terça-feira, 26 de setembro de 2017

Segregação

Deve ter sido o cabelo que primeiro captou a minha atenção - pelos ombros, desgrenhado, dourado-ambar, atraía a luz, capturava a luz, seduzia a luz, acolhia a sombra que se projectava no interior do compartimento à passagem pelas estações intermédias. Sentada na cadeira logo a seguir à janela com as costas direitas, estava uma visão, banhada pelo tom outonal que pairava no exterior, de uma mulher divina, capaz de me fazer abandonar os claustros. Depois, apoiada nos cotovelos sobre a mesa rebatível, a cabeça entre as mãos, vestia um vestido de algodão azul-água, sem mangas. Estava a ler qualquer coisa - algo demasiado extenso e pesado que abria e segurava com dificuldade, a ponto de nas pausas ter de fixar as páginas com a carteira de pele castanha. Buliçosamente, abanava as pernas debaixo da mesa. Não conseguia ver-lhe o rosto, mas o seus membros inferiores estavam destapados, bronzeados e numa proporção tão perfeita com o resto do corpo que até Teciano teria de os alterar, com receio de que quem admirasse a sua obra pudesse não acreditar. Levantou a cabeça, e depois aguardou um instante antes de voltar ao livro - "O Idiota" de Dostoiesvski, verifiquei -  numa espécie de competição consigo própria. 
Sem reservas, admito, fiquei enfeitiçado: puro desejo adultero. Um chuto numa artéria principal.

16 comentários:

  1. 'um chuto numa artéria principal' é uma imagem muito boa.

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    1. A ana tem de compreender que este é um post sobre assédio sexual e consequentemente sobre segregação. :)

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    2. mas como eu gostaria de aplicar esse chuto...:)

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  2. Impontual, vejo ali numa resposta que é um post sobre assédio sexual e segregação... Só porque sentiu desejo, ficou enfeitiçado?

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    1. Isabel, por estes dias o que de veras me tem enfeitiçado é ouvir e ler a sociedade civil - à boca cheia - discutir a problemática do direito ao espaço publico sob o lema da necessidade "imperiosa" que passa por criar zonas específicas para as mulheres no metro, nos autocarros, nos comboios regionais etc...

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    2. Então aquele relato não tem que ver com assédio, não é assim?
      Não sabia dessa discussão em torno de uma problemática discriminatória... Espero que não avance e se avançar não utilizarei essas zonas enquanto forem específicas para um género. Gosto da diferença e da diversidade.
      Boa noite agora, Impontual!

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    3. Essa é uma problemática deveras (corrija-se a forma errada como saiu escrita em cima. Obrigado, Janita) ridícula, diria.

      Boa noite, Isabel

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    4. A referência a Janita, no comentário, foi lapso?

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    5. Não. O lapso esteve mesmo na maneira como foi escrita a palavras 'deveras' para o qual fui alertado pela Janita e a quem agradeço a chamada de atenção.

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  3. Este relato é manifestamente bom. Não nego a pequena inveja, pois gosto muito de sentir essas sensações que o ilustre Impontual tão bem desenhou. Ao ler estive ali.

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