quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Outubro

Acontece sempre em Outubro. Apodera-se do Senhor Impontual uma partícula de lucidez, uma mania, uma atitude compulsiva. Não é sofreguidão. Também não é solidão. Embora o Senhor Impontual tome consciência de que quer estar só. Nesta altura do ano - tal como as árvores - o Senhor Impontual gosta de se desmoronar peça a peça, de se desconstruir de fora para dentro, de se subtrair de componentes que já não funcionam mais. Assim, fragmentos de felicidade, alegria, prazer, vontades, desejos e esperanças vão sendo desarticulados um a um, sem tristezas, sem arrependimentos, sem hesitações, sem contemplações. É um acordo bilateral; do Senhor Impontual para o Senhor Impontual. Depois, se a ideia do desejo continuar presente dentro de si, o Senhor Impontual aceita a eventualidade da atracção e do rebentamento de outros estames, mas jamais para sofrer a tortura lancinante da falta, a comichão exasperante da privação. Acontece sempre em Outubro. Este Outubro vai extraordinariamente quente.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Squid Game

Estação ferroviária. 06:04 da madrugada. O comboio rápido com destino à grande capital acaba de acostar no cais de embarque. Avançam uns de cada vez. Devagar. Entorpecidos. No olhar de cada mulher, de cada homem germina oculto e calado um tempo de espera. Parece que lêem nos olhos uns dos outros, os seus sonhos e as suas aflições. O silêncio, ambíguo, retém-se à sua volta, estranho e solidário. Parece que sabem o fim uns dos outros, as pequenas esperanças e os receios que os calam, de a vida não ser tão generosa como desejavam. Ficam ali de olhos fixos e muito abertos, imóveis e serenos, como se esperassem dai a momentos o instante da morte, uma morte violenta que os liberte definitivamente de toda aquela mesquinhez, da miséria prolongada que os vai prendendo irremediavelmente à vida. 
Vão a jogo. A viagem cumprir-se-à em três horas e trinta minutos. Não há atraso previsto. Na grande capital espera-os uma temperatura do ar de trinta graus centígrados. O inferno. Eles e os outros.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Olá, bom dia

Como estão? Cansadinhos do fim-de-semana prolongado, não é? Foi muito caso Rendeiro, muito Pandora Papers, muita pedofilia de sotaina, muito Globos de ouro, pouco Benfica, pouquíssima rede. Pois eu, apesar de tal como tantas outras pessoas que vivem este extraordinário momento da história da humanidade, não tenho, de forma alguma, a certeza do que está correcto e do que está errado. Por isso, se aqui e acolá vos parecer um pouco lento a compreender as dimensões politicas, tecnológicas, morais e sociais do que se está a passar, receio ter de vos pedir que tenham paciência comigo. Peço desculpa. É uma idade cada vez mais difícil.

sábado, 2 de outubro de 2021

Noite da libertação

Depois de lutarmos toda a noite, as sombras, escravas dos nossos corpos, fingem-se hostis. A manhã chegou depressa. O vento sopra em rajadas, a chuva bate nos pavimentos que o farol ilumina intermitentemente, o mar está agitado, parece reclamar cadáveres. Conservamo-nos no calor artificial da casa, na luz amarela, entre paredes que nos protegem, na intimidade reencontrada, reconquistada. Olho-me no reflexo da vidraça da janela. Tenho a fadiga estampada no rosto, mas é uma fadiga serena, confiante, uma prostração pacífica. Deixo-me tombar sobre o colchão ainda quente. Observo os sinais dos seus ombros. Sei que já nada mudará de ora em diante.


Partiremos no primeiro ferry.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Sermão aos peixes

Vou tentar fazer chegar esta missiva aos vossos olhos e peço que a leiam. Mas não alimento qualquer esperança de que estas palavras penetrem nos vossos corações. Sei que desperdiço a minha tinta e o meu tempo.

Este Mundo está tão breve! Não podemos ter a veleidade de emitir qualquer condenação sobre os seus habitantes. Importa viver primeiro e filosofar depois.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Outono


A maior parte das pessoas, à medida que vai amadurecendo envelhecendo, descobre que passou a vida a dar explicações, e arrepende-se disso, mas continua a fazê-lo.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Sobressalto sistémico

Alguém mandou calar o canto dos pássaros porque o ouvido interior dessa pessoa ouvira uma melodia mais bela! Alguém mandou murchar as flores e as árvores porque o seu olfacto interior descobrira um aroma mais maravilhoso que os aromas da própria natureza. Finalmente, alguém mandou destruir a arquitectura e os objectos de arte porque se apaixonara pelas coisas impalpáveis.
Assusta-me que tenha deixado o céu tão azul.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Palomar

O Senhor Impontual é um desgraçado e desgraçado é toda a alma presa pelo amor às coisas finitas... O Senhor Impontual sente, por antecipação, um profundo tédio aos dias vindouros. A alma do Senhor Impontual está despedaçada e escorre sangue, e não se sente bem em si, mas o Senhor Impontual não encontra lugar onde possa pacifica-la. Ela não encontrará paz nos bosques amenos, nem nos jogos e cânticos, nem em jardins suavemente perfumados, nem em banquetes faustosos, nem em lareiras rubras, nem no prazer da alcova, nem mesmo nos livros e na poesia.
Porém, há uma coisa extraordinária para ver nas margens do Arno neste inicio de Outono: o céu apinhado de pássaros.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Integridade, decência, solidariedade, dedicação à causa democrática

 Jorge Sampaio
(1939-2021)

"Um Presidente da República não é uma folha seca, é alguém que tem de ter princípios e valores que defende a Constituição e está recheado de vivências."

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Setembro


O passado, o presente, o futuro - um livro rasgado em pedaços. 
Por onde começar, a fim de voltar a pôr tudo em ordem?
Hoje estou aqui. Consciente. Dado estar aqui, não necessito perceber os pormenores.
Nem tudo é para ser.

domingo, 29 de agosto de 2021

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Agosto não é um bom mês

... para se fazer uma entrevista a Antonio Barreto.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Tábua de marés

Mas que boa ideia! Que ideia sã! Invejo-lhe a fleuma, a indolência, a despreocupação. Um ideal que para o atingir deve ser preciso ter a mente vazia ou então uma mente preenchida e rica. Vê-la comer foi altamente inspirador. Saboreou cada pedaço de comida, que escolheu com toda a calma. Teve o cuidado de escolher coisas de que gostava, que lhe caiam bem, porque o sabor lhe agradava. Prolongou interminavelmente a refeição, com o seu bom humor a aumentar, com a sua indolência a tornar-se mais sedutora, o espírito mais agudo, vivo, desperto. Uma boa refeição, uma boa conversa. Uma boa f...., pensou a minha mente insana. Que melhor forma de passar o dia. Ao contrario de mim não tinha escorpiões a devorar-lhe a consciência, preocupações das quais não se conseguisse descartar. 
Limitei-me a flutuar com a maré, e nada mais.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

No entanto, recordo perfeitamente ...

No instante de afastar as coxas, sentir um êxtase, um momento de terror luminoso, como deve sentir um homem que salta da ponta de uma falésia indo cair sobre as rochas distantes. Ou o criminoso, atirado para a eternidade pelo empurrão do carrasco, voando sobre o silêncio da multidão. Vê-se tudo, compreende-se tudo, uma luz intensa, um ar calmo. Depois o vento quebra as ondas sobre a cabeça, a luz diminui, o odor a terra molhada intensifica-se.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Entrefolhos

Assim que toquei a campainha a porta abriu-se num movimento imediato. Lá dentro era uma sala de mobília tubular em preto e branco, no chão um tapete de lã, espesso, como uma nuvem por onde me deixei deslizar. Não conservo recordações dessa noite, nem das pessoas que ali estavam, nem da musica que foi tocada. A única coisa que subsiste na minha memória é o seu rosto, uma oval perfeita riscada por lábios vermelhos, olhos de corça, planetas de reflexos escuros no interior dos quais parecia decidir-se os destinos do universo, pescoço fino, o movimento do corpo constantemente a escapar às regras mais elementares da gravitação, nádegas aristocráticas, seios tumefactos de vida e de sumptuosos mamilos. Recordo ainda o encontro dos corpos de onde se exsudaram odores intensos, os dentes a morder a pele, ser conduzido às portas do inferno, de me enterrar até ao fundo. E uma vez percorrido esse caminho, escavar a minha própria sepultura, afundar-me no abismo escorregadio onde outrora tantos outros haviam perecido. Não sei se era sábado ou domingo.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Há autores que começam os seus livros de uma maneira que já nem nos apetece ler mais nada


"Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si."

_Jeferson Tenório, O avesso da pele

terça-feira, 20 de julho de 2021

Vergílio

Dela quis sempre tudo. Ver todos os seus rostos, todos os seus medos, todas as suas audácias, aquele sentimento novo que se inventa de cada vez que se a volta do avesso como quem vira uma luva e que faz surgir em si territórios desconhecidos, para onde nos deixamos arrastar aterrorizados, voluntários e seguros de que estamos a aproximar-nos de uma luz que nos cega, mas que nos escombros do interior nos fala de amor, de identidade, de terra por desbravar. 

Tivesse tido eu tempo de a invadir e certamente encontraria por dentro o que amei por fora até à estupidez.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Tu nem sabes a sorte que tens


Poder olhar o mar. Poder olhar o céu. Com a tarde a acabar, poder assistir ao sol a dizer para a lua: vem. Desfrutar da noite quieta.Tu nem sabes a sorte que tens. Para muitos isto é tudo.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Summertime

Fim de tarde, um banco junto ao passeio marítimo, uma silhueta, um vestido florido com as cores do dia, o peito generosamente desnudado, as ancas amplas, a pele branca, o cabelo acobreado sobre os ombros arredondados, sandálias com plataforma de juta, ao pescoço um lenço de seda, ao lado a mala aberta, óculos, tabaco, isqueiro... e por cima um outro lenço, também fino e leve, amarelo torrado. Os cabelos revoltos pelo vento, o olhar atento, absorto, perscrutando o horizonte, o rosto marcado por uma branda e evasiva solidão, mas intenso como no passado, à espera de um sussurro, de um movimento de lábios ou de mãos ou de corpo ou... de ondas no mar ao fundo. Ou, mais ao fundo, Billie Holiday interpretando majestosamente a chegada do Verão.