terça-feira, 10 de novembro de 2020

Oh! O deslumbramento depois da angústia!

Quantas e quantas vezes lhe dei forma nas minhas viagens e pensamentos. Ele vive na minha alma. Criei-o ao enredar os factos, as paisagens e os desconhecidos que me rodeiam e não pela força das minhas mãos. Foram muitas as manhãs e inúmeros os crepúsculos em que contemplei uma outra argila transformada nesse mesmo esplendor.
Onde começará, onde acabará o deslumbramento? Não sei. 
Por agora tenho de voltar à narrativa real. Mas o caderno espera-me constantemente sobre uma mesa num alpendre voltado para um mundo empedernido. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Isabel e as águas de Novembro

É bonita e calada. Não tem qualquer talento ou angustia. O seu saber viver ajuda-a. Não faz perguntas e só fala com conhecimento de causa. Chegada a casa os seus gestos tornam-se mais soltos, esforça-se por lhes conferir maturidade. O chá é o seu principal prazer. Toma-o sozinha, confortavelmente instalada no sofá, descalça, com o televisor ligado no Big Brother e na CMTV apalpa as entranhas do mundo. Depois de beber o chã, deita-se, brinca com o gato, lê umas páginas de um romance de Raul Minh'alma. Amanhã, se não chover, Isabel quer aprender a voar. E actualizar o Linkdin.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Díptico

Importa tomar o rumo de outras tentações. As tentações e os pecados não determinam apenas os caminhos da carne e é essa a felicidade de um homem. Quando peca, liberta-se: da estupidez, dos demónios. Torna-se simples e puro. A luz não provém da luz, provém das trevas.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Sem foto de pouco vale, mas...

Se eu escrevesse para os outros, deleitar-me-ia a descrever tudo o que não sinto necessidade de descrever para mim. Recorreria a uma enorme paleta de cores cruas e insólitas. Escreveria com uma bonita caligrafia sobre o céu azul desta tarde de Novembro. E uma sensação de azul liquido incitaria a minha mão. As palavras alinhar-se-iam, crispadas, incapazes de circunscreverem esta sensação de azul que me dilata o coração. E com a mesma caneta, a caneta da ilusão, descreveria o vento, o horizonte, as ondas à minha frente, as montanhas arrasadas atrás de mim... e o sol lá em cima.  
Mas como não escrevo para os outros e vim até aqui chamado por mim, não fotografei o azul. Um evadido não olha para as ondas nem para o céu. 

domingo, 1 de novembro de 2020

Fiéis defuntos

O medo é como a morte. A morte é pertença de cada um, indivisível, ninguém tem nada a ver com as nossas mortes, ninguém tem nada a ver com as mortes dos outros. Portanto, a morte é um território privado, como o medo. A nossa morte só a nós diz respeito, não a podemos compartir, não há duas mortes para cada um, não a podemos dividir nem rejeitar, como o medo; por isso tememos o medo e tememos a morte porque estamos sozinhos com o nosso medo e com a nossa morte. E o que nos horroriza na morte é termos de ficar outra vez sós. Mas aprender a gostar do medo não significa que aprendamos a gostar da morte.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Virgínia


    Dias de rigor...
em que o dessossego é tanto tanto tanto
que se transcende do próprio corpo 
           e vira canto.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Champions League

Ela pediu um café com leite e deu conta dele com pequenos goles, até ficarem no fundo as marcas castanhas e o açúcar por dissolver, que é o que agora remexe enquanto fala com ele. Tem o queixo apoiado na outra mão, com o braço perpendicular à mesa, e o fino cachecol, que na rua enrolava com três voltas, cai-lhe agora pelos ombros como um adepto de futebol colocaria o seu para mostrar o símbolo do seu clube. Tem a gabardina aberta e os três botões superiores da camisa desapertados. Vê-se-lhe o pesponto do soutien a rebentar pelas costuras e ele sente vontade de mergulhar a cabeça nele, para afastar a tempestuosa conversa que se avizinha, mas com a mesa pelo meio optou por passar-lhe a mão pela mão. Jogada de antologia. A valer três pontos preciosos.

sábado, 24 de outubro de 2020

Creme Brulée

Para lá da vidraça, o mar ao fundo, revolto. Do lado de dentro, cigarros e isqueiros sobre a mesa. Cada um pede um prato diferente para poder debicar o do outro. Ela, alta, com cabelos negros e frisados, as faces de quem gosta de rir, sobrancelhas de mulher minuciosa, que procura algum sentido para a vida, uma direcção, um significado, um gosto verdadeiro. Não o sentido único de que os fatigados, os resignados, se servem para não terem de lutar. 
Ele acende um cigarro, pousa o isqueiro, aspira uma grande baforada de tabaco, marca uma pausa, solta um sopro, dispensa o leite creme queimado, fita-a nos olhos sem desviar o olhar. Deve estar com medo. Tenta permanecer mole, doce, sem varejar com os braços e as pernas, fazendo um tremendo esforço para permanecer aberto, disponível.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Poltrona de Orelhas

O que nos protege do olhar alheio, por vezes, é o que congeminamos no nosso cadeirão favorito enquanto lemos, ouvimos música ou olhamos o declinar vespertino da luz através das janelas cobertas de cortinas de linho. Estamos em condições de consentir espaço para mais alguém além de nos próprios? A que padrão obedece a perenidade do nosso silêncio? O que esperamos? 
Há gente capaz de tudo para conseguir uma só coisa. Há gente que cede tudo e se reduz a um balão de ar, desde que os deixem ser senhores daquilo a que dão relevo.

Chega a ser... não direi humilhação, mas uma intromissão que nos oiçam a música da nossa vida.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A máscara e o mascarado

É ridículo ser um ser que foge. Alguém que tenta esquecer, mas que não sabe o que fazer com a recordação. Alguém que se furta e esconde e do seu esconderijo observa e engana, que desconfia, que recorre a miragens, alguém tão incoerente ou tão frágil o suficiente para se entregar aos dias deixando-os passar. Alguém que não sabe como enfrentar a vida e tão estúpido ou tão inconsciente o suficiente para não se sentir derrotado. Alguém a quem não falta a esperança, mas incapaz de a construir por si mesmo, alguém que prefere esperar apesar das incertezas da espera, alguém que confia que se encontrem as soluções sem a sua intervenção. Alguém que sente medo. A quem atemoriza a passagem do tempo, mas que permite que ele decorra vazio. Alguém incapaz de se esquecer de si mesmo, e suficientemente fátuo para se deleitar com a temeridade.

É ridícula esta inata catarse aristotélica da teatralidade da limitação e do renascimento, da máscara e do mascarado.
Mas...
quid faciemus?

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Observatório

Ele, tudo o que desejava era sentir-se um pouco mais próximo e com essa intenção levantou o braço e acariciou-lhe a nuca que o cabelo apanhado com duas trajectórias deixava a descoberto. Ela, deixou-se acariciar, e pouco depois ele culminou a caricia colhendo entre as polpas dos seus dedos o lóbulo da sua orelha esquerda. Notou-se o seu estremecimento pelo eriçar com que a pele do pescoço respondeu. Até aí tinha mantido o olhar baixo, mas então levantou-o sorridente e, por entre o barulho dos talheres das mesas vizinhas, julguei ouvir um ligeiro suspiro de aprovação ou de rubor que aspirava pelo nariz. Que espectáculo comovente o de um corpo a ceder a uma caricia! Surpreende-me a rapidez com que uma caricia persuade. Onde as palavras fracassam basta um toque da pele. Uma caricia significa o que é, busca uma emoção imediata e poucas vezes se presta a ser mal interpretada, mas pode ser cruel se os actos posteriores não acompanharem a calidez que a caricia iniciou.

sábado, 3 de outubro de 2020

Palomar

Neste contingente estado novo, o Senhor Impontual adquiriu um hábito, uma espécie de passatempo favorito para os seus dias de feriado: viajar nas viagens dos outros, conjecturar sobre os seus percursos, os seus destinos, tentar adivinhar o sentido banal de conversas soltas, decifrar aquele sorriso invulgar, desvendar o significado daquela sombra, descortinar um trejeito ténue e insurgente ou o que contém a flexível doçura daquela voz, acompanhar com os olhos umas pernas com um passo de sessenta centímetros, observar uma ou outra alma a perder as rédeas, dar espaço ao esquecimento, mas também à recordação - esse imenso território branco, sentir a textura do silencio enquanto decide para que lado vai dormir.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Quino (1932-2020)

 


Continuaremos sem saber se o mundo é realmente bonito, mas continuaremos seguros que é extenso.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Também já posso deixar de me importar com as coisas



 Acabei de cortar a erva cidreira. Por mim, está tudo bem.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A finalidade oculta

Qualquer relato tem consequências, e suscitar a hilaridade ou o desprezo no seu destinatário não é a mais grave. Contamos para compreender e para que nos compreendam, contamos por motivos diferentes, mas persegue-nos sempre um propósito, quanto mais não seja o de descarregar o peso. E é aí, sempre na finalidade oculta, onde reside o sentido de cada relato. As palavras e as diferentes peças discursivas que o formam, não têm valor separadamente. A prova disso é que inclusive no relato mais simples é possível encontrar duas verdades que se contradizem ou que às vezes para expressar uma verdade é necessário recorrer à mentira. Nisso não se diferenciam da vida, por isso de pouco servem as palavras se os actos as não corroboram e por isso frequentemente não há só duas verdades simultâneas que contradigam, mas sim uma legião. Nunca mentimos, portanto. Excepto no sentido de que sempre que uma dessas verdades em luta se impõe, nega implicitamente a existência das outras. O nosso problema é termos demasiadas ideias absconsas.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Estulto

Fala com segurança, é arrogante, orgulhoso e depreciativo, presume da sua força e acusa, quando pode, os desvalidos. Chora. Pede aplausos aos indolentes. Intimamente não consegue sentir-se aquilo que representa. É o débito, suponho, de quem conhece os ordinários anseios onde todo o mal se origina: não acreditar em si mesmo, ter medo de vaguear mudo e com vergonha, esfumar-se numa névoa de impulsos distintos, tapar os olhos, perder o norte, perder o palco. 
Um verdadeiro idiota. Rodeado de idiotas - como diz o Jumento. E bem.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Outono

Os dias sucederam-se tão rapidamente de um equinócio ao outro. Já nada é novo, já nada no novo mundo é novo. Amanhã, não é uma palavra urgente. Talvez seja uma amostra compassiva de esperança. Outro tempo, outra estrada, outra água. Sol branco, lua triste, noite onde talvez os deuses se encontrem. Tudo embate, reflui ou tomba como matéria retalhada. Não são dias de começo, mas sim dias terminais. Envolvidas no buliçoso silêncio imposto, as pessoas existem sem perceber que permanecem no hoje. Ainda há jacarandás, choupos e oliveiras; claro que há. Não há é amanhã. O amanhã não é visível, tacteável. O amanhã encheu-se das pessoas e as pessoas encheram-se do amanhã. Cheios de uma eterna insuficiência. Digladiaram-se toda a vida, talharam-se de uma só dor.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Das expressões modernas

És uma orelha ambulante, aberta ao rumorejo do mundo, onde os laços rompidos, o isolamento e o medo condenam ao mutismo. Pequenos enclaves onde se desenrolam perspectivas e existências falhadas. És um novo normal. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Das expressões clássicas

Se há coisas que a pandemia podia aclarar era que a liberdade de uns acaba quando começa a dos outros. Mas, não.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Camp (style)


Por estes dias de regresso à velocidade e violência o primeiro estranho aparece-me logo pela manhã, no espelho de pé alto.
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Atentai no polimento irrepreensível dos sapatos tendência retro.