sábado, 18 de março de 2017

Atrasados

Ao sábado de manhã gosto de ir até ao Café, sentar-me na esplanada, pedir um café e ler os atrasados. Gosto de café. Gosto de atrasados. Noutros tempos talvez me irritasse esta mania insistente das ciências da comunicação, que consiste em filtrar a insignificante espuma dos dias para dela extrair apenas a matéria empobrecida. Só que dentro de mim há já algum tempo que as marés vivas foram dando lugar a um mar de putas. E que magnifico mar de azul lavrado avisto eu hoje! Vocês, não sei. Mas, se ainda vos abespinhais, ide  "AQUI" e "AQUI"  e depois contai-me de que cor é o vosso mar, vizinhos.

quarta-feira, 15 de março de 2017

E também abomino mediadores

Nunca dizem acidente, dizem sempre colisão. Acidente significa que não há culpados. E isso não pode ser.

terça-feira, 14 de março de 2017

Cú de Judas



Esta última semana passei-a a fotografar árvores e pensava por lá ficar mais um par de dias, mas por motivos de compromisso cá da minha vida tive de voltar à grande cidade.
O choque é frontal. Onde havia ciprestes há pessoas, onde havia espaço há carros enfileirados a perder de vista, onde havia terraços voltados para o horizonte há esplanadas sombrias com mesas carregadas de gente, onde havia pássaros em chilreo há músicos de rua. Onde havia um mar levemente ondulado há gente que grita, gente ferida, gente que fere, gente que disputa lugares, gente que não sorri, gente sem rosto, gente curvada sobre si mesma, gente que ultrapassa pela direita, gente que pára sem travar, gente que muda de direcção sem dar sinal, gente que vai, gente que vem, gente que fica... gente, gente, gente.

Acreditem, eu não tenho absolutamente nada contra cada uma destas pessoas individualmente, mas quando se juntam em forma de multidão... às vezes abomino-as. Não sei se podia dizer isto? 
Mas vá lá, ganhei um bilhete para o Rodrigo Leão & Scott Matthew no Primavera Sound, vá lá.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Constança

Violentas rajadas de vento vindo do norte abanavam as árvores do jardim assobiando entre os ramos e os troncos. De pé, em frente à janela, via a vegetação agitar-se na escuridão. Tinha uma ideia exacta daquilo que desejava naquele momento: uma parcela do tempo presente, suportar o peso desmedido do pensamento e apegar-se à trama lassa da existência, um breve instante subtraído ao formol dos hábitos, qualquer coisa de instintivo, quiçá uma lufada de sexo à toa e que depois tudo continuasse como antes. Não sendo contudo falho de interesse um regresso às origens da espécie para descobrir aquilo de que realmente é feita, reiterando o desejo de ver nascer a aurora, prometa ela o que prometer.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Frederico.

A noite passada teve um pesadelo e acordou a gritar sobressaltado, mas agora não consegue recordar-se do pesadelo por meio de palavras, ele quebra-se em pequenos fragmentos que vão perdendo a cor rapidamente e depois evaporam-se por completo. Sente-se culpado porque não se recorda da razão de ter acordado a gritar. Tenta achar alguma coisa para justificar o incómodo, mas quanto mais procura uma história para contar, mais o seu espírito se esvazia e tudo o que consegue dizer é: "desculpa ter-te abraçado daquela maneira..."

quarta-feira, 8 de março de 2017

Cavalleria Rusticana


Se eu tivesse sido compositor, era esta música de Pietro Mascagni que eu haveria de compor. E então, dedicá-la-ia a todas as mulheres, e estas haveriam de sorrir graciosamente, todos os dias, sem o impulso de efemérides, sem nada, por tudo, só porque sim. E a elas juntar-me-ia num sorriso maior. 
Mas não fui. Tenho pena. Muita pena. Fico fora de combate.

terça-feira, 7 de março de 2017

Ia agora ali a passar e... chegou a Prima.



Fez de conta que não me viu, não me sorriu, não me falou - a sostra. Pois eu há muito que furtivamente lhe contemplava os lábios, e o resto, e estou seguro de ter fantasiado e imaginado o impensável com aqueles lábios e com o resto, antes de ter a sombra da sua realidade diante de mim. Ter imaginado aqueles lábios, e ainda o resto, noutros lábios e noutros corpos tem sido também uma penitência. Acto de contrição: um dia ainda viverei somente a sonhar com ela. Um dia.

Garfield

Eu, que não sou de intrigas, nunca imaginei dizer isto, mas é que anda aí um blog de um gajo que é gaja que me diverte à grande. E está cada vez melhor. Até a mim me deixa assovelado.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Salvador Sobral



Nunca fui muito de festivais da canção. Confesso que não vi nada de nada. Não conheço as outras canções que lá foram a concurso. E confesso ainda que só ouvi a canção na viagem matinal que fiz pela rede. Parei, escutei e senti um leve tremor... palavras melodiosas dardejando tranquilamente sobre a superfície das águas profundas do meu oceano pacifico. Estou varado. Não me reconheço. Confesso.
Parabéns Salvador, parabéns Luísa.

sábado, 4 de março de 2017

De Torga a Calvino, num ápice

Que interessa? Se a vida é isto o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre este areal coberto de um sol manso e tépido, um manto ondulado de água azul resplandecente, de onde esvoaça uma gaivota solitária, e mais dois seres — eu e o cão de pêlo pardo — silenciosos, escancarados, pasmados, a olhar e a ouvir o arrulhar das ondas. A vida hoje é isto. Amanhã será outra coisa qualquer, igualmente inexaurível.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Andorinhas de beiral


Antes de mais nada, o que há a fazer é passear em nós. É passear, olhar e cheirar. Depois, sim, discutiremos e alinharemos o resto das nossas primaveras. Depois.

Ruy de Carvalho

 

"As pessoas deviam  reivindicar mais cultura. A cultura é tão importante como a economia, ou mais. Uma pessoa culta não acarneira. Nao é acarneirado. E isso é um dos princípios da democracia: não ser carneiro. "

  • Na Grande Entrevista da RTP3

quarta-feira, 1 de março de 2017

Quarta-Feira de Cinzas

Acendeu outro cigarro do maço de tabaco americano, chupou profundamente, expeliu o fumo, olhou fixamente e disse: - quando vamos foder?
Deu outra passa no cigarro e ficou a olhar com os seus intensos olhos a brilhar, um levíssimo sorriso eufórico nos lábios carnudos, o mesmo sorriso da jogadora que aposta tudo e mostra três ases quando apenas se esperava um par de cincos, um ligeiro tremor instala-se-lhe no queixo como se estivesse a degustar um naco de carne suculento e delicioso. Estava feliz por falar e ter quem a ouvisse em silêncio.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Vórtice


Cá dentro, amparo e calor. Uma luz suave. Silêncio. Sob a chaminé, uma pequena lareira. Esperança. Ponto zero. A imensidão do tempo. O dia que se prolonga como se não fosse ter fim.
Lá fora, um frio imaculado. Cortante. Uma brancura azul, um sol forte e uma paisagem de montanha. Picos perigosos e selvagens a recordar uma terra sem homem. Uma imagem turva, uma respiração, um batimento cardíaco, um grito. E depois, repentinamente, a partida. Aceleração vertiginosa, dias, semanas, meses, confusão, imprecisões, impontualidades, vivências, pensamentos, experiências, mais e mais depressa, corrida, redemoinho.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Nas margens do Lago Tanganica

Entretanto entre nós há anões e gigantes, imberbes e com bigode, pobres e ricos, taciturnos e barulhentos, nobres e vulgares, abnegados e preguiçosos, comuns e providas de peitos rijos como pêras, gorduchas de pele fria, diferentes e idênticos. Aprendemos que para combater a apatia e a preguiça é necessário viver com o prurido da ordem, da exactidão, da coerência, da harmonia e de um grande sentido de comunidade. Aprendemos que a riqueza não existe a não ser por comparação com a pobreza, que a beleza casa bem com a fealdade e que, na sua ambição pelas alturas, o abnegado necessita da admiração do preguiçoso. Aprendemos a complementar-nos. Aprendemos que o aborrecimento do rotineiro não tem nada a ver com o aborrecimento do que não tem absolutamente nada para fazer. E que, sim, isto afinal pode perfeitamente ser só blogs. E que o Lago Tanganica continua a ser o que se vê daquela janela.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Sete centimetros


Não sabia se era do seu cabelo arruivascado, das sardas ligeiras pelo rosto, do sorriso lento, demorado, que lhe repuxava os lábios carnudos ou se da saia justa - sete centimetros por cima do joelho -, com aquela racha atrás que deixava à vista o perfil das duas pernas até uma altura considerável, ou simplesmente a maneira de olhar quando virava a cabeça.
O que parecia uma mera troca de confidências, transformou-se num ponto de ebulição carnal que o cercava gradualmente. Devia quere-la mais do que costumava querer qualquer mulher, porque naquela tarde, já ao cair da noite, até tremia. Estava tão pouco habituado à ternura não instituída que não sabia como aproximar-se dela, não sabia como tinha de lhe fazer cair a roupa. Em seu redor, retido, um silêncio ambíguo, estranho, solidário.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

"Quinta-Feira"

Não li. Não gostei. Não recomendo.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Eu não gosto de falar sobre coisas das quais pouco ou nada sei

Por isso às vezes deixo-me a remoer, mas a minha questão é: não foi este mesmo mundo que alegou que ampliar e difundir massivamente a fotografia de uma criança refugiada morta na praia era a estaca zero da condição humana e que abaixo daquilo já não havia mais nada, que agora aplaude de pé a fotografia vencedora do World Press Photo deste ano, onde o corpo de um embaixador russo jaz aos pés do terrorista que acabara de o assassinar barbaramente à queima roupa enquanto este discursava em directo para as televisões? Até o erro de casting parece ser o mesmo: um dever para despertar a consciência social.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

A costureira triste

Um fim de tarde de um tédio absolutamente inconcebível, longe de tudo, incluindo de si mesma, a costureira triste lança as agulhas finas e afiadas num vai e vem enrolado, repetido e certeiro sobre o chifon dourado que há-de ser uma saia de godê simples, uma e outra vez.
Por estes dias, tudo em seu redor se encontra tão imóvel e silencioso que a enrola e adormece. O som da bernina é uma estranha canção de embalar, uma cadência tão melodiosa e tão profunda que parece saída das profundezas do mar. Apenas ouve o coração no exercício da sua única tarefa: bombear o sangue. Parece que a vontade ainda não venceu o frio. E que pode fazer se nada a chama? Se as coisas, alegadamente agradáveis, se atenuam como uma vela que vai ficando sem oxigénio. Uma chama que se inclina diante de uma sombra tridimensional composta por pouco de nada. Essa pequena chama restante, é a vaga sensação que ainda a vai fazendo crer na inevitabilidade do regresso, do reencontro. Mas, por quanto tempo? 

Ao sol nascente

Zanele Muholi

Incansável velho louco, Sol atrevido,
Porque vens tu assim
Visitar-nos, através das janelas por entre cortinas?
Devem as estações dos amantes obedecer a teus movimentos?
Miserável descarado e pedante, vai repreender
estudantes atrasados e aprendizes azedos
Vai dizer aos monteiros que o rei sai a cavalo,
Chama as formigas rústicas para as colheitas.
Ao amor tudo é igual, não conhece estação, nem clima
Nem horas, dias ou meses, que são os farrapos do tempo.

__John Done, Ao sol Nascente - Assírio & Alvim