quarta-feira, 3 de abril de 2019

Inanidade

Há quem diga que as casas têm alma. Há quem diga que quando muito, têm memória. A
o longo dos corredores, no acaso dos compartimentos, no espelho da casa de banho, nas portas entreabertas, distingo por vezes, e sempre fugazmente, aquilo que poderá ter sido a família que ali habitou. Ainda ontem à noite, enquanto me entretinha no restauro de umas poltronas velhas e que foram resgatadas a uma casa também ela muito antiga, dei por mim a imaginar as noites, quando apenas subsistia o ronco de uma borrasca ou o sibilar de um vento mau, sou remetido a um passado que não foi meu, quando a mesma borrasca ou o mesmo vento os encontrava todos juntos sentados nestas poltronas, em volta da lareira. O ruído familiar, o odor comum, o cinzento de um céu, as vozes a cochichar, as crianças que crescem, as saídas na manhã azul e os regressos na noite negra, o prado à janela, o odor quente dos pratos que aquecem em lume brando, a telefonia que graniza na indiferença de outras misérias, os anos que desfilam. 
Penso em tudo isso, embora não seja um sentimento que me pese, não são feridas minhas que se reavivam, não é uma estranha melancolia, nem uma espécie de vácuo na alma. Não sinto dor ou tristeza, mas uma estranha lassidão imprecisa. Na verdade meço o tempo que decorreu. Contemplo vidas antigas como se séculos me separassem do instante presente. Fico-me pela vacuidade de tudo isso. Na inanidade de umas poltronas meticulosamente restauradas. Embora me custe a entender o ânimo leve de quem se livrou delas.

14 comentários:

  1. Ah, Impontual, hoje sim! Hoje, este texto veio bulir, e muito, comigo.
    Não me irei alongar, isso seria um sacrilégio...

    Um abraço, Impontual.

    Tenha um bom dia.

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    1. Bom dia, Janita.
      Também não me alongarei por demais. Até porque é preciso que o verniz seque em condições.

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    2. Que maldade, Impontual, que maldade. Lembre-se: pessoas não são objectos inanimados, reagem, vivem, sentem...

      Pela minha parte, envernizar nunca foi o meu forte, o meu métier.
      Já quero acreditar que o Impontual seja um experiente restaurador de antiguidades, logo, sabe usar a quantidade de verniz apropriada para que não estale facilmente...

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    3. Um amador, porém apaixonado. Tenho sempre receio que o verniz estale.

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    4. Quando o verniz secar, sff, coloque nos cadeirões o almofadão de encosto e o de assento,( em bonita ramagem de tons pastel) e mostre-nos o efeito.
      O cinza que é bem bonito, ficará lindo...

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  2. Isto sim é mobilia que se apresente!
    Invejo-lhe o jeito para as manualidades.

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    1. A Tétisq é que nunca dormiu uma sesta naquela cama. Olhe que ia fazer-lhe bem a esse seu Art Deco tardio. :)

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    2. Eu olho para aquilo e só me vejo a escorregar por ali abaixo ...

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  3. Lindo texto!
    Eu sou dessas que acredita que as casas tem almas - ou egrégoras de energia. A gente entra e logo sente a energia entre as paredes, das pessoas que viveram e vivem nelas. Por isso, nas três vezes em que me mudei na vida, nós sempre pintamos a casa nova. Também tenho por regra não levar panos de limpeza usados de uma casa para outra.

    Evito as antiguidades, quando não conheço suas origens, justamente por acreditar que elas trazem energias. mas essas cadeiras parecem tão confortáveis... e são bonitas também.

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    1. Aprecio sobremaneira o carisma das peças que já tiveram outra vida. Porém não sou muito dado a venerações "religiosas". Mas acredito que na sua inanidade podem ter outra vida. Basta poli-las e enverniza-las.

      Obrigado por ter vindo, Bailune.

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  4. Admiro muito a paciência e o jeito, Impontual. Um ressuscitar a Art Deco, gosto muito!
    Depois queremos ver o resultado final, até porque poderá precisar de um toque feminino[risos]

    Sorria, Impontual ;)

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    1. está sempre sujeito a um toque ou um retoque. nunca definitivo.

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  5. Voltou-lhe o tesão, Sr. Impontual? :)))
    Deve ter voltado, porque esses cadeirões estão magníficos.

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