quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Prólogo

São cada vez menos os olhos que vêem o que ainda está escondido. Olhos infelizes, haveis visto de menos! A verdade é que as linhas começam a ter um traçado pouco definido, os extremos tornam-se flexíveis; as cores esbatem-se e como que flutuam, estão a ficar esbranquiçadas à luz e a perder a sua vitalidade. A sua camada fina distende-se. A Natureza fala, chora, pede socorro. O Homem é frágil e débil, à semelhança da civilização que erigiu em seu redor. Calado ainda avança decisões na noite escura das perguntas sem resposta. Estas parecem ser as características do retrato do mundo futuro. Está em marcha o processo de óxido-redução e da transformação dos haletos. Para já fica assim. Ainda se respira. Quem vier a seguir que ponha a máscara. Ou que feche a porta. Dou graças por não estar presente para ver essa fotografia.

Hoje arranca a volta a Portugal em bicicleta. Esta tarde temos um curto prólogo, seguem-se doze longas etapas. Abri os olhos.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Questiúncula

Mas... é só na politica que o Mal, a obra tenaz de Lucifer, consiste em fazer cair a sombra sobre homens e mulheres? numa imagem estável de si próprios, mas não necessariamente mortífera visto não estar cristalizada num eu definitivo que os impeça de ser outras figuras de si próprios, progredindo? Mas... e só na politica que, do pavor da cova dos falhados ao pavor encolhido, dilatado e novamente encolhido, adormecido mas não muito, à estratégia da esquiva, à retractilidade, à solução de reserva, ao coeficiente de segurança é um ápice? 

Sessão da Meia-Noite

Morte em Veneza - Luchino Visconti, 1971

 Ao ar livre, com a Teresa

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Telegrama para a Grécia

Querido Kostas,
Saber-te desesperado com a ideia terrivel de que as cinzas que tombam dos céus sãos os restos mortais dos vossos entes queridas, é para nós uma reminiscência recente muito forte. Por isso, é na mais elementar das solidariedades que te dirijo estas parcas palavras de conforto: ajudem-se uns aos outros, não exasperem à procura de culpados. 
Daqui por um ano vão perceber que a culpa afinal é vossa, e só vossa.
Ajudem-se uns aos outros.

Um abraço. Sincero.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Palomar

O Senhor Impontual, acompanhado do Senhor Palomar, aguarda ansiosamente a passagem do Senhor da Boliiinhas.


Logo, logo... nos debruçaremos sobre a observação das ondas e dos aspectos complexos que concorrem para a sua formação. A seu tempo obrigaremos os nossos pálidos olhares a percorrer a praia com imparcial objectividade, de modo a que, mal o peito nu de uma mulher entre no nosso campo visual, se note uma descontinuidade, um desvio, um mero sobressalto na paisagem em torno daquelas dunas aureoladas.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Herberto



Nem sempre me incendeiam o acordar do sol atrás dos montes e a lua despenhada nos confins dos mares.

- Todavia, tu sempre me incendeias.

Mas de certo sou eu, numa ardente confusão de água e terra.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Motel

Não digamos nada. Não vale a pena... mesmo na privacidade do nosso quarto, quando estivermos deitados, submergidos na luz listada, preta e branca, da meia-noite. É preciso muita imaginação para reconhecermos as mágoas das pessoas que consideramos felizes. As suas verdadeiras batalhas travam-se, como as das estrelas, num qualquer reino de luz, imperceptível para o olhar humano. Seria um feito demasiado da nossa inteligência adivinhar o que se passa no coração de outra pessoa.  Fodamo-nos. Apenas e só.

sábado, 14 de julho de 2018

Inadimplência

Miss Jayne Mansfield nas bancadas dos HotSpurs, anos 60

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Palomar


De todo o movimento do Sol na esfera celeste, há um momento que o Senhor Impontual gosta de apreciar com particular delicadeza - que é aquele momento em que o Sol diz para a Lua: vem. 
O Senhor Impontual, por breves instantes, consegue colocar-se no lugar do Astro-Rei e saborear a delicia de saber-se compreendido, trespassado por um olhar inteligente que parece evitar-nos obstinadamente. Aquela observação recheada de subentendidos a dizer, sem impor, toda a sua verdade, sem que tenhamos que delinear quaisquer subtilezas. Eis o mais embriagador de todos os prazeres: ser adivinhado, observado escrupulosamente, reconstituído a partir de deduções e por fim reconhecido na sua sinuosa complexidade. 
O Senhor Impontual gosta de acreditar que um dia a Terra travará de súbito naquele preciso momento e por ali ficará, estática, durante um instante mais alongado.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Agapanthus


As pessoas insistem continuamente em exigirem-nos a tarefa, hercúlea, da  consciência absoluta de tudo o que se passa com o mundo à nossa volta, esquecendo que isso seria o mesmo que ouvir o sol nascer, o coração dos pássaros bater, a sombra das flores crescer. E que isso nem sempre é possível.

sábado, 7 de julho de 2018

Sessão da Meia-Noite


Uma Mulher Sob Influência - John Cassavetes, 1974

(Com a flor)

terça-feira, 3 de julho de 2018

Palomar

O Senhor Impontual, um indefectível do mundo em movimento, de há uns tempos a esta parte quando abre o feed do blogger não pode deixar de se questionar sobre o que é feito daquela blogosfera que engordava, fazia regimes, deixava crescer a barba, apanhava aviões para todo o lado, comprava bugigangas que lhe enchia a casa, lia livros que lhe enchia o ego, escrevia histórias que lhe enchia a vida. Que a cada episódio, o critico, salientava a violência das imagens imiscuídas nas palavras, das relações homens-mulheres, da sua misoginia, da sua misantropia. Aquela blogosfera que mostrava o cão. Aquela blogosfera em que o sangue jorrava, os golpes ferviam, a traição vencia as melhores amizades, a carnificina parecia inevitável, os corpos explodiam em mil pedaços, o mundo sofria um abalo a cada publicação. Que é feito?

Não achando resposta tão imediata como gostaria o Senhor Impontual decide que, doravante, fará como se estivesse sozinho na blogolãndia, para ver como roda o universo apenas puxado por si. O Senhor Impontual ainda acredita que entre ele e o mundo as coisas continuam a ser como são e por isso ainda esperam algo um do outro. Que a vida continuará um campo de observação infinito onde os pormenores recolhidos permitem continuar a viagem dentro de si próprio, esclarecendo horas e infelicidades, mais eficazmente que um qualquer doutor de almas sobre os seus distúrbios.


O Senhor Impontual já acolhe dentro de si uma certa sensação de acalmia. Mas é exactamente a expectativa de saborear esta calma que o torna ansioso. 

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Cesariny


Rejúbilo
Por arder de mansinho junto ao mar
rejúbilo
porque uma coisa é certa: ninguém me ouve
rejúbilo
porque outra é indubitável: eu não oiço ninguém

Rejubilemos

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Perguntem ao Carlos

O ressentimento é uma sopa espessa que se pousa nos lábios, passa pela boca e pelo esófago e vai ancorar-se no estômago. E por ali fica, em ebulição constante ao longo de anos, até regurgitar.

Palomar

Está-se no final do mês de Junho e no ar paira a fragrância do jasmim, do alecrim, da madressilva e das mimosas. Os botões da catalpa rebentam nas árvores, parecendo estrelas, o seu perfume a leite-creme espalha-se delicadamente pelo ar. O Senhor Impontual olha para aquela mulher dentro do seu vestido de linho cor purpura. Olha para ela e pergunta-se como como será a sua roupa interior, pergunta-se como será nua. O linho até uma certa idade acrescenta dez anos, depois de uma certa idade retira dez anos. O Senhor Impontual, numa rápida incursão mental pelo seu closet, afere que não tem uma única peça de linho. Mas não vê nisso inquietação de maior.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Às vezes acontece a vida acontecer

Num cair de noite assim, sob esta luz de vermelho ao mar, puxá-la para mim, abraçá-la fortemente, acariciar-lhe o cabelo e, peito com peito, capturar o pulsar do seu sangue, deixar-me levar no percurso ondulante da sua circulação. A lua, ali de guarda, pendente acima da linha do horizonte, como um sopro de ar suspenso. Um ambiente crepuscular interminável a fazer acreditar na elasticidade do tempo. Ele a espalhar-se diante de nós, e o amanhã a tornar-se tão vago que deve estar mesmo muito longe. Depois... o tempo retrai-se e faz ricochete, o relógio repica, paira uma luz acinzentada e sopra uma aragem fresca...

Não vos acontece, acontecer?

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Inturgescência


Os aviões sempre exerceram sobre mim um efeito analgésico e euforizante. Talvez em consequência da rarefacção do oxigénio, a não ser que seja o facto de voar a vinte mil pés de altitude que me transmite a inebriante ilusão de me encontrar fora do alcance das contrariedades e das preocupações terrestres. Refastelado no assento, de cabeça apoiada no vidro da janela, apalpo-me por dentro e questiono-me. Aos vinte anos, não temos coração. Julgamos que temos; estamos convencidos de que fomos amaldiçoados com uma coisa sagrada, inchada, que estremece ao ouvir os nomes que adoramos, mas não é um coração, porque ainda que abdique de tudo no mundo - da mente, do corpo, do futuro, até da ultima hora solitária que tem - não se sacrifica a si próprio. Não é um coração, aos vinte anos, é uma rainha gorda que murmura na sua colmeia.
Quando é que nos nasce o coração? Quinze, vinte anos anos depois de precisarmos dele?