quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Largas noites

As circunstâncias que levaram àquela história de amor tão intensa quanto fulgurante desenrolaram-se sob o signo da estranheza e da fatalidade. Envergava, atendendo à circunstância, um fato azul escuro e uma camisa branca com dois botões abertos. Depois de me sentar, uma rapariga ficou varias vezes a olhar para mim. Relances furtivos sem mensagem particular. Pensei, trata-se da atracção dos contrários, eu branco ela morena, e sorri. A moça respondeu ao meu sorriso algum tempo depois e pude ver o que era uma boca que se entreabria para se dar, informar que não havia, nesse instante, senão um destinatário a quem era oferecido o elogio e a prenda. Naquele momento da ronda dos astros, duas únicas pessoas em todo o mundo podiam estar ali à espera de um encontro, a rapariga do sorriso e eu. Vi-me embrenhado no interior de um buraco negro do espaço, pensei com todas as minhas forças, as minhas energias, todas as luzes do céu me atraíam para o mais fundo, para o centro do meu corpo, onde a última partícula tremia por uma mulher que não conhecia. Sem uma borda de mundo que me servisse de referência, sentia-me desvalido de linguagem e de lei, um homem do espaço sozinho e apaixonado por um meteoro que o deslumbrava. O sagrado estava ali, ao alcance do corpo, bastava a minha mão tocar aquela mulher e calar-me.
Achei-me prisioneiro, permissor de um espaço e de um tempo onde não se ouviam senão  os ofegos, o roçar de peles e marulhadas de saliva. As palavras e os corpos de cada um, contaram ao outro as histórias das suas vidas, desde o primeiro dia até àquela noite, para que ambos soubessem os labirintos e os porquês dos meandros da existência que estreitava nos seus braços. Regressados de manhã às intersecções de latitude e longitude de um tempo ordinário, tivemos de interromper a embriaguez, a overdose desejante que acabavam dos nos unir, para nos desfazermos um do outro. Extrair-nos, separar-nos, cortar a unidade que algumas estrelas tinham visto nascer. Fadiga e manhãzinha, o tempo dos homens ditou novamente o ordenamento dos corpos na cidade.
Eu disse adeus, ela ficou a ouvir Lionel Richie em "All night long".

14 comentários:

  1. Man With a Chair, eu acho que tu és um nada mentiroso (atenção! máxima atenção, a palavra 'mentiroso' é para ler em castelhano, que tem uma sonoridade fabulosa e faltava aqui no texto uma banda em chill out às avessas :)

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    1. Alexandra, essa é uma afirmação arriscada. Toda a gente sabe que um mentiroso precisa de ter boa memória. :)

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  2. Oh, Senhor Impontual, por quem é!...Esse discurso rebuscado já caiu en desuso...Viu uma mulher, ela sorriu-lhe, sentiu-se fascinado e daí a nada já se envolviam em troca de gemidos ofegantes? Acho muita parra e pouca uva, se quer que lhe diga...sem romance, sem ternura, sem nada, tudo o que disse não passa de conversa fiada...

    Durma bem, Impontual. :)

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    1. A Maria Antonieta gosta é de histórias mão cheia. Mas eu só sei contar histórias de existências errantes, assim como almas penadas pelos corredores das horas. Ali na margem das pessoas sem história.

      (Julguei que já sabia isso.)

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    2. E julgou muito bem, Impontual.

      Ficou aborrecido? Não fique.

      Um abraço. :)

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    3. O aborrecimento geralmente vem de fora.

      Abraço, Maria Antonieta.

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  3. O seu blogue é todo um programa para falar do modo como os homens sentem e precisam do amor (e das mulheres), pelo que verdade ou mentira pouco importa, são as histórias, as suas histórias. O que achei mais piada foi a ideia do chamamento por um corpo novo de mulher, essa luz que ofusca, esse desejo que não se consegue adiar. Acho que é muito masculino isso, não obstante se poder passar com algumas mulheres. Curiosamente isso que o atrai é a mim o que me assusta, sempre me assustou.
    ~CC~

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    1. O meu blogue é todo ele dedicado à trama lassa da existência. Qualquer coisita de instintivo faz sentido. E pior, não me assusta.

      Como vai CC?

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  4. Bom dia!
    Um texto belo e, instigante :-))!!

    Beijo e um excelente dia.

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  5. Como sempre leio os seus devaneios e fico a pensar :)) Muito bom.

    Hoje, em texto:-Aves que esvoaçam ... Afastamento dilacerante...

    Bjos
    Votos de uma feliz Quinta Feira.

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    1. Não é fácil ler os devaneios dos outros. Quase nunca nos levam às últimas águas.

      Obrigado. Boa noite.

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  6. Arder sem ficar reduzido a cinzas é pouco.

    Boa noite, caro Impontual :)

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  7. que interessa isso quando a labareda foi alta.

    boa noite, carissima Maria

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