quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Ainda sobre a desertificação do interior

Momentos antes de transpor a circular, enxergo pelo retrovisor uma fila de automóveis como que varridos pelo vento de altitude. Seguem lentamente para as pequenas localidades ao encontro dos cicios nos cemitérios, das genuflexões nas igrejas, dos odores e dos silêncios suspensos nas piras. Olho de novo o retrovisor e tenho à minha esquerda a via central livre. Desmarco-me. Não acuso o mundo desta espécie de cortejo da morte, deste culto aberrante da saudade e da tristeza a indiciar que os seus mortos possam gostar de exibições, ressequidas, de luto e dor. Os meus não gostam de certeza.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Desertificação do interior

É quando não fica ninguém capaz de escutar as palavras que exprimem os nossos desejos, as nossas esperanças, as nossas paixões? É isso?

Alerta amarelo

Cuidado. Podemos não estar preparados para as inundações. Oremos uns de cada vez.

domingo, 29 de outubro de 2017

Rückert

Acabo de despertar para este Domingo de cores douradas que me oferece mais uma hora... mas só me quero morto para os tumultos do mundo, repousar no silêncio e na música, abeirar-me do amor, perpetuar-me nesse paraíso que é a paragem espontânea do tempo.  

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Quitéria

Possuída pelos rancores intactos que acabaram por lhe roubar o sorriso, ostenta agora um olhar fugidio, um rosto fechado. À noite, muito ausente nos seus braços, ainda lhe vai fazendo a esmola do seu corpo, mas sem nada entregar de si própria. No leito, cheia de negligências apressadas, já não o arrasta para aquelas sessões que outrora os faziam arquear de volúpia. O amor físico atamancado, praticado com desdém, é a última ferida que lhe pode infligir, a sua maneira de o censurar por não ser mais homem. Sempre que ele se aplica a interromper aquele lento naufrágio, através de iniciativas funambulescas que satisfazem mais as suas prioridades que as dela, responde com dietas de silêncio, olhares ociosos que formam uma cortina. Patinha na proximidade longínqua, na recusa da lentidão, num atoleiro de egoísmos. Já não acredita nos seus beijos; murcha de decepção. Adúltera.

Sem legendas

sábado, 21 de outubro de 2017

Palomar

O Senhor Impontual marcou presença esta tarde na praça do município e, de pé, misturado na concentração humana que se foi formando lentamente, observou a superfície. O Senhor Impontual tinha conhecimento do objecto do ajuntamento. No entanto, a fim de evitar sensações vagas, procedeu à busca daquilo que se encontrava por baixo da sua superfície, levando em linha de conta os aspectos que estiveram na sua génese assim como os aspectos mais complexos a que daria consequentemente ensejo. O Senhor Impontual já sabia que prestar atenção aos aspectos faz com que estes saltem para o primeiro plano, invadindo o quadro, como em certos cenários diante dos quais basta que se fechem os olhos e ao reabri-los a perspectiva já mudou. As coisas nem sempre são como são, mas a sua superfície é inexaurível.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Doctiloquia

Era uma vez um país onde o povo estava perturbado pela tragédia, pela morte, pelo terror e os políticos perturbados pelo desejo por coisas, lugares e estatutos que não conseguiam alcançar e o resultado era o medo, a insegurança e a frustração. Não é assim?
Até que um dia o grande líder desenvolveu um medicamento que curava as pessoas do desapontamento e permitia que os homens, as mulheres e os políticos fossem felizes com o mundo que tinham.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Sem foto pouco vale

Mas...hoje vi um pôr-de-sol maravilhoso. Foi na marginal de Moledo. Uma imensa bola de fogo tombando sobre o horizonte, ardendo lentamente até desaparecer lá nos confins do mar que era azul cobalto. Mais ao fundo, Sinatra interpretando majestosamente "Fly me to the moon".

Não sei se estão a ver?

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Trinta e um

Apesar de tudo ainda há quem se preste a tentar transformar, e isso é que é importante, um caso de corrupção e aldrabice numa coisa, se não extraordinária, pelo menos poética; que é o desempeno e consequente funcionamento definitivo e livre do sistema (judicial). 
Esperai sentados.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Na moleza da tarde: de Picasso a Pina, num ápice.

__O Acrobata - Pablo Picasso, 1930

Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras,
nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;
pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,
na ausência das palavras calar-se.

__Manuel António Pina, Todas as palavras, Poesia reunida 1974-2011

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

A insustentável leveza

Passaram-se alguns dias. Mais concretamente cinco dias. Sei-o pela proeminência de um ou outro pêlo que se manifesta mais branco na minha barba. Ando nas nuvens. Em geral, quando as pessoas dizem que andam nas nuvens, querem significar com isso que a felicidade as torna mais leves, mas para mim é o contrário, é a indiferença que me torna leve, como um farrapo de nevoeiro em vias de ser queimado pelo sol.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

República

Não há nada como vir ao pôr-do-sol, quando as aves regressam aos ninhos para dormir. É o som do mundo antes do homem existir.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Demissão

Qualquer um chega ao ponto de querer lançar-se no vazio com um nó no estômago e uma generosa dose de má adrenalina cavalgando fugitiva pelas suas veias afora, mas como todos carecemos de instinto suicida apegamo-nos à segurança dos pés bem assentes na terra como último intento para determos essa ousadia. Acontece que, muitas vezes, precisamos de fazê-lo e sem pensar duas vezes, aproveitamos esses escassos segundos de valor e saltamos com tal ímpeto que chocamos contra o colchão, compartilhando-o com a nossa má sombra. Foi o que fez Passos Coelho - o obstinado.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Canícula

Quantas e quantas vezes a memória e a imaginação andam assim de mãos dadas. Quantas e quantas vezes competem entre si. A memória a apresentar-se real e sólida na medida do possível. A imaginação a bater as asas. A memória a inclinar-se para o conhecido, a imaginação a voar em direcção ao desconhecido. A memória a inspirar-me prazer e paz. A imaginação a fazer-me andar de um lado para o outro acabando por me enfraquecer.
Um dia, mais tarde, não precisa de ser já, ainda hei-de aprender a viver exclusivamente pela imaginação.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Se o Outono fosse meu...*

Começaria por mover-me dentro dela. Seria diferente de tudo o que experimentara até então. Ela abrir-se-ia a um nível não físico que aumentava a intensidade da sensação física dos corpos a moverem-se em simultâneo. Eu estaria consciente de me encontrar dentro dela, mas era como uma experiência extra-corporal. Numa palavra: comunhão.

* baseado numa belíssima ideia que vem daqui.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Então?

 Pawel Kuczynski 

Gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que  estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes, já escolhestes o molho com que quereis ser comidos nos próximos quatro anos?

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Procrastinação

Continua a haver um ínfimo momento naquela música do Fausto, “Foi por ela", em que o desejo assume um determinado contorno, ganha forma e odor, voz e vida própria. Há um trecho de história que continua a acontecer ali naquele instante, naquela fracção de segundo e que eu sei perfeitamente qual é porque continuo a apanha-lo num voo planado, capto-o num movimento pendular e porque dele me continuo a escapar numa estúpida, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de amarga e doce saudade. Só que depois o sol, esse, até nem me faz falta.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Hoje vesti um blazer azul marinho...

Mas... há gente que de manhã quando carrega no interruptor e o seu quarto se enche de luz, fica iluminada, alerta, electrificada, cabeça e corpo prontos a andar. Acordei, sou um génio. O seu cérebro enche o mundo e o mundo enche o seu cérebro. Têm o controlo e o domínio de cada parcela sua. São uma onda de luz instantânea, invisível e omnipresente, que se espalha sem esforço pelos recantos mais sombrios do universo, iluminando tudo, compreendendo tudo, sentenciando tudo e... todos.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Segregação

Deve ter sido o cabelo que primeiro captou a minha atenção - pelos ombros, desgrenhado, dourado-ambar, atraía a luz, capturava a luz, seduzia a luz, acolhia a sombra que se projectava no interior do compartimento à passagem pelas estações intermédias. Sentada na cadeira logo a seguir à janela com as costas direitas, estava uma visão, banhada pelo tom outonal que pairava no exterior, de uma mulher divina, capaz de me fazer abandonar os claustros. Depois, apoiada nos cotovelos sobre a mesa rebatível, a cabeça entre as mãos, vestia um vestido de algodão azul-água, sem mangas. Estava a ler qualquer coisa - algo demasiado extenso e pesado que abria e segurava com dificuldade, a ponto de nas pausas ter de fixar as páginas com a carteira de pele castanha. Buliçosamente, abanava as pernas debaixo da mesa. Não conseguia ver-lhe o rosto, mas o seus membros inferiores estavam destapados, bronzeados e numa proporção tão perfeita com o resto do corpo que até Teciano teria de os alterar, com receio de que quem admirasse a sua obra pudesse não acreditar. Levantou a cabeça, e depois aguardou um instante antes de voltar ao livro - "O Idiota" de Dostoiesvski, verifiquei -  numa espécie de competição consigo própria. 
Sem reservas, admito, fiquei enfeitiçado: puro desejo adultero. Um chuto numa artéria principal.