sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Trama fina

Senta-se erguendo o busto, depõe as mãos, não as coloca: depõe-as. E as mãos também falam: nem antigas nem fatigadas. Mãos em pleno voo. A sublinhar as palavras com esse toque de gestos. Gestos displicentes, subtis e amenos que se tornam quase imperceptíveis. Pressinto que, para lá da disponibilidade visível, procura enviar-me para uma certa contensão. Contensão. Não contenção. 

Náusea

Este tipo de episódios são coisas gastas, vistas e inúteis; e pessoas arranhadas, tristes, derrotadas, amargas e perplexas são habitualmente resumidas e encerradas num comentário de pressurosa solidariedade, em caixa baixa com letra minúscula e arredondada de jornal diário. Não fujo à regra: mete-me nojo. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Método indutivo

Quem ousa defender este ultraje à condição humana?. Quem, alguma vez, vai resgatar, pela palavra, pelos actos ou pelo silêncio, esta infâmia e esta vergonha? Isto é a eterna imoralidade da História. História essa que só pode ser escrita pelos viventes - mas viventes de quê?, de que despojos?, de que charneira? Pois se a indignação for coincidente com o testemunho, aponte-se a responsabilidade a um sistema que, para garantir os seus privilégios, estimula e cumplicia-se com um repugnante mecanismo repressivo organizado, que mais não faz que estigmatizar. Uma máquina de bestialização articulada em nome de da igualdade e, alegadamente, contra a discriminação. Haja bom senso. E já agora bom censo.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Fevereirada

"Há muito tempo que não fazia isto", disse ela quando voltou a falar. E foi tudo o que disse e disse-o numa voz segura, embora baixa. Porém, voltei a pressentir - ainda mais claramente - a brecha dentro dela; e isso evocou em mim uma ternura irreconhecível. Quando nos levantamos para irmos embora, ofereci-lhe o meu braço e ela aceitou-o, sorrindo. Depois, começamos a caminhar, deixando a praia para trás. Lembro-me nitidamente da sensação da pele dela, fresca e macia, sobre a minha. Nunca tínhamos estado em contacto por um período de tempo tão prolongado; a sensação de que o corpo dela era tão forte e no entanto pertencia a alguém tão frágil permaneceu comigo por muito tempo.

Hoje tive uma sensação estranha; senti-me em casa. Talvez isso se deva ao facto de ter vivido quase sempre uma existência transitória - mudando de dormitório para dormitório - e nunca tenha ansiado pela natureza instalada num único poiso, talvez se deva àquele terraço - um ninho de águias privado com vista para o mar, ou talvez se deva ao facto de estar uma manhã gloriosa de Fevereiro com um vento agreste do Atlântico que faz enfunar as árvores e as nuvens correr pelos céus. Fosse por que razão fosse, senti-me em casa.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Cognoscitivos

No entanto, nunca tivemos tempo suficiente para formar hábitos unos - à excepção de dormirmos nos braços um do outro.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Sem foto de pouco vale...

... mas do mesmo modo que a grande escritora e poetisa polaca Wisława Szymborska -- em referencia à "Leiteira" de Johannes Vermeer -- dizia que enquanto aquela mulher do Rijksmuseum, em quietude pintada e concentração, dia após dia, não verter o leite do jarro para a vasilha, o Mundo não merece o fim do mundo, eu digo o mesmo do nascer do sol que presenciei esta madrugada: enquanto uma luz destas iluminar o universo, os dias não merecem o fim dos dias, os homens não merecem o fim dos homens.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A(Chega)

O que verdadeiramente preocupa neles é a capacidade de tentar persuadir as pessoas a serem honestas consigo mesmas, fazendo-lhes ver que quando isso acontece elas obtêm a vantagem da surpresa. Uma vantagem táctica incomparável em qualquer insurreição. Porque são as mentiras que contamos a nós mesmos que nos tornam repetitivos, previsíveis e inconsequentes. É perigoso.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Préstito

O silêncio, entre os revoltosos ruídos do ser e do não ser. 

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Do verbo acossar

Cara redonda, nariz fino, arrebitado, os cabelos parecem fios de carrete e são negros, longos, encaracolados. Os olhos espreitam furtivamente pelo rasgo das pálpebras grossas, linces que se abrem. É esguia, mas robusta e astuta: aprendeu a defender-se das armadilhas que o mundo lhe estende. Aprendeu, também, o difícil equilíbrio em terrenos resvalantes: a vida é uma espécie de emissário de crueldades imprevisíveis, e uma mulher como ela foi por ela ensinada a tornar-se uma inveterada guardadora e defensora do seu próprio corpo. O seu corpo. A sua alma. A única propriedade privada que possui, que lhe pertence em regime de exclusividade. Já foi maltratada, já foi arranhada, magoada. Agora, dificilmente. Reage como um animal de acosso.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Pintar Fevereiro

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma segunda-feira. Estamos em Fevereiro. Avançou sozinha, com os braços um pouco afastados do corpo, à espera. Não pelo seu parceiro, que estava a olhar para ela, absorto. Não pelo acordeonista, que ainda não tinha começado a tocar. Não de que outro casal se juntasse à dança. Ela estava à espera de ser arrebatada pelas forças dentro dela. Ela estava à espera de que essas forças viessem à tona. Calmamente, com os tacões ligeiramente no ar, o rosto aberto, as palmas das mãos viradas para cima, como que a ver se estava a chover. Quando sentisse o primeiro pingo, ela ia mexer-se.
Os pingos vieram! Rodou duas vezes sobre si, fazendo mais de vinte passos, e o seu parceiro, com as mãos esborratadas de tinta, juntou-se a ela.
Ela era indelével como o tom do corante. No entanto não era ela que tinha aquela cor, era o seu desejo - uma massa emaranhada de cores em todo o seu esplendor. Como se tivesse sido pintada ontem. Corante, magenta, laranja, vermelho-romã, escarlate, limão, verde-pistácio. Alvitrei, num sfumato fora do meu alcance, esbater a graduação, suavizar a transição de luz. Mas não. Quedei-me pela aplicação uniforme e levíssima da resina de Damar. Todas as cores acabarão por desbotar, mas por agora estão esplendorosas.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Lei de base

A abertura de espírito e da natureza - essas palavras tão gastas - de Marcelo Rebelo de Sousa são tais que me sinto completamente à vontade para, com todas as letras, o mandar lavar o rabo com água de malvas.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Sessão da Meia-Noite


"Nunca deixes de olhar" Florian Henckel von Donnersmarck , 2018

Com a ~CC~

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Megadiversidade

Lá está, os pobres são colectivamente inabarcáveis. Eles não são apenas a maioria do planeta, eles estão por toda a parte e o mais pequeno dos eventos diz-lhes sempre respeito de alguma maneira. Consequentemente, a actividade dos ricos é a construção de muros - muros de betão, vigilância electrónica, barreiras, fronteiras armadas, informações erradas aos media e por último o muro do dinheiro para separar a especulação financeira da produtividade, do sacrifício. 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Pudicícia

Na prateleira dos velhos encontrei um livro sobre arquitectura de interiores. Estava entre volumes há muito abandonados. Devo tê-lo enfiado ali para tapar o vento norte. Tirei-o de lá agora, porque fui à procura de um outro volume que subitamente precisei. Está em francês e pertence à colecção "Que sais-je". O nome da colecção fez-me sorrir. Nós sabemos tudo o que precisamos saber, mas isso muitas vezes não se põe por palavras. Aquilo que nós não sabemos e nunca vamos saber é o que vai acontecer a seguir.
Ao pegar no livro ele caiu-me ao chão e ficou aberto numa página em branco com um desenho vectorial de uma cama. Por baixo do desenho a legendagem de componentes com letra minha. E subitamente percebo que estou a olhar para um poema de amor! Moteur de increment et excitatrice --> generatrice --> valve de combustion --> turbine.
Um poema de amor! É isto que o recato prolongado faz à imaginação.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Alienígenas

Há uma diferença muito grande entre esperança e espera. De princípio toda a gente acredita que é uma questão de duração, que a esperança é esperar qualquer coisa futura. Estão enganados. A espera pertence ao corpo, enquanto a esperança pertence à alma. A diferença é essa. Elas conversam e consolam-se uma à outra, mas o sonho de cada uma é  bem distinto.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Termómetro


@ Ruth Bernhard
Esta mulher é formosa
como uma flor da montanha,
mas é fria, fria, e é fria
como a margem de neve
onde fria floresce.

_Herberto Helder, Bebedor Nocturno

Alfabetização

Há umas décadas atrás não era grave que as pessoas não soubessem ler ou mesmo escrever porque as pessoas discutiam tudo o que importava, mas hoje muita coisa acontece em silêncio e é preciso que sejam capazes de ler para saberem o que o mundo e as suas pessoas estão a decidir. E é óbvio que o mundo está a decidir que as pessoas estão loucas e obsoletas!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Siglas

A linguagem limitada deles, enquanto as suas acções reprimem o mundo.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Calendário lunar

Há sempre um desespero frustrante em ser-se homem debaixo desta luz. Não fazia ideia de quão baixo se pode ser forçado a descer - que podemos prometer-nos uma coisa tão desnaturada, largar mãos da nossa própria carne num acordo frio com os espíritos da nossa mente. Mesmo quando há um brilho, um brilho fortemente vibrante, um chamamento da abóbada celeste. Nunca teria acreditado que um homem ao passar por um trauma semelhante, podia ter pulmões para uivar desta maneira.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Gafe

O efémero não é o oposto do eterno. O oposto do eterno é o esquecido. Alguns alegam que o esquecido e o eterno são, lá bem no fundo, a mesma coisa. Mas estão enganados.