segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Ressaca

Há décadas que, em noite de eleições, me fascinam os discursos das vitórias. No dia seguinte, os discursos dos empates ainda me parecem mais impressionantes.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Voto compulsório?

A analise do tecido politico que por estes dias se propõe tomar as rédeas do país é de tal forma óbvia, fácil e contundente que a sua simples leitura é suficiente para se impor enquanto farsa. Não são necessárias observações minuciosas, interpretações incisivas e sinistras para inculcar o nível politico da nação. A credibilidade é uma conquista que se faz todos os dias: ninguém a oferece gratuitamente. Não é uma questão de gramática. Não é uma questão aritmética. É uma questão moral. É uma questão de carácter. Insuflar força e honra nas palavras e nas tomadas de decisão é o dever mais caro e terá de ser o propósito quotidiano de quem pretende fazer politica com responsabilidade. Não é um epitáfio. Tem de ser a bandeira desfraldada, todos os dias. 

Ora se assim não é, e atendendo a que (alegadamente) vivemos num regime de democracia representativa legitimada pela soberania popular, eu, que não percebo nada disto, ponho-me a pensar se não seria melhor respondermos com uma ida massiva às urnas de modo a que os políticos deste país sentissem, de uma vez por todas, o ónus da responsabilidade que pesa sobre eles? e por outro lado afunilar (lhes) o leque de desculpas infundadas que decorre da altíssima abstenção que habitualmente se verifica e que (lhes) serve de capa protectora?
Uma votação massiva não teria o condão de uma melhor definição parlamentar -  responsabilizando-a: quer seja maioritária ou minoritária? além de deixar a descoberto a insustentabilidade de algumas alas politicas populistas que aparecem a querer ganhar  alguma força circunstancialmente alavancadas pela abstenção?

Bom...isto foi só um pensamento. E como eu não percebo nada disto, se calhar o melhor é continuarmos, perversamente, entretidos em festas alegres e jazz. E... daqui a seis meses cantarmos a uma só voz: " eu não tenho nada a ver com isto, nem sequer fui votar".

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Volta ao mundo em cinco minutos

Em Paris eras uma dama aprisionada num espartilho fumando cigarrilha no Cabaret du Ciel. Em Berlim estavas sentada num palco da Filarmónica, abanando-te com um programa onde constava, entre outras sinfonias, a nona de Mahler. Em Amesterdão eras uma daquelas prostitutas lindíssimas que se exibem nas montras dos canais. Em Londres eras um ramo de daffodils que comprei no Columbia Market no inicio da Primavera.  Em Praga eras uma rapariga que orava no Cemitério Velho. Na reserva de Kilaguni, no Quénia, rodeada de hienas, ao cair do sol, estavas vestida de caqui como Ava Gardner no Mogambo. Em Rabat eras Saida a pôr o tempo a dançar numa noite de Ramadão. Nas ilhas gregas eras uma turista inglesa que teimava em prolongar o Verão. Em Viena simplesmente vendias tortas de chocolate na pastelaria Demel. Em Braga...passado aquele ponto em que os rostos foram atravessados por um agradável momento de calor, em que todos os músculos se relaxaram e uma alegria cósmica de textura impetuosa e contaminada de inquietação nos levou a descobrir que, sim, os beijos eram para cumprir, tornou-se impossível estabelecer diferenças entre a postura dos homens e dos cães: do encontro entre os corpos ergueram-se odores tão intensos que acabamos fundidos um no outro. Réus, culpados, mortos.

No Rio de Janeiro poderias ter sido a Garota de Ipanema gingando pelo calçadão fora, mas nunca lá estive.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Osculação


Já se sabe que, às vezes, acontecem coisas com o condão de alterar o clima em torno de uma pessoa, o que é natural, porque as primaveras não são eternas e um desastre registado num qualquer fim de tarde dá azo imediato a um tempo cinzento e espesso que, como também se sabe, para uma legião de observadores insensatos, está sempre longe de se adivinhar.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Pensão Imperial II

... com a varanda aberta a todos os ruídos e vozes da rua dentro do quarto, lançaram-se um contra o outro sobre a cama, desnudando-se com os dentes e, à medida que descobriam uma parte do corpo, depois de cada mordidela crescia neles um furor que os impulsionava para dentro de si mesmos para sair de imediato com mais força ainda. Ainda não estavam completamente nús e já se resfolegavam como cavalos que chegam juntos à meta, a égua apenas com meia cabeça de vantagem, e a claridade que entrava pela janela era suficiente para descobrir sobre a pele coberta de suor qualquer sinal de identificação. Ela quando procurou aquele sinal por baixo do mamilo nem sequer teve tempo de se alegrar por o encontrar exactamente igual, porque de imediato sentiu que ele a possuía com uma força desmesurada e foi como se uma onda a cobrisse e enchesse de água o fundo da sua memória.
Os gritos de prazer que ela soltava chegavam à rua. Os pintassilgos e os canários dentro das suas gaiolas pendurados nas janelas calaram-se, um lojista perguntou a si mesmo que guerra era aquela e houve um grupo de pessoas que parou no passeio, disposto a aplaudir a grandeza e a qualidade daquele orgasmo. 
- Que se passa ali em cima?
- Não é nada - respondeu um peão residente na zona. - É apenas uma mulher muito satisfeita por voltar ao mundo... por voltar à vida.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Pensão Imperial

Beberam em silêncio, observando-se um ao outro como dois desconhecidos que marcaram um encontro sem se conhecerem e nada têm a dizer um ao outro senão matar o tempo necessário antes de começarem a devorar-se. Foi ela quem pagou a conta e disse-lhe sem palavras, movendo a cabeça: - vamos? Na rua seguiram por um passeio muito estreito. Levou-o pela mão, ela adiante, ele atrás como que arrastado, até encontrar uma varanda com gerânios, de onde pendia o nome da pensão. Ele sentiu que a sua mão continuava a ser de aço e essa sensação atacava-lhe a vontade. Entraram por um portal velho e sujo e foram vencendo todos os obstáculos que se interpunham à sua passagem: uma escada ensebada com degraus de madeira ruvinhosa até ao terceiro piso. Uma porta verde bosque repintada, uma campainha que soou estridente na recepção, uma velha que abriu o postigo, um gato que miou de forma sinistra ao ver o par debaixo da lâmpada do patamar, a velha que os obrigou a limpar as solas dos sapatos no tapete, um corredor longo com odor a repolho cozido em lume brando, a retrete ao fundo, um quarto à direita com o número nove sobre o lintel, um candelabro azul indigo sobre a mesinha de cabeceira, uma varanda com gerânios pendente sobre a azafama da rua, uma cama grande com a cabeceira de barras de ferro muito próprias para atar o amante que goste disso, um espelho no guarda-roupa que reflectia dois corpos nus tal como eram agora. Ele visivelmente mais magro, ela continua a ser uma mulher formosa de quarenta e cinco anos com a cintura levemente arredondada depois de dois partos, um deles de cesariana, e o tempo deixou-lhe certas marcas na comissura dos lábios e em volta dos olhos, que conferem à sua beleza um esplendor já amadurecido. Perdeu aquela magreza que a fazia parecer bastante mais frágil. Agora parece uma fêmea madura e segura de si, com muito poder na carne. Imperial.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Pintar Setembro

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma terça-feira. Estamos em meados de Setembro, nas árvores ocorre a flavescência das primeiras folhas. Diante de mim, ela é frágil. O seu corpo parece vazio. Está à beira de chorar. Retém as lágrimas. Tem de dizer qualquer coisa. Mas não possui a superioridade dos magníficos, esses que encontram, sem reflectir, expressões luminosas. Não tem essa desenvoltura que exaspera os aplicados, que desencoraja os laboriosos. Tem apenas o seu sorriso trémulo, a sua tez de pêssego onde se desenham umas finas linhas precoces, a idade em fuga. É irresistível e indefesa. Linda e desamparada. Tem de dizer qualquer coisa. O rio, lá fora, está como que suspenso da sua palavra. O céu está imóvel também. A manhã chega ao fim. Baixo os olhos. Não pretendo força-la a nada. Não espero nada dela. A mim, não deve palavra alguma. É uma questão entre ela e ela, essa história de dever dizer qualquer coisa. Na paleta tenho apenas um tom, pastel, esconjuro de feridas na alma. 

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Erecções

Desde que a grande fraude - que é a vida politica portuguesa - se instalou livremente à luz do dia, a partir do momento em que a aparência enganadora dos fazedores de politica caiu por terra e as revelações capciosas passaram a ser encaradas segundo valores normais, mais os políticos se mostram consistentes e desprovidos de qualquer sentido de inibição própria: apresentam-se com ligeireza acima da moral e das dúvidas das pessoas comuns, aprontam-se a tomar decisões sem vergonha, tudo acontecerá porque tem de acontecer, as perguntas parecem estúpidas e os homens desprezíveis, desprezíveis.
Eles aí estão de novo. Com as cristas bem levantadas. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Palmira

Palmira entrou, sobranceira, no casino da costa envolta numa écharpe de seda crua e coberta de jóias. Ele ofereceu-lhe um punhado de fichas vermelhas. A bola já rodava nas primeiras mesas. Palmira aproximou-se da roleta com uma elegância natural e pousou todo o seu capital apostando no zero. Depois de dar uma volta por todo o universo, a bola brincou, com alguns saltos mágicos, e finalmente caiu no zero. Palmira compreendeu que o zero era o seu destino.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Estrada da circunvalação

Basta que voltemos à vida para que se sinta, por todos os lados, o espectro da violência e da brutalidade quotidiana, os subtis insultos ordinários, as intimidações como um reflexo, uma animosidade de todos os instantes, uma espécie de cólera surda sempre pronta a explodir, uma fúria mal contida. Tisnados, os corpos das pessoas parece que são portadores duma energia destrutiva, duma dureza à flor da pele. Adivinha-se que esta impetuosidade poderá rapidamente provocar agitação. Está-se sempre à beira do tumulto. 
O período de férias, por direito e por obrigação, deveria contemplar uma semana extra para readaptação ao habitat natural antes do regresso. 

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Setembro

Passaram a noite num hotel de praia que no andar de baixo tinha um restaurante muito popular e, naquele entardecer de Setembro, o seu terraço com toldos e caniços estava a transbordar de gente cujo o alarido chegava aos quartos e, juntamente com as vozes e as risadas, chegava também um odor a lulas grelhadas e mexilhões em vapor.
Ela olhou-se nua de perfil no espelho do guarda-fatos e observou o baixo-ventre que ia amadurecendo sobre as ancas largas. Antes que se apagasse a luz que ainda restava no mar, estenderam-se numa cama com cabeceira de ferro que, dentro de pouco tempo, começou a gemer, enquanto na praia se ouviam canções entoadas em coro por um grupo que havia lanchado bem. Foi nessa cama que, pela primeira vez ela lhe disse que o amava e que o seguiria para sempre, para todo o lado que fosse, como uma cadela. Depois de ambos se possuírem com uma profundidade desconhecida, ficaram exaustos e suados, deitados de costas em silêncio. Por fim, ela murmurou:
 - Agora recita-me outra vez aquele poema. 
 - Outra vez? Estamos às escuras. Não posso ler.
 - Sabes de cor. Começa - disse-lhe ela de forma imperiosa.

- "Pernoitas em mim... e se por acaso te toco a memória..."

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Deusas

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Há instantes em que parece que deus, não arranjando mais com que se entreter para escapar à perpétua monotonia dos seus dias, dá um toquezinho no mundo com a biqueira do sapato. Daí vem depois esta estranheza da passagem do tempo, o fogo da terra a vibrar debaixo dos pés, a confusão entre luz e trevas, a lua sem domínio das marés. São precisas várias noites à deriva no vazio até que o mundo se encaixe numa nova órbita. 

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Deus fez-nos cheios de buracos na alma e o nosso dever é tapá-los todos para navegar.
(Vergílio Ferreira)

Ana P em Primeiramente
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Pois então, deus queira que deus exista.
Isto é feito de novas folhas, novas flores, novas águas, novas barcas.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Palomar

O Senhor Impontual aprendeu, por estes dias de calor intenso, em sede própria, que quando se perde a reputação começa-se a ficar livre.

domingo, 25 de agosto de 2019

Luz de Agosto (último)

No adro, os noivos deambulam com um sorriso largo. Ainda há gente que se consegue apaixonar até às orelhas. 
É bonito. 

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Luz de Agosto (VII)

A esta hora toda a praia está cheia de pares jovens que celebravam, entre as dunas, inúmeras cópulas em todas as suas modalidades e, embora esses actos de amor sejam invisíveis, criam, sem dúvida, um fluxo pegajoso no ar em que também as gaivotas fazem as suas libações.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Luz de Agosto (VI)


«O tempo consome-se ao seu ritmo imóvel, igual para todos os homens, nem mais lento para os felizes nem mais veloz para os desventurados.»

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Luz de Agosto (V)

Insisto. Não há nada como vir ao pôr-do-sol, quando as aves regressam aos ninhos para dormir. Devia ser este o som do mundo antes do homem existir.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Luz de Agosto (IV)

Aproximou a sua mão da minha. Olhamos um para o outro. Quantas histórias começaram com um olhar assim? Vi-o na vida real, nos filmes, nos livros, nos quadros. É um olhar que funciona como uma malha, que bate suavemente à porta para entrar, um olhar diferente e inequívoco. Pouparam-se mais palavras e explicações com esse olhar do que com qualquer outra coisa na história da humanidade.
_ Vamos? Disse, naquela tarde cinzenta de Agosto, metendo os olhos fixos nos meus.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Luz de Agosto (II)

Procuraram um sitio para se beijarem e, como na aldeia àquela hora a solidão era absoluta, sem outra presença que não fosse a de algumas lagartixas, sentaram-se mesmo por baixo da carvalheira grande, tendo aos seus pés as raízes e ali começaram a acariciar-se enquanto as lagartixas erguiam o pescoço. O silencio era tão profundo que os estalos dos seus lábios soavam no ar cada vez com mais força, tal como os seus arquejos e até se ouvia o ruído surdo das línguas que se procuravam absolutamente frenéticas quando sentiram uns passos que se aproximavam. Era uma mulher de meia idade, sorridente, que passeava sozinha com um ramos de flores campestres na mão.