terça-feira, 20 de julho de 2021

Vergílio

Dela quis sempre tudo. Ver todos os seus rostos, todos os seus medos, todas as suas audácias, aquele sentimento novo que se inventa de cada vez que se a volta do avesso como quem vira uma luva e que faz surgir em si territórios desconhecidos, para onde nos deixamos arrastar aterrorizados, voluntários e seguros de que estamos a aproximar-nos de uma luz que nos cega, mas que nos escombros do interior nos fala de amor, de identidade, de terra por desbravar. 

Tivesse tido eu tempo de a invadir e certamente encontraria por dentro o que amei por fora até à estupidez.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Tu nem sabes a sorte que tens


Poder olhar o mar. Poder olhar o céu. Com a tarde a acabar, poder assistir ao sol a dizer para a lua: vem. Desfrutar da noite quieta.Tu nem sabes a sorte que tens. Para muitos isto é tudo.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Summertime

Fim de tarde, um banco junto ao passeio marítimo, uma silhueta, um vestido florido com as cores do dia, o peito generosamente desnudado, as ancas amplas, a pele branca, o cabelo acobreado sobre os ombros arredondados, sandálias com plataforma de juta, ao pescoço um lenço de seda, ao lado a mala aberta, óculos, tabaco, isqueiro... e por cima um outro lenço, também fino e leve, amarelo torrado. Os cabelos revoltos pelo vento, o olhar atento, absorto, perscrutando o horizonte, o rosto marcado por uma branda e evasiva solidão, mas intenso como no passado, à espera de um sussurro, de um movimento de lábios ou de mãos ou de corpo ou... de ondas no mar ao fundo. Ou, mais ao fundo, Billie Holiday interpretando majestosamente a chegada do Verão.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Sessão da Meia-Noite


"Ladrões de bicicletas" - Vittorio de Sica, 1948

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Apostasia

Toda a minha vida fui um ateu militante, mas perante estes tempos de espírito inquieto não tomarei a mal que rezem pela minh'alma.

Amém. 

sábado, 3 de julho de 2021

Afonso Cachucho*

Petrificado e sem o controlo dos seus olhos, deixou-se assistir à orgia que se iniciava no tapete cor toupeira decorado com pavões e dragões, cujos olhares insondáveis pareciam ganhar vida. Os bronzes de máscaras grotescas, os livros da biblioteca grande, todos os outros objectos iam por seu turno ganhando vida também, como num pesadelo, ao ritmo pontuado de suspiros e gemidos, do jogo inverosímil e alucinante a que se entregavam e misturavam na sua frente os dois corpos de pele macia. O seu espasmo foi o de um homem aparvalhado, fustigado, espicaçado, mortificado.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Sara Pinote *

Morena, olhar profundo, cabelo acobreado, pele fresca e mate, seios cheios, cintura miraculosa, tornozelos finos, uns sapatos de pele de antílope, de salto alto, por baixo do casaco comprido um vestido preto, fino, frio, de mangas curtas, e uma carteira a abarrotar de fantasias. Esbelta e rápida de movimentos, ansiosa por ver e por ser vista. Em momento algum dispensou a máscara. Não parecia destinada a um único amante. Também estava só.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Rasgos da mente

Tenho uma amante imaginária. 
Preocupa-me que tenha começado a escrever-me.

terça-feira, 22 de junho de 2021

História universal da submissão

Despe-te! -- Ordenou um.
O outro tirou lentamente as suas roupas, depois a pele.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Selecção Nacional

O que é um "colectivo" para um EU ainda com tantas necessidades? O que é um "eu" para um COLECTIVO cheio de talento oprimido?

Da resposta às questiúnculas decorrerá a qualidade e a quantidade do ópio que o povo tomará nas próximas semanas.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Penúltima fase do desconfinamento

Primeiro aconteceu um beijo que se prolongou no entrelaçar das línguas. Depois a mão direita subiu pelas costas em busca dos colchetes superiores. Outros beijos se foram perdendo no pescoço à medida que se desapertavam os fechos dourados. O qipao tombou aos seus pés, revelando um busto de belos seios firmes, uma cintura delgada, descrevendo uma curva suave que se alarga nas ancas e se prolonga harmoniosamente pelas pernas. Abraçamo-nos com outra intensidade.

Melhores dias virão.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Dia Mundial da Criança

Cheguei abúlico e como se nada tivesse a negar ou a afirmar sobre este parque infantil onde a beleza prevalece, embora predomine o acidente, a imperfeição da felicidade. Conservo uma velha ternura pelos recantos deste jardim e espero sempre reencontra-lo com o olhar antigo e o cândido sentimento da descoberta. Mas os dias não param de revolutear imperdoáveis e as faces das coisas, dos lugares, alteram-se inevitavelmente. A vida passa, enquanto se espera que ela comece e chega um tempo em que os pássaros já não encontram o céu, em que as estrelas são irremediavelmente maculadas.
As pessoas, essas, continuam bonitas, cautelosas e sensatas. Sinto-me envolvido por uma onda de afabilidade e cortesia, mas nem por isso me sinto obrigado a excessivas diligências para com aqueles que ao fim de tanto tempo me recebem com benevolente cumplicidade. É notório que ambos aprendemos que as ambíguas sinceridades se tornam hoje, mais que nunca, em sentimentos velados e imprecisos, e que as relações humanas estão confinadas dentro de certos limites: na dissimulação entre as contradições, as certezas e as dúvidas.

domingo, 30 de maio de 2021

Sem foto de pouco vale, bem sei

Mas...é que hoje vi outra vez algo maravilhoso. E foi outra vez na marginal de Moledo. Uma imensa bola de fogo tombando sobre o horizonte, ardendo lentamente até desaparecer lá nos confins do mar que era azul cobalto. 
Mais ao fundo, desta vez com uma ligeira bruma, a Cecília Bartoli cantando majestosamente... quanno fa notte e 'o sole se ne scenne me vene quase 'na malincunia.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Palomar

Esta manhã o Senhor Impontual olhou-se no espelho e reparou nas rugas entre o canto do olho e a têmpora, nos sítios onde a pele já não é tão esticada como dantes. O Senhor Impontual não se reconheceu. Pareceu-lhe que está a envelhecer de uma maneira confusa. Os dias aceleram, mas o Senhor Impontual não se sente pronto para o encaminhamento deles. Porém há uma coisa que mais do que outras sinaliza que o Senhor Impontual está a envelhecer. Deixou de corar. Deixou de sentir aquele rubor nas faces, aquela alerta vermelho perante as situações.
Noutros tempos o Senhor Impontual achava isso incomodativo. Desde a infância que sofria por corar com tanta facilidade. Em todas as situações, muitas vezes sem nenhuma razão óbvia, podia sentir um súbito ardor nas faces. Por vezes corava até quando estava sozinho perante um pensamento ou uma recordação. O Senhor Impontual esforçava-se por deixar de o fazer, mas era impotente.
Agora, assim do nada, o Senhor Impontual deixou de corar. Não é por já não se sentir tímido ou achar uma situação embaraçosa. Deixou simplesmente de corar. Algo se apagou dentro do Senhor Impontual. O Senhor Impontual começa até a interrogar-se se a sua disposição para corar não teria algo de valioso, talvez o mais valioso que em si havia. Talvez tivesse significado uma ousadia paradoxal, talvez a sua timidez tivesse sido, na realidade, uma força. O Senhor Impontual procura agora a chama que se perdeu dentro de si, mas já não a acha. O Senhor Impontual sente a saudade tardia que é a crueldade inerente do tempo: compreender as coisas no mesmo instante em que elas desaparecem.

sábado, 22 de maio de 2021

Fiodor

Há lugares que parece que foram desenhados no mapa com o único propósito de absorver a mente de quem os visita. Até dos cães!  Esses lugares, mesmo que não o consigam alcançar com uma única imagem aniquiladora logo à chegada, vão-se alimentando do visitante paulatinamente, consumindo-o desde o seu interior, banqueteando-se primeiro das suas expectativas - dando-lhe uma e outra imagem que este procura desesperadamente, apossando-se depois dos seus anseios, das suas memórias, das suas nostalgias, das suas premências, até que a emoção dê lugar à loucura e esta comece a ganhar terreno sobre a vitima, tal como a maré que chega à praia. O Senhor Impontual, definitivamente, não tem mão nem fôlego para o canino de pêlo pardo.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Geometria descritiva

Com a Primavera, chega o tempo de cuidar dos jardins. O Senhor Impontual, por si, vivia no meio dos relvados: horas a fio executando o corte sempre de acordo com os seus preceitos geométricos. Todos os dias, qual navegador obstinado, ir e voltar naqueles mares de verdura, sulcando, ao sextante, o coração dos jardins. Deixar atrás de si a ilusão de um mundo pacificado, de uma natureza submissa e de uma vida sem surpresas.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Intifada

Quem sou eu, bem pesadas todas as coisas, para me armar em juiz impassível de civilizações tão ricas? Acabaria certamente por ficar afogado em lugares-comuns. E afinal, bem vistas as coisas, todas as civilizações assentam nesta ideia de que de um lado não há mais que uma horda vagamente humana e do outro os iluminados. A colossal e arrogante desumanidade com que é policiada essa fronteira é que é de uma crueldade absoluta. Ninguém escolhe onde nasce. Parem lá com isso. Ou atirem pedras uns aos outros.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Esmeralda

Entre as características de personalidade com que o destino a atormentou, existe infelizmente esta: pronunciar banalidades nas horas cruciais, manter-se de mármore frente às dores dos seus semelhantes sem encontrar uma palavra afectuosa que a aproxime deles, descobrir que tem um coração duro e impassível mau grado o seu desejo de ser uma irmã ou uma confidente.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Funes

Quantos iluminados, quantos artistas de uma fé em que ninguém excepto eles confiam, se humilham e varrem a serradura de quem dorme com eles, e provavelmente lhes dá de comer, desde que lhes permita crer que haja algum alento nos seus insignificantes versos; quantos que, depois de o tempo se aposentar e favorecer os sarcasmos, renunciam inclusive ao ilusório reconhecimento do silêncio desde que assim possam continuar a dedicar horas ao que já não representa outra coisa além de um pretexto falhado de esquecimento. Quantos?

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Professor Mamadu

Desci do hotel bem cedo. Fiquei de pé um instante no passeio a olhar pela rua abaixo onde teria deixado o carro, mas logo depois o avistei. Tirei uma folha de publicidade do pára-brisas: "Professor Mamadu , astrólogo, medium e grande conselheiro de assuntos do oculto", ajeitei-me atrás do volante e com pequenas manobras consegui sair do lugar apertado e entrar na rua. Tomei o caminho em direcção à ponte que me levaria para a outra margem para fora da grande cidade.
Àquela hora o tráfego era escasso e a faixa de rodagem estava praticamente vazia à minha frente. Enquanto atravessava os quarteirões imaginava as pessoas da cidade a acordarem, a espreguiçarem-se na cama a dizerem as primeiras palavras absortas umas às outras ou simplesmente a levantarem-se em silêncio, torneiras a abrirem-se nas casas de banho e os espelhos a encherem-se de rostos sonolentos.
É sempre com alivio, um agradável tremor no âmago, que entro na ponte, pressiono o botão para que o vidro baixe e inspiro fundo o ar fresco. Deleito-me a sentir a confusão da cidade, o seu alarido e movimento a desaparecer atrás de mim enquanto bato, de exaltação mal contida, com os dedos no volante acompanhando a música que a rádio me oferece.
Sair da grande cidade!
Primeiro a aceleração a fundo. Depois, sucessivamente, o caminho estreita-se, as árvores nos lados da estrada vão ficando para trás alastrando quietude. Levanto o pé do acelerador e deixo-me encher com uma funda inspiração pelo perfume adocicado. Deito uma fugaz vista de olhos para mim próprio no retrovisor, da maneira como as pessoas que conduzem distâncias longas sozinhas têm por hábito fazer, como que para se assegurarem de que continuam ali. Reparo no meu rosto. Tem uma cor saudável. Apesar da idade ir avançando, é um rosto sem rugas, apenas algumas finas linhas aparecem quando franzo o sobrolho. Passei a mão pelo cabelo grisalho e virei a cara, estudando-a, como se tentasse descobrir algo. Talvez a barba estilo pêra seja um look forte demais para mim. A verdade é que por mais idade que se atinja, nunca conhecemos ao certo o nosso visual. Todos os dias nadamos na ignorância sobre nós próprios. Mas observando bem, percebe-se o quanto ainda podemos ser. Corpo e alma que se digladiem...