segunda-feira, 6 de abril de 2020

Saida precária

O vírus caiu sobre a cidade. Pousou os seus tentáculos e impõs o ditame da rareza. Como se porventura se tramasse uma indelicadeza no mundo, os citadinos caminham mais rígidos, ombros direitos, passo rectilíneos, carregam agora o peso de uma fatalidade impensável. As guitarras eléctricas calaram-se e deram lugar a Mozart e é agora a sua perfeição silenciosa e tensa que povoa as ruas. O vírus é uma névoa que emite um som abaixo do macadame. As horas invadiram a atmosfera para aí se desfiarem mais lentamente, espessam-se e pousam as suas volutas de segundos sobre as pedras frias da calçada. Gargantas secas. Gestos comedidos. Respirações contidas. Vive-se em poupança. Crânios abrasados, mãos suadas cobertas, amolentados os desejos, os pensamentos revestem-se de desinfectante e de sabonária rosa, cada qual segue como um ladrão à procura de uma nesga de terreno onde se refugiar na espera de uma nesga dois metros mais adiante. Há uma chapa absoluta que tampona o território, o vírus abre valas no asfalto. Quem não for rápido e expedito será estraçalhado.
Em casa, na televisão, o cenário é o mesmo. Mas deixem-se estar, que pelo menos tendes onde vos sentardes a uma distância de relativa segurança.

12 comentários:

  1. ...preciso de ir buscar víveres e cigarros e pagar contas no MB...
    ...mas regresso num ápice...

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    1. Mas precisamos de sair, nem que seja para trazer os víveres...
      E o supermercado que frequento desinfecta tudo até raiar a obsessão, tudo, mesmo, incluindo o carrinho que nos entregam e, antes disso, as mãos... não deixam entrar mais de 4 pessoas, têm sistema de senhas, instalaram há semanas os acrílicos de separação funcionário/a de caixa- clientes, etc. Diria que me sinto mais protegida ali do que em qualquer unidade de saúde, acreditas?

      Temos o dever de nos acautelar e aos outros, senão damos em paranóicos e eu não pretendo ficar paranóica :)

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    2. Alexanra, por quem é, vou contar-lhe que a minha vontade é sair por aí como se ontem se tivesse dado o big bang.

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  2. pois eu cá acabei de comer depois de 15h de jejum. Parece-lhe bem?

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    1. Maria, parece.me que tem de cuidar desse estômago. :)

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  3. Na cidade sentia uma tensão enorme, os olhos das pessoas a baixar-se mal encontravam outros e uma pressa enervada em tudo. Na aldeia vejo uma a duas pessoas por dia e caminham sem medo, acho que falam com as árvores e isso acalma-as.
    ~CC~

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    1. CC,deixe-se estar. Esta paisagem de pedra não pode satisfazer um sentimental. Fere. A sombra é demasiado densa, a luz crua de mais 

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