passara de um reflexo das vidas de outras pessoas.
Apesar de tudo, já sentia saudades da mãe. Sempre irá sentir a falta dela, a força da sua persuasão. Fica a imaginar quanto tempo irá demorar a perceber que se fora embora. Do lado de fora da janela, Lisboa passa a correr. O ar está límpido e frio e os aspersores assobiam junto aos passeios. O autocarro segue com velocidade, uma sombra esguia que passa por entre as luzes da cidade e algures, no meio da escuridão parece capaz de dizer qual o momento exacto em que a mãe aceita a sua partida. Suspira e esconde o rosto nas mãos, sem dizer uma palavra. Nesse momento sente a tensão abrandar, subitamente. As outras pessoas que vão no autocarro não notam nada, mas durante este tempo todo, tem estado cada vez mais leve e mais vazia, até que agora, por fim, começara a sentir-se a emergir. Era apenas uma rapariga que vai passar pelo resto da vida como o vento.
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