terça-feira, 21 de junho de 2022

Godot

Eis que, dominado por uma sensação de invisibilidade, como se fosse o único espectador da sua aparição, da sua única aparição, sem que mais ninguém a identificasse no vazio do ali e do agora, me vi perante aquela figura simples, nívea, quase transparente, leve e despretensiosa que se aproximou vagarosamente, e de repente, num assalto de comiseração me surripiou a tristeza, sem a menor intenção de a restituir.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Roseta

@Yale Joel

As coisas que percepcionamos como belas podem ser diferentes, mas as características efectivas que atribuímos ao que é belo são as mesmas. Reparem. Quando alguma coisa nos salta à vista como bela e nos inflama os sentidos, essa coisa tem mais presença, surge mais nítida, revela um colorido, mais vivo. Salienta-se. Multiplica-se. Brilha. Parece quase iridescente se comparada com a opacidade de outros objectos menos atraentes que a paisagem nos oferece. Não é assim? Não vos penitencieis por olhardes para onde os vossos sentidos vos desviaram os olhos. Ou sois mais bananas? 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Terra e Mar

Horácio viveu durante dez anos com uma mulher da beira do mar. Branca. Meiga. Delicada. 
No inicio, não conseguia passar sem o seu sal fino, sem o seu pulsar suave. Apertava-se com força em volta dela e os seus seios erguiam-se como ondas gigantes que desciam, subiam, de encontro ao peito dele.
Mas gradualmente, o seu cabelo alinhado, dourado e cheio de luz, tornou-se, de repente, demasiado familiar. O seu gosto tornou-se insipido, o seu corpo vazio e os olhos de Horácio desviaram-se para outra, tão sensual e com formas arredondadas que poderia ter sido esculpida na própria terra. Aquilo que ele queria, ela não lhe podia mais oferecer: uma carne que não cedesse, um abraço cheio de fricção e resistência. Horácio ansiava por mulheres da cor da terra, de pés descalços tão firmemente pousados no chão que o vento lhes percorria os cabelos como se corresse por entre as folhas. Mulheres que tivessem braços parecidos com ramos maciços, mulheres que criassem raízes num determinado lugar, à espera que ele chegasse para acariciar a casca delicada e achocolatada das suas pernas e as ramificações das suas coxas tão flexíveis. Uma vez e outra, foi à procura delas, ansiando pela terra.
Na sua inquietude, Horácio, é um homem bom. Liso. Honesto. Partiu hoje para África com bilhete só de ida. 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Paula Rego

O que é admirável na extensíssima obra de Paula Rego é que a sua linguagem pictórica e figurativa não romantiza o ser humano. Por mais que o amor possa estar ali representado, é a denuncia das ilusões e da falsa moral, que sobressaem daquelas cenas mirabolantes de chocantes e dolorosas verdades.

Eu estou grato por esse banho de realidade.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

O elo mais fraco

Quando a cadeia do ódio é urdida a partir do desamor, começa sempre num elo muito frágil: os ciúmes. Aos ciúmes junta-se a presunção e à presunção a obsessão sem fim.

terça-feira, 7 de junho de 2022

Que estranha forma de impotência!

Os homens estão a matar a mulheres. 

Já sinto vergonha... da vergonha.

Pintar Junho

Há largos meses que não aparecia. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio. Começo com um esboço do seu rosto. Na última vez que posou, favoreci-a na tela. Hoje serei implacável nos pormenores e registo cada ruga ou mudança de cor, ou sinal oblongo. Observo-lhe o busto. Um dilúvio de entusiasmo pela sua pele, aquela seiva provocante que anima os meus olhos, faz-me antever horas sublimes. Mas acabo por esquivar a minha própria rendição, prolongar o tempo em volta de um corpo nunca vazio, dar-lhe vontade de se mostrar nu, fazê-lo encontrar em si essa volúpia. Para que consiga deleitar-se com esse exercício é preciso que goste de si mesma, do seu corpo, mas também da personalidade que sofre dentro dele.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

1972

Hoje, ao cabo de um momento, adivinhei tudo; um único minuto bastou para me revelar de repente, sem uma palavra de explicação, graças a um raio de luz irresistível, esta verdade fatal que milhares de factos, repetindo-se todos os dias à minha vista, durante longos anos, não haviam conseguido fazer-me suspeitar.

Ainda sou uma criança.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Banco Alimentar

Notei nas pessoas um certo desconforto quer ao serem abordadas pelos voluntários com o saco, quer depois ao deposita-lo, já preenchido, nos contentores. Não sei se vi ali o desconforto da necessidade de contribuir (esse assalta-me sempre), se o desconforto da sua própria necessidade, presente ou eminente. 
Mas...não quero "alimentar" essa ideia.  

sábado, 28 de maio de 2022

Linhares da Beira

A forma das casas baixas e sombrias pouco ou nada mudou de há cinco ou seis séculos a esta parte. Julguei sonhar quando vi através das magnificas janelas manuelinas, aqueles grupos de mulheres de olhar selvagem e linha escultural, que fiavam a sua rocada na sombra e conversavam entre si numa língua quase imperceptível. Parece que todos aqueles espectros pardacentos tinham acabado de quebrar a pedra do túmulo para executarem entre si uma cena de outra época, de que fui o único espectador vivo. A pouca vida das ruas da aldeia tem o mesmo caracter de estranheza e arcaísmo que parece fielmente copiado do modo de viver duma geração que já passou.
Não me importava nada de cá morar. Podia manter-me a papas de milho e pesto de urtigas.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Vista aérea

Lá em baixo, homens e mulheres, mensageiros dos deuses, nomeiam as estrelas e as figuras do céu, dizem aos outros homens e às outras mulheres, amamos-vos e ensinar-vos-emos a viver ensinando-vos como curar as maleitas, escutando e transcrevendo o que dizem os vossos gritos e as vossas falas. Ensinar-vos-emos a tornar-vos amigos do mundo para não serdes estrangeiros nele, a sonhá-lo, a sulcá-lo, a usá-lo. Lá em baixo, homens e mulheres derramam a palavra, como um pólen abandonado ao vento, para transmitirem as histórias apreendidas com o refluxo do mar e com o fluxo da névoa, as histórias e lendas do mundo e da vida. Cá de cima, não tarda, o que se verá é a noite a distribuir por cada um a sua solidão, o medo, o susto e a redobrar um sentimento que todos já conhecem - a inquietude da incerteza.

Sou tão telúrico!

sexta-feira, 20 de maio de 2022

A costureira triste

Pude finalmente encontra-la. Vejo-a agora, pela primeira vez, depois da sua triste desaparição. Estava sozinha na sala quando entrei; reconhecendo-me, fez um movimento involuntário, como para se levantar, como que para se pôr em fuga, depois ficou imóvel, e o seu rosto pareceu cobrir-se, repentinamente, com um véu de púrpura inflamada. Foi contagioso, porque eu também senti que corava até à raiz dos cabelos.

-- Como vai, Senhor Impontual? Vem por causa do fraque? - exclamou, estendendo-me a mão.
Pronunciou estas simples palavras com um tom de voz tão suave, tão tímido -- e tão terno! --, que senti vontade de cair de joelhos diante dela.
Respondi friamente que sim, embora não tenha sido esse o motivo que me levou até ela.

Olhou para mim dolorosamente, depois baixou os seus grandes olhos com ar resignado e continuou a trabalhar na Bernina.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Palomar

Está-se no meio do mês de Maio e no ar desta manhã, por entre os pingos da chuva suave, já paira a fragrância do jasmim, do alecrim, da madressilva e das mimosas. Os botões da catalpa rebentam nas árvores, parecendo estrelas, o seu perfume a leite-creme espalha-se delicadamente pelo ar. Numa fase de profundos desafios à humanidade, o Senhor Impontual, figura míope, distraída e introvertida, não para de se interrogar se alguma vez os senhores das armas terão inalado este ar. Talvez não. Não é de espantar, a guerra começa antes da aurora.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Perguntar não ofende

Esta semana há greve da Função Publica. Será sexta-feira?

Tantos países a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas... ninguém resolve o problema do sexo entre pessoas do mesmo casamento?

Há serviços públicos, como por exemplo as Conservatórias, que não atendem o telefone há dois anos por causa da pandemia. Será um problema endémico?

Em que planeta fica o «mundo livre« que a NATO defende?

Como é que se ressuscita uma tangerineira moribunda ?

Marcelo, o presidente, disse que «Portugal é um beneficiário liquido da situação de guerra». Isto diz-se?

Sabem o significado da palavra «abesbílico»?

Segundo um estudo publicado no jornal Publico, quatro em cada cinco jovens gays ocultam a orientação sexual aos professores. Mas porque é que os jovens deveriam revelar a sua orientação sexual aos professores?

E no festival de Cannes? Há algum filme ucraniano?

É este mês que se paga o IMI, não é?

Já leram o artigo do MEC de hoje no Publico?

Varíola dos macacos?


Porque é que isto nos está a acontecer?

terça-feira, 17 de maio de 2022

Metadados

É certo que se tem vontade, necessidade, que o mundo seja branco ou negro, que os homens sejam inocentes ou culpados, santos ou escumalha. É uma cisão que dá segurança. Cada um tem o seu modo de vida, tem o seu papel. O cinzento, isso é que não é assunto nosso. O intermédio não se sabe bem onde se encontra. As fronteiras devem estar claramente estabelecidas, desenhadas. Consoante o lado onde cada um se encontra, assim se é capaz de dizer a que campo se pertence. Tem-se necessidade de coisas límpidas, e legíveis, e duras. No entanto, a mim, acontece-me acreditar que a realidade é mais contrastada. Aprendi que a luz e a sombra são indissociáveis. Aprendi que é preciso fazer escolhas na base da tridimensionalidade. Na sombra própria e na projectada. Apreendi a puxar-me as orelhas. 

segunda-feira, 2 de maio de 2022

De Dostoiévski a Shevchenko, num ápice

Está uma tarde maravilhosa, uma dessas tardes que apenas são possíveis quando somos crianças. O céu está tão cheio de azul, tão luminoso, parece pintado de fresco, que quem erguer os olhos para ele vê-se forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens maus e caprichosos? A própria pergunta é infantil, muito infantil, mas oxalá ao amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!

Entretanto, há um tempo na Ucrânia onde armas roncam. Há um tempo naqueles terras suavemente onduladas onde jazem, enterrados, corpos cossacos com a cabeça quebrada.
Mais uma vez o sangue das pessoas.
Está a jorrar...

terça-feira, 26 de abril de 2022

À espera do sol


 Andrei Tarkovski _ "Nostalgia",1983

domingo, 24 de abril de 2022

Vejam bem

Que hoje, importa mais do que nunca - e isto não é uma constatação grandiosa - comemorar, com virtuosismo, a memória e a fidelidade, a resistência e a música como alternativas à mentira e à escuridão, percebendo-se que a liberdade nunca será o paraíso perdido em que, por vezes, neste tempo novo, nos querem fazer acreditar.

sábado, 23 de abril de 2022

Frontispício

Mais de dois anos passaram pelas pessoas. Hoje caíram as máscaras. As pessoas estão mais bonitas, mas os seus rostos reencontram-se sempre num vinco eterno. Os dias, as agruras, a fadiga, o encarceramento porventura, atenuaram-no, mas o essencial está intacto. O rosto não é coisa que mude verdadeiramente. Há traços que as pessoas não perdem, que trazem consigo toda a vida, apesar do amadurecimento, apesar da deformidade, apesar das provações. Pode ser a doçura. Ou a infância. Ou a desgraça. Ou a culpa a perfurar o pensamento. Ou o áspero sorriso em silêncio. Mas está lá. Sempre. Para sempre.  

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Alguém sabe ler o céu?

O Senhor Impontual está aqui sentado, num amorfo dia de Abril, a tomar uma cerveja de mar ao fundo. Tudo em seu redor se encontra em permanente mudança; o sol alterna entre projectar sombras profundas e em varre-las de seguida para outro lugar. A lua, desfocada, já está ali de guarda, pendente acima da linha do horizonte, como um sopro de ar suspenso criando um ambiente crepuscular interminável a fazer acreditar na elasticidade do tempo. As horas a espalharem-se diante do Senhor Impontual, e o amanhã a tornar-se tão vago que deve estar mesmo muito longe. Entretanto, o relógio repicou, a tarde retraiu-se e fez ricochete, pairou uma luz acinzentada e soprou uma aragem fresca que se dissolveu na escuridão. 

Alguém sabe ler o céu?