sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Calendário do Advento

Em dias como o de hoje em que nos pedem que regressemos bem mais cedo do que é habitual e, ainda debaixo da luz do dia, o Senhor Impontual encontra a casa vazia, fria, triste, escura. Recolhe uns "cavacos" na arrecadação, acende a lareira lentamente e fica ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Tira um copo e uma garrafa de Cognac de Charente do armário e deixa-os na borda fria da pedra que emoldura o recuperador de calor. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, recolhe a garrafa e serve uma dose generosa daquele néctar à temperatura certa. Entre uns goles curtos, o Senhor Impontual acende um Arturo Fuentes, dá umas baforadas e deixa-se ficar por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde pálida a ser tomada pela noite escura. Até que se senta na poltrona de orelhas alumiado apenas pela incandescência da lenha e deixa-se invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso e suas vibrações misteriosas. 
O Senhor Impontual não se permite olhar para trás. Se bem que as atribulações do mundo nos levem o pensamento para lugares onde a vida era feita de abraços. Os mundos de ontem, agora incessantemente revisitados, magnificados, auto-embelezam-se para se converterem em quimeras. O Senhor Impontual não revitaliza firmamentos de azul celeste, não recorda amabilidades, sorrisos de boas-vindas, langores outonais. Não recorda beatitudes, tempos de espírito sereno, de calma e de saciedade. Mas o mundo de hoje e os seus habitantes mudos, a chuva, as frieiras, o medo, as tormentas da ausência, a insónia, os suores nocturnos, os despertares ancilosados, a ansiedade de um regresso, projectam o olhar do Senhor Impontual num único sentido, uma verdade antiga: a vida possui esta característica essencial, o facto de não podermos prevê-la, antecipa-la. Não adianta fazer lucubraçoes. Com a certeza, porém, de para o ano a Senhora do Ferrero Rocher voltará dentro do seu tailleur amarelo e que ainda havemos de nos voltar a aborrecer bastante uns aos outros.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Brandos costumes

A esplêndida sala de jantar de estilo art deco está cheia de gente e ouvem-se sussurros por todo o lado. É espantoso como o mundo pode estar a inclinar-se no seu eixo e as pessoas continuarem ainda a andar direitas, a viver o seu dia-a-dia, a jantar em restaurantes, a fazer os seus planos, a cumprir tradições. Se não fosse o absurdo das máscaras cirúrgicas penduradas ao pescoço dos convivas elegantemente vestidos, podíamos pensar que a pandemia ameaçadora que paira do lado de fora não passava de uma ficção. Um tocador de piano enche a atmosfera de musica requintada e lá fora uns cedros oscilam com suavidade sob a luz colorida dos vitrais de uma das clarabóias por cima das suas cabeças. Na parede, o impávido relógio de caixa alta Boa Reguladora assinala vinte e três horas. Ainda a noite é uma criança. Janeiro não vem já.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Linha 1

Um homem que está à espera do eléctrico, com uma mala na mão e um jornal debaixo do braço, repara no jovem casal que sai do meio das árvores do jardim. A rapariga é extraordinariamente bonita, tem as roupas amarrotadas, os cabelos ruivos caem-lhe soltos sobre os ombros e as faces estão vermelhas como maçãs. Agarra na manga do casaco do seu jovem companheiro, diz-lhe qualquer coisa e pára. O jovem abana a cabeça em sinal negativo. Pega nas mãos da rapariga e fala-lhe com uma expressão séria. Depois, beija-lhe levemente os lábios, vira-se e afasta-se. É nessa altura que o homem vê ao fundo da rua o eléctrico a aproximar-se. É uma história intemporal, que se reconstitui e se repete sem cessar ao longo de séculos.  Nada se altera. Só o jovem casal é que não sabe disso.  
Por um instante, ela olha fixamente para o jovem rapaz, depois vira-se, por sua vez, e corre na direcção oposta. Salta para o eléctrico e deixa-se chorar, levemente.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Ajuntamentos

Normalmente éramos dois. Nós e o outro. Bem...às vezes éramos três. Nós, o outro e o fantasma. Agora, vendo bem as coisas, já somos quatro. Pelo menos. Porque o fantasma de certeza que também já tem o seu próprio fantasma. E o fantasma do fantasma...

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Enquanto lá fora a chuva e o vento não param de se digladiar


Cá dentro, o Senhor Impontual faz uma pausa e ouve uma musiquinha de Natal.



Até porque não pode continuar a deslizar o grafite no estirador com este andamento lépido. Assim o Senhor Impontual nunca chegará a compreender-se. O Senhor Impontual não deseja uma vida instintiva. Os instintos desencadeiam-lhe uma serie de explosões ininterruptas. Uma animalidade disforme. Mas quê? Deixar correr a pena no velino é ainda pior.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Palomar

"Cada pessoa é um mundo". "O que mais me surpreende nos outros: a autenticidade". 
O Senhor Impontual estava aqui a ler algumas afirmações de Eduardo Lourenço e questiona-se impreciso: será que toda a amizade assenta num mal-entendido, parcial mas real? Aquele que consegue descobrir como é realmente o seu amigo, põe nessa tarefa muito de si próprio. Tudo corre bem até ao momento em que a substância se revela, involuntariamente, de um e de outro lado. Esses momentos são raros. Poucos os vivem. E tais são, regra geral, governados por um andamento lento e cruel, e os seus esforços mais dolorosos residem na descoberta da sombra ou do sangue estranho que o seu ser contém.
O Senhor Impontual não sabe se isto é uma verdade geral. E também não pretende proferir, e muito menos escrever, verdades gerais nem eternas. O Senhor Impontual recorda, de passagem, que o sentimento imbuído de eternidade e o desejo de seguir a lei das coisas o abandonaram há muito tempo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

1960-2020

 Talvez a genialidade tenha morrido hoje.

Com excepção de MARADONA, nunca tive um ídolo na minha vida.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Querido diário

Não, não vou contar tudo. Seria repugnante. Digamos apenas que era alegre e viva. Mas o seu último espasmo irritava-me. O orgasmo de uma boneca é monstruoso. Porém, era demasiado tarde para parar. Mas não, não sou obrigado a anotar aqui todas as loucuras, todos os caprichos que assaltaram o meu espírito sedento de liberdade, de pecado e... de tranquilidade.
A grande vantagem do mal reside em que a qualquer momento se pode transformar em bem. O contrário também é capaz de ser verdade.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Elegia da derrota

Naquela noite, a luta durou mais tempo do que o habitual. Ambos estávamos exasperados com a resistência do outro. Os nossos músculos, endurecidos mas flexíveis, davam-nos uma fantástica sensação de amplitude, mais imaginária do que real. Os nossos braços procuravam e encontravam pontos de apoio inesperados. De acordo com as nossas posições, os olhares pousavam ao acaso, no tapete, num canto da cama ou da parede, no espelho. 
Lembro-me de pensamentos dispersos, de esperanças pueris, de sentimentos vexatórios. Imaginei o sangue dela a fervilhar nas veias como o meu. De súbito, sentir que me rendia, que queria ser vencido, embora fosse o mais forte. Um segundo mais tarde, ela, obedecendo a um impulso irreflectido, impôs-me a derrota. O efeito foi de uma estranha grandiosidade. A minha derrota durou uma eternidade. Não senti deslumbramento. O combate prosseguiu, selvagem. Estávamos inconscientes, fatigados, encarniçados. O instinto mergulhava-nos numa bruma de torpor. Ignoro quando reassumi o controlo, sei apenas que o fiz ao mesmo tempo que ela. E a minha consciência não me revelou qualquer crime cometido, nem contra mim nem contra ela.

sábado, 14 de novembro de 2020

Rompi o recolher obrigatório

.... e fui por aí bater às portas. E as portas abriram-se de par em par e ofereceram do seu pão acabado de fazer, do seu vinho, das suas rutilâncias, do seu eco, das suas locuções entusiastas, das suas flores, das suas angústias, do seu chá, dos seus olhares, dos seus sufixos indignados, das suas dores, do seu café, das suas fotografias, das suas imprecisões, dos seus livros, dos seus amores, das suas paranóias, dos seus medos, da sua poesia, das suas estações meteorológicas, do seu sentido de humor, dos seus animais, das suas rupturas, do seu mundo, do seu mar, do seu sol, da sua musica, do seu cinema, das suas personagens, da sua pele e da sua segunda pele, das suas irritações, das suas vidas e da pátina que o tempo nelas foi deixando..?

http://noismoraaki.blogspot.com/
(entre outros que não estavam nas suas casas, mas deixaram as portas abertas...)

Sabeis de portas novas onde este sedicioso possa ir bater?

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Breve interrupção, só para tentar perceber o mundo e os seus habitantes

Devido ao agravamento significativo da pandemia, o governo declara um estado de emergência nacional e decreta um recolher obrigatório ao fim-de-semana das 13 horas às 6 horas da manhã seguinte. Portanto, um recolher obrigatório implica as pessoas manterem-se em casa. No entanto, os supermercados anunciam um alargamento dos seus horários de funcionamento a montante, a jusante e dentro do recolher obrigatório. Que raio de perspectiva de negócio esta! Para quem? Se as pessoas não devem sair de casa. Ou podem? Ou a analise do perfil cívico e de cidadania que os grandes senhores dos supermercados fazem dos portugueses dá-lhes a garantia, impune, de mais um dia de gaveta cheia? Ide, ide.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Oh! O deslumbramento depois da angústia!

Quantas e quantas vezes lhe dei forma nas minhas viagens e pensamentos. Ele vive na minha alma. Criei-o ao enredar os factos, as paisagens e os desconhecidos que me rodeiam e não pela força das minhas mãos. Foram muitas as manhãs e inúmeros os crepúsculos em que contemplei uma outra argila transformada nesse mesmo esplendor.
Onde começará, onde acabará o deslumbramento? Não sei. 
Por agora tenho de voltar à narrativa real. Mas o caderno espera-me constantemente sobre uma mesa num alpendre voltado para um mundo empedernido. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Isabel e as águas de Novembro

É bonita e calada. Não tem qualquer talento ou angustia. O seu saber viver ajuda-a. Não faz perguntas e só fala com conhecimento de causa. Chegada a casa os seus gestos tornam-se mais soltos, esforça-se por lhes conferir maturidade. O chá é o seu principal prazer. Toma-o sozinha, confortavelmente instalada no sofá, descalça, com o televisor ligado no Big Brother e na CMTV apalpa as entranhas do mundo. Depois de beber o chã, deita-se, brinca com o gato, lê umas páginas de um romance de Raul Minh'alma. Amanhã, se não chover, Isabel quer aprender a voar. E actualizar o Linkdin.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Díptico

Importa tomar o rumo de outras tentações. As tentações e os pecados não determinam apenas os caminhos da carne e é essa a felicidade de um homem. Quando peca, liberta-se: da estupidez, dos demónios. Torna-se simples e puro. A luz não provém da luz, provém das trevas.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Sem foto de pouco vale, mas...

Se eu escrevesse para os outros, deleitar-me-ia a descrever tudo o que não sinto necessidade de descrever para mim. Recorreria a uma enorme paleta de cores cruas e insólitas. Escreveria com uma bonita caligrafia sobre o céu azul desta tarde de Novembro. E uma sensação de azul liquido incitaria a minha mão. As palavras alinhar-se-iam, crispadas, incapazes de circunscreverem esta sensação de azul que me dilata o coração. E com a mesma caneta, a caneta da ilusão, descreveria o vento, o horizonte, as ondas à minha frente, as montanhas arrasadas atrás de mim... e o sol lá em cima.  
Mas como não escrevo para os outros e vim até aqui chamado por mim, não fotografei o azul. Um evadido não olha para as ondas nem para o céu. 

domingo, 1 de novembro de 2020

Fiéis defuntos

O medo é como a morte. A morte é pertença de cada um, indivisível, ninguém tem nada a ver com as nossas mortes, ninguém tem nada a ver com as mortes dos outros. Portanto, a morte é um território privado, como o medo. A nossa morte só a nós diz respeito, não a podemos compartir, não há duas mortes para cada um, não a podemos dividir nem rejeitar, como o medo; por isso tememos o medo e tememos a morte porque estamos sozinhos com o nosso medo e com a nossa morte. E o que nos horroriza na morte é termos de ficar outra vez sós. Mas aprender a gostar do medo não significa que aprendamos a gostar da morte.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Virgínia


    Dias de rigor...
em que o dessossego é tanto tanto tanto
que se transcende do próprio corpo 
           e vira canto.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Champions League

Ela pediu um café com leite e deu conta dele com pequenos goles, até ficarem no fundo as marcas castanhas e o açúcar por dissolver, que é o que agora remexe enquanto fala com ele. Tem o queixo apoiado na outra mão, com o braço perpendicular à mesa, e o fino cachecol, que na rua enrolava com três voltas, cai-lhe agora pelos ombros como um adepto de futebol colocaria o seu para mostrar o símbolo do seu clube. Tem a gabardina aberta e os três botões superiores da camisa desapertados. Vê-se-lhe o pesponto do soutien a rebentar pelas costuras e ele sente vontade de mergulhar a cabeça nele, para afastar a tempestuosa conversa que se avizinha, mas com a mesa pelo meio optou por passar-lhe a mão pela mão. Jogada de antologia. A valer três pontos preciosos.

sábado, 24 de outubro de 2020

Creme Brulée

Para lá da vidraça, o mar ao fundo, revolto. Do lado de dentro, cigarros e isqueiros sobre a mesa. Cada um pede um prato diferente para poder debicar o do outro. Ela, alta, com cabelos negros e frisados, as faces de quem gosta de rir, sobrancelhas de mulher minuciosa, que procura algum sentido para a vida, uma direcção, um significado, um gosto verdadeiro. Não o sentido único de que os fatigados, os resignados, se servem para não terem de lutar. 
Ele acende um cigarro, pousa o isqueiro, aspira uma grande baforada de tabaco, marca uma pausa, solta um sopro, dispensa o leite creme queimado, fita-a nos olhos sem desviar o olhar. Deve estar com medo. Tenta permanecer mole, doce, sem varejar com os braços e as pernas, fazendo um tremendo esforço para permanecer aberto, disponível.