Curiosamente já há entre nós aqueles optimistas cegos e que interpretam todos os acontecimentos a nosso favor, que vêem em todo o lado sinais de grandeza aparente e que o futuro, inevitavelmente, chegará por uma estrada forrada a rosas. Entretanto, nas ruas, o desespero é grande e aninha-se em todos os cantos. Não há chão para tantos pés.
quarta-feira, 23 de novembro de 2016
segunda-feira, 21 de novembro de 2016
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
Decantador
Não há nada como numa sexta-feira chegar cedo a casa, um decantador, um copo de balão e um terraço voltado para o mundo onde passar algum tempo sentado a ouvir o cair do dia, a agitação da chegada das aves nocturnas contra um céu cinzento, cada vez mais escuro. Uma certa solidão imposta e alguma paz é o que se precisa para reflectir. Impressões dispersas, pedaços de conversa, observações e opiniões meio formadas atravessam-me a mente, e uma sensação de tranquilo bem-estar instala-se, devolve-me a mim próprio e fico com maior consciência do prazer da própria companhia. Reclino-me na cadeira de palhinha que faz baloiço, beberico calmamente o vinho, e percebo que sou um terrível juiz de carácter que, com efeito, se vai enganando um pouco em quase tudo. Mas que, sozinho, debaixo deste cenário romanesco, esforçando-me por aceitar esta nova visão de mim mesmo que me permite entre outras liberdades nunca imaginadas, a de admitir que ainda há uma série de beijos e abraços por dar. E que isso, de entre todos os rigores de uma reflexão profunda, ainda é o que me sossega. Logo mais vou ao jazz.
quinta-feira, 17 de novembro de 2016
«Sou eu. Estou bem. Amo-te».
Já não sabia qual era o significado da primeira frase, a segunda era falsa e a terceira parecia já não ter importância nenhuma.
quarta-feira, 16 de novembro de 2016
«A rapariga no comboio»
Numa mão o café num copo plástico, na outra um croissant do qual mordisca apenas a ponta. Retira um brinco, atende o telefone. Um par de pernas cruzadas, sapatos de couro falso trançado e meias pretas mal esticadas, passajadas. Uma imagem a preto e branco que cheira a miséria e a esforço, a pequenos esquemas e a uns euros duros de ganhar, a coração que se aperta e a sonhos que se fazem esperar. Mirou-me com um olhar agudo. Tentei sorri-lhe. Não consegui o esboço. Éramos os únicos ocupantes da carruagem.
terça-feira, 15 de novembro de 2016
Esplendor
O dia de hoje parece uma ilha. Na manhã desta terça-feira, pergunto a mim mesmo se serei capaz de vencer a prova de viver rodeado de esperanças por todos os lados. Que maravilha o orvalho, que sol mansinho mas radioso, que brisa delicada, que estranho tremor o da liberdade e da expectativa! Parece que me basto a mim próprio. Os demónios, esses, parecem compensar o que os deuses vão tirando. Logo mais a lua virá grande?
segunda-feira, 14 de novembro de 2016
Olá, bom dia.
Como estão? Cansadinhos, não é? Foi muito Trump, muito Web Summit, muito Pedro Dias. Pois eu, apesar de tal como tantas outras pessoas que vivem este extraordinário momento da história da humanidade, não tenho, de forma alguma, a certeza do que está correcto e do que está errado. Por isso, se aqui e acolá vos parecer um pouco lento a compreender as dimensões politicas, tecnológicas, morais e sociais do que se está a passar, receio ter de vos pedir que tenham paciência comigo. Peço desculpa. É uma idade difícil.
sexta-feira, 11 de novembro de 2016
Tríptico
Hoje morreu uma parte muito significativa da minha música. Talvez haja um deus acima. Um frio e triste aleluia.
quinta-feira, 10 de novembro de 2016
Caverna
Por muito que nos oiçam e esmiucem as nossas confusões em fragmentos pequenos, tão pequenos que não possamos fazer outra coisa senão sorrir. Por muito que nos ofereçam música que nos comove, leituras de poemas que nos dizem que é de nós que está a falar, e é de nós. Por muito que nos ofereçam livros que vão para além da limitação das palavras. Por muito que nos mostrem caminhos que dão outros significados à vida. Por muito que nos possam oferecer, se não nos oferecerem a emoção da caça, aquelas cocegas na barriga e a certeza-incerteza de saber se a presa será ou não nossa. Nada feito.
quarta-feira, 9 de novembro de 2016
Bosta.
Agora é definitivo. Desenvolveu-se hoje, mais do que nunca, a tese que reduz o mundo inteiro a uma espécie de massa bosta acrítica, destinada unicamente a regular a cotação do petróleo, fazer a vénia e desembolsar os prejuízos colaterais. A unanimidade da derrota previamente anunciada redundou numa bela trump(a). Ou bosta se preferirem.
terça-feira, 8 de novembro de 2016
A imposição do cinza.
Recordo como se fosse hoje. Foi num dia cinza, cinza, cinza da cor do tédio. Atrás do mar, agitado, via-se um magote de nuvens presas no fim do horizonte a enclausurar o céu que ganhava a passos largos uma associação a reminiscência desagradável. A textura do silêncio em redor era de tal ordem que parecia destilado, depurado. Apareceu com a sua graça, com a sua ousadia e humor. Trazia algo de cândido e provocante ao mesmo tempo. A surpresa do diálogo ocasional a intensificar uma impaciência de mãos, os lábios agudizados pela chama ágil do olhar intenso, o cenário a oferecer conotações incitantes e a impaciência a não permitir grande margem para adiamentos, um braço invisível, tórrido, a indicar com delicadeza o túnel do pecado em direcção ao lugar de todos os sacrilégios, onde tudo correria na perfeição, sem quaisquer resquícios de outros apegos, mas apenas atordoados pelo sentimento de posse mútuo, pelo desprendimento, pela frenética simultaneidade, pelo infantil sentimento da realização momentânea. E assim foi. Num dia cinza, cinza, cinza da cor do frio.
Leitura
Meus olhos resgatam o que está preso na página: o branco do branco e o preto do preto.
__Herberto Helder - Bebedor Nocturno, poemas mudados para português
sábado, 5 de novembro de 2016
Claridade
Clareou.
Vieram pombas e sol,
e, de mistura com sonho,
pousou tudo num telhado...
(eu, destas grades, a ver,
desconfiado.)
quinta-feira, 3 de novembro de 2016
Grau Zero
Há dias em que, em vez de se abrir um jornal, bom era entrar-se num estado de ausência absoluta. Pender para a aproximação a um sifão misterioso que nos aspirasse para um outro mundo, território de menos angústias, campo aberto a outras euforias desmedidas, barco sem amarras arrastado por uma corrente invisível, a derivar insensivelmente para o largo. Aprendendo-se assim a evitar todas as formas interrogativas e a articular frases e semblantes que não exigissem nem inspirassem nenhuma explicação, nenhuma justificação, nenhuma continuação.
Sistema nervoso simpático.
Já há muito que não via duas mulheres exercitarem-se na insinuação sarcástica. Há muito que não corava desta maneira, que não sentia tão vivamente o ridículo de que se cobrem duas mulheres fogosas quando tentam atingir a rival através de mordeduras idiotas, considerando a saliva um veneno e olhando de lado ao lançar as flechas da troça. Aceitar pegar nas armas do adversário para combater sempre foi um erro muito comum, contudo a pseudo-indiferença e o riso de ódio desenhados no rosto de alguém também está próximo de um espectáculo horrível. Vergonha alheia!
quarta-feira, 2 de novembro de 2016
Gasganete.
Da vida escolhia sempre o que era palpável, caminhos seguros, corrimões onde se agarrar. Ia sempre direito ao alvo. Trilhava sempre caminhos que passassem longe da ribanceira imaginária de onde alguns - os cabeças-de-vento - se lançavam com a ilusão de aprenderem a voar na vertigem da descida. Preferia sempre ancorar em terra firme. As nuvens não foram feitas para se andar sobre elas. Ria-se dos poetas repentinos, desconfiava dos boémios, dos noctívagos, dos apaixonados. Propunha-se sempre, e que ninguém duvidasse que o conseguisse, a descobrir os truques do mágico: como saiu o coelho da cartola ou a artimanha do ilusionista ao serrar ao meio a voluptuosa assistente. Nunca fraquejava. Só que um dia as picadas do ciume, da mesquinhez e da vingança estrangularam-lhe o gasganete, pagou caro o desprezo pela ficção, viu-se obrigado a fantasiar e não sabia. Só lhe ocorriam cenas de péssima qualidade dramática. Deixou de se bastar a si próprio. Está agarrado ao arbusto no meio do precipício.
segunda-feira, 31 de outubro de 2016
Bruxas.
Puxou-me para si, depois empurrou-me bruscamente para cima da cama larga, deitou-me ao atravessado sobre o edredão, quis levantar-me, apertar-me nos seus braços, fazer-me sair de um mundo onde não tinha vivido para me arremessar para um mundo onde não vivia ainda; os seus lábios entreabriram os meus, conspurcaram os meus dentes, que tinha apertado, a língua demasiado carnuda assustou-me, o sexo, estranho, não se moveu - esperava ausente e recolhido. Os seus lábios passearam sobre os meus lábios: umas pétalas que me varriam de lés-a-lés. O meu coração batia demasiado alto e eu queria escutar aquela doçura, aquele adejar novo. Beija-me, pensava eu. Ela traçou um circulo à volta dos meus lábios, rodeou a agitação, colocou um beijo fresco em cada canto, largou duas notas excitantes, regressou, hibernou. Os meus olhos estavam redondos de espanto debaixo das minhas pálpebras, o ruído das ondas nas rochas era vasto demais enquanto ela continuava: descia nó após nó, por uma noite para além da noite até largar um travo de mel na minha boca que me fez saber, então, que tinha estado privado dela antes de a conhecer. Pão por Deus.
Poliprion Americanus
Dostoiévski deveria ter isto em mente quando definiu o homem como uma criatura que se habitua às coisas.
Ressonâncias.
Às vezes a vida não lhes dá aquilo que desejam, e esperam. Esperam pacientemente, inventam desculpas para continuar à espera, e inventam esperanças com que se alimentam. E o tempo passa e passa, e querem que o dia de hoje não dê lugar ao dia de amanhã, que não seja a continuação do dia de ontem. Às vezes, têm a perfeita noção de que os deuses vão permanecer inactivos. Às vezes, ficam ali a tentar ser já sem que o tempo exista. A aprender que a expectativa é o presente do futuro e que a salvação, às vezes, vem em comboios muito atrasados. Às vezes, acontece...
sábado, 29 de outubro de 2016
Já em 1881 Machado de Assis ensaiava sobre a polémica problemática do exercício da parentalidade e o consequente processo de subjectivação da criança.
«Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semi-demência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.»
Machado de Assis in Memórias póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis in Memórias póstumas de Brás Cubas
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