quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Estulto

Fala com segurança, é arrogante, orgulhoso e depreciativo, presume da sua força e acusa, quando pode, os desvalidos. Chora. Pede aplausos aos indolentes. Intimamente não consegue sentir-se aquilo que representa. É o débito, suponho, de quem conhece os ordinários anseios onde todo o mal se origina: não acreditar em si mesmo, ter medo de vaguear mudo e com vergonha, esfumar-se numa névoa de impulsos distintos, tapar os olhos, perder o norte, perder o palco. 
Um verdadeiro idiota. Rodeado de idiotas - como diz o Jumento. E bem.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Outono

Os dias sucederam-se tão rapidamente de um equinócio ao outro. Já nada é novo, já nada no novo mundo é novo. Amanhã, não é uma palavra urgente. Talvez seja uma amostra compassiva de esperança. Outro tempo, outra estrada, outra água. Sol branco, lua triste, noite onde talvez os deuses se encontrem. Tudo embate, reflui ou tomba como matéria retalhada. Não são dias de começo, mas sim dias terminais. Envolvidas no buliçoso silêncio imposto, as pessoas existem sem perceber que permanecem no hoje. Ainda há jacarandás, choupos e oliveiras; claro que há. Não há é amanhã. O amanhã não é visível, tacteável. O amanhã encheu-se das pessoas e as pessoas encheram-se do amanhã. Cheios de uma eterna insuficiência. Digladiaram-se toda a vida, talharam-se de uma só dor.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Das expressões modernas

És uma orelha ambulante, aberta ao rumorejo do mundo, onde os laços rompidos, o isolamento e o medo condenam ao mutismo. Pequenos enclaves onde se desenrolam perspectivas e existências falhadas. És um novo normal. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Das expressões clássicas

Se há coisas que a pandemia podia aclarar era que a liberdade de uns acaba quando começa a dos outros. Mas, não.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Camp (style)


Por estes dias de regresso à velocidade e violência o primeiro estranho aparece-me logo pela manhã, no espelho de pé alto.
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Atentai no polimento irrepreensível dos sapatos tendência retro.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Eles aí estão...

Estimulando o funcionamento zeloso de uma corte de indivíduos dedicados à cegueira, suspensos do olho frio e do sorriso breve desse homem que nunca se enganara e raramente tivera dúvidas e que sempre convocara Deus como sua testemunha abonatória.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A resposta que Marcelo quis dar, mas não conseguiu

Não há nada mais humilhante do que ser um assalariado. O teu destino é ser livre. Mas a servidão do assalariado é perversa: dá-te a falsa sensação de que és livre porque ainda vais dispondo de dinheiro para as tuas necessidades mais elementares. Não te queixes. Quem se queixa está a empurrar os seus problemas para os demais. Vai chatear outro!

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Dickinson

Há quem seja fútil de propósito. 
E profundo por mero acaso.

(reconheço-me, mas não me sossega.)

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Marginal



Neste belo fim de tarde de Agosto adivinha-se, embora vagamente, que estes passeios contristados são uma facilidade enfadonha e debilitante para banir sôfregas solidões; fazer uma outra medição do tempo, um outro sentido do lugar. Os caminheiros parecem sobreviventes. Mas impõe-se-lhes a dolorosa ideia de que sobreviveram a algo pouco definido: passaram de lado pela vida, afinal não a sorveram, não a absorveram, não aceitaram os seus riscos, as suas ciladas, os seus perigos, o carácter persuasório dos seus encantos. Sobreviventes de quê, afinal? De um tempo que recusaram, anulando-se? E agora, é a remissão, passeiam-se com voracidade, como quem quer beber o mar, engolir as ruas, comer o mundo que deles se afasta progressivamente.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Um homem...

... que é um vigoroso animal insatisfeito, que pressente que a consciência dos outros homens está adormecida, reclusa numa passividade que não lhes permite, de momento, intentar ideias claras sobre a sua própria singularidade e identidade. Um homem que sabe que todo o ser humano é uma criatura única, irrepetivel e preciosa, com crescente predisposição para o espanto, mas que, todavia, nem sequer resolve a sua própria individualidade, vai agora atentar na insidiosa escalada populista que floresce a céu aberto... é um homem perigoso. Não é? 

sábado, 15 de agosto de 2020

Deusa


Veja-o subir a rua com o pescoço resoluto, a cabeça erguida, embora o tronco ligeiramente curvado; o movimento dos braços dessincronizado, as mãos abertas, à defesa. Vejo-a e parece uma deusa a subir a calçada. Mas, repare-se, uma deusa também altiva e sobranceira, talvez irada com o que em seu redor ocorre, a ira encoberta porém, o olhar apertado, os músculos faciais tensos e compridos, a boca desdenhosa, passos firmes cujo ruído, o silêncio circundante logo absorve. Uma deusa mas occasionatus. Limitada como eu, claro.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Palomar


O Senhor Impontual andou pelo mundo ou por aquilo que se considera ser o mundo, e sabe não haver qualquer tipo de engano: tudo é um curso ininterrupto de sentimentos e de acções consequenciais. O lugar onde o Senhor Impontual se encontra agora - em casa - constituiu alguma excepção, mas não deixa de agudizar inquietações. Como é possível nascermos, vivermos (e morrermos) num mundo assim feito, frágil e instável? Mas nada existe de estoicamente definitivo; obscuros clarões de uma ambígua esperança surgem em grandes paradas citadinas, em ajuntamentos de rua onde se fala de um Estado empenhado na sanidade e nas liberdades individuais dos cidadãos, de estabilidade no trabalho e de tranquilidade nas consciências, quando na realidade o que se vê é um desfile de pessoas num movimento pendular entre a fuga e a nostalgia, como se cada um e todos tivessem o corpo e a alma desgovernados.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

GPS (VIII) - A caminho de casa

Beber um copo onde ninguém conhece ninguém, mas onde todos examinam as estaturas com muda apreensão e indiscreta curiosidade. Retomar a marcha. Avançar pela estreita faixa entre as esplanadas e o rio, aproveitar a sombra proporcionada pela correnteza de prédios antigos, palacetes e velhos solares. Comer melancia e melão. Observar as vendedoras ambulantes ajoujadas sob o peso das bancas amovíveis. Marginal acima, passo corrido, tronco dançante, cada uma delas possuindo uma maneira de andar, seios e nádegas soltos, voluptuosas. Às vezes param e miram com velada tristeza as vielas outrora pejadas de gente. Observar as subtis rotações das coisas, os relativos destinos,a reverberação do sol nos vidros das janelas, o voejar de pombos em bandos, os murmúrios imperceptíveis, o amargo da dúvida, a explosão das certezas, o chiar dos eléctricos nos carris, os pregões, tudo para esvaziar a terrível sensação gelada de um mundo adormecido, aquiescente.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

GPS (VII)



Os dias rumam, consomem-se, remontam e impõem a força indistinta do que tem de ser. Os dias correm, cobertos de demora, de memória, e a sua aparente harmonia parece nascer de um pudor secretamente doloroso e melancólico. J&B, chamemos-lhe assim, meus ocasionais companheiros de viagem, dissipam suavemente os dias, desperdiçando as horas, o tempo, num árido afastamento um do outro. E nenhum deles faz um mínimo esforço para derrubar essa parede de indiferença. Lêem jornais e livros, trocam frases curtas, quase monossílabos, e essas relações concisas exprimem não só um orgulho acossado mas também um desafio escondido. De certa forma, sabem como utilizar o silêncio ou os frágeis factos de somenos para se irritar surdamente um ao outro. São pessoas que têm a ver com o mundo, com as estradas, com os rios - esses caminhos líquidos. E são igualmente pessoas que têm a ver com uma espécie compacta de solidão, a solidão dos diferentes. Talvez seja isso que os torna indiferentes.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

GPS (VI)



Agradarmo-nos de uma sombria calma, deixarmo-nos envolver pela plácida sucessão dos dias que ninguém atravessa, que não dá qualquer sentido a cada encontro, que nos faz esquecer o gosto das antecipações, que nos liberta de promessas, que nos impele a mansas displicências, que nos envia os sentimentos da indolência e da letargia, deixar de lado os deveres que a consciência - esse território pantanoso - nos recomenda, não é viver na solidão. É gostar dela para fazer algumas coisas. É, por vezes, lutar contra moinhos de vento.

sábado, 1 de agosto de 2020

GPS (V)



O olho é a luz.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

GPS (IV)

        Gorbea Parque Natural

O problema dos homens é que não lhes podemos oferecer sempre a emoção da caça, aquelas cócegas no estômago e a certeza-incerteza de saberem se a presa será ou não sua. Isso só pode acontecer uma vez com cada mulher. E eu, naturalmente, já joguei esse torneio.

Isto assim dito em basco, garanto eu, tem exactamente o mesmo impacto que dito em russo. Talvez soe de outra forma em português. Mas já bebi uma dose generosa de txakoli. Aquilo é fraquinho, mas nunca se sabe...

terça-feira, 28 de julho de 2020

GPS (III)

Voltamos à grande cidade, na tarde. Alex conduziu o automóvel com a desenvoltura de um rapaz. Pelo caminho foi observando o voo baixo das gaivotas novas. O seu belo rosto enrugado reflecte imensa serenidade. Cumprimentou pessoas pelo caminho, na tarde. Agora, já noite cerrada, à mesa da sua sala, perante o meu entusiasmo com a região, conta-me que a beleza tem o poder de opor resistência à agressão - é certo, mas tempos houve em que não havia dias incomparáveis, requebrados, mansos e absolutamente ternos. Diz-me que aqui todos os dias possuíam no seu bojo uma crueldade latente que frequentemente explodia. Era um reino de silêncio, mas de frias cumplicidades. Um reino de alaridos calados e também de mudas catástrofes. Aqui as pessoas não se preparavam para a felicidade. Brindamos, com patxaran, a longos anos de vida. Dos quais, trinta, passados aqui.

GPS (II)


É uma manhã de fim de Julho e todas as gaivotas levantaram voo para deixar a praia limpa como um lençol. Ao fundo, no mar, cresce todo o ruido cinzento do mundo. À medida que o dia vai transcorrendo, diminui a expectativa e cresce o silêncio, até que a expectativa se esgoste na totaliidade.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

GPS

O Senhor Impontual está a fazer uma viagem grande ao volante do seu automóvel. São quilómetros e quilómetros. É incrível como todas as estradas acabam noutras estradas. E essas estradas acabam em aldeias, vilas e cidades. De lá, sai-se para outras estradas, que vão dar a outros países, onde as estradas recomeçam. Em todos os lugares onde o Senhor Impontual tem parado, as pessoas parecem apaziguadas e felizes. Vozes ocultas de comando devem ordenar-lhes que amem em exclusivo, que renunciem ao medo porque o medo torna tudo inseguro. Mas, quando as pessoas se livram de um medo em particular, procuram encontrar a segurança criando outros medos, sem deles darem conta. É assim em todo o lado onde vá dar uma estrada. Os homens nunca sabem muito bem o que querem e muito menos onde vão parar. Os homens* são passageiros de passos perdidos. 
O carro de alta cilindrada do Senhor Impontual tem GPS, mas está desligado.

*(Quem diz os homens diz as mulheres, claro está.)