terça-feira, 10 de agosto de 2021

Tábua de marés

Mas que boa ideia! Que ideia sã! Invejo-lhe a fleuma, a indolência, a despreocupação. Um ideal que para o atingir deve ser preciso ter a mente vazia ou então uma mente preenchida e rica. Vê-la comer foi altamente inspirador. Saboreou cada pedaço de comida, que escolheu com toda a calma. Teve o cuidado de escolher coisas de que gostava, que lhe caiam bem, porque o sabor lhe agradava. Prolongou interminavelmente a refeição, com o seu bom humor a aumentar, com a sua indolência a tornar-se mais sedutora, o espírito mais agudo, vivo, desperto. Uma boa refeição, uma boa conversa. Uma boa f...., pensou a minha mente insana. Que melhor forma de passar o dia. Ao contrario de mim não tinha escorpiões a devorar-lhe a consciência, preocupações das quais não se conseguisse descartar. 
Limitei-me a flutuar com a maré, e nada mais.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

No entanto, recordo perfeitamente ...

No instante de afastar as coxas, sentir um êxtase, um momento de terror luminoso, como deve sentir um homem que salta da ponta de uma falésia indo cair sobre as rochas distantes. Ou o criminoso, atirado para a eternidade pelo empurrão do carrasco, voando sobre o silêncio da multidão. Vê-se tudo, compreende-se tudo, uma luz intensa, um ar calmo. Depois o vento quebra as ondas sobre a cabeça, a luz diminui, o odor a terra molhada intensifica-se.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Entrefolhos

Assim que toquei a campainha a porta abriu-se num movimento imediato. Lá dentro era uma sala de mobília tubular em preto e branco, no chão um tapete de lã, espesso, como uma nuvem por onde me deixei deslizar. Não conservo recordações dessa noite, nem das pessoas que ali estavam, nem da musica que foi tocada. A única coisa que subsiste na minha memória é o seu rosto, uma oval perfeita riscada por lábios vermelhos, olhos de corça, planetas de reflexos escuros no interior dos quais parecia decidir-se os destinos do universo, pescoço fino, o movimento do corpo constantemente a escapar às regras mais elementares da gravitação, nádegas aristocráticas, seios tumefactos de vida e de sumptuosos mamilos. Recordo ainda o encontro dos corpos de onde se exsudaram odores intensos, os dentes a morder a pele, ser conduzido às portas do inferno, de me enterrar até ao fundo. E uma vez percorrido esse caminho, escavar a minha própria sepultura, afundar-me no abismo escorregadio onde outrora tantos outros haviam perecido. Não sei se era sábado ou domingo.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Há autores que começam os seus livros de uma maneira que já nem nos apetece ler mais nada


"Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si."

_Jeferson Tenório, O avesso da pele

terça-feira, 20 de julho de 2021

Vergílio

Dela quis sempre tudo. Ver todos os seus rostos, todos os seus medos, todas as suas audácias, aquele sentimento novo que se inventa de cada vez que se a volta do avesso como quem vira uma luva e que faz surgir em si territórios desconhecidos, para onde nos deixamos arrastar aterrorizados, voluntários e seguros de que estamos a aproximar-nos de uma luz que nos cega, mas que nos escombros do interior nos fala de amor, de identidade, de terra por desbravar. 

Tivesse tido eu tempo de a invadir e certamente encontraria por dentro o que amei por fora até à estupidez.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Tu nem sabes a sorte que tens


Poder olhar o mar. Poder olhar o céu. Com a tarde a acabar, poder assistir ao sol a dizer para a lua: vem. Desfrutar da noite quieta.Tu nem sabes a sorte que tens. Para muitos isto é tudo.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Summertime

Fim de tarde, um banco junto ao passeio marítimo, uma silhueta, um vestido florido com as cores do dia, o peito generosamente desnudado, as ancas amplas, a pele branca, o cabelo acobreado sobre os ombros arredondados, sandálias com plataforma de juta, ao pescoço um lenço de seda, ao lado a mala aberta, óculos, tabaco, isqueiro... e por cima um outro lenço, também fino e leve, amarelo torrado. Os cabelos revoltos pelo vento, o olhar atento, absorto, perscrutando o horizonte, o rosto marcado por uma branda e evasiva solidão, mas intenso como no passado, à espera de um sussurro, de um movimento de lábios ou de mãos ou de corpo ou... de ondas no mar ao fundo. Ou, mais ao fundo, Billie Holiday interpretando majestosamente a chegada do Verão.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Sessão da Meia-Noite


"Ladrões de bicicletas" - Vittorio de Sica, 1948

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Apostasia

Toda a minha vida fui um ateu militante, mas perante estes tempos de espírito inquieto não tomarei a mal que rezem pela minh'alma.

Amém. 

sábado, 3 de julho de 2021

Afonso Cachucho*

Petrificado e sem o controlo dos seus olhos, deixou-se assistir à orgia que se iniciava no tapete cor toupeira decorado com pavões e dragões, cujos olhares insondáveis pareciam ganhar vida. Os bronzes de máscaras grotescas, os livros da biblioteca grande, todos os outros objectos iam por seu turno ganhando vida também, como num pesadelo, ao ritmo pontuado de suspiros e gemidos, do jogo inverosímil e alucinante a que se entregavam e misturavam na sua frente os dois corpos de pele macia. O seu espasmo foi o de um homem aparvalhado, fustigado, espicaçado, mortificado.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Sara Pinote *

Morena, olhar profundo, cabelo acobreado, pele fresca e mate, seios cheios, cintura miraculosa, tornozelos finos, uns sapatos de pele de antílope, de salto alto, por baixo do casaco comprido um vestido preto, fino, frio, de mangas curtas, e uma carteira a abarrotar de fantasias. Esbelta e rápida de movimentos, ansiosa por ver e por ser vista. Em momento algum dispensou a máscara. Não parecia destinada a um único amante. Também estava só.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Rasgos da mente

Tenho uma amante imaginária. 
Preocupa-me que tenha começado a escrever-me.

terça-feira, 22 de junho de 2021

História universal da submissão

Despe-te! -- Ordenou um.
O outro tirou lentamente as suas roupas, depois a pele.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Selecção Nacional

O que é um "colectivo" para um EU ainda com tantas necessidades? O que é um "eu" para um COLECTIVO cheio de talento oprimido?

Da resposta às questiúnculas decorrerá a qualidade e a quantidade do ópio que o povo tomará nas próximas semanas.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Penúltima fase do desconfinamento

Primeiro aconteceu um beijo que se prolongou no entrelaçar das línguas. Depois a mão direita subiu pelas costas em busca dos colchetes superiores. Outros beijos se foram perdendo no pescoço à medida que se desapertavam os fechos dourados. O qipao tombou aos seus pés, revelando um busto de belos seios firmes, uma cintura delgada, descrevendo uma curva suave que se alarga nas ancas e se prolonga harmoniosamente pelas pernas. Abraçamo-nos com outra intensidade.

Melhores dias virão.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Dia Mundial da Criança

Cheguei abúlico e como se nada tivesse a negar ou a afirmar sobre este parque infantil onde a beleza prevalece, embora predomine o acidente, a imperfeição da felicidade. Conservo uma velha ternura pelos recantos deste jardim e espero sempre reencontra-lo com o olhar antigo e o cândido sentimento da descoberta. Mas os dias não param de revolutear imperdoáveis e as faces das coisas, dos lugares, alteram-se inevitavelmente. A vida passa, enquanto se espera que ela comece e chega um tempo em que os pássaros já não encontram o céu, em que as estrelas são irremediavelmente maculadas.
As pessoas, essas, continuam bonitas, cautelosas e sensatas. Sinto-me envolvido por uma onda de afabilidade e cortesia, mas nem por isso me sinto obrigado a excessivas diligências para com aqueles que ao fim de tanto tempo me recebem com benevolente cumplicidade. É notório que ambos aprendemos que as ambíguas sinceridades se tornam hoje, mais que nunca, em sentimentos velados e imprecisos, e que as relações humanas estão confinadas dentro de certos limites: na dissimulação entre as contradições, as certezas e as dúvidas.

domingo, 30 de maio de 2021

Sem foto de pouco vale, bem sei

Mas...é que hoje vi outra vez algo maravilhoso. E foi outra vez na marginal de Moledo. Uma imensa bola de fogo tombando sobre o horizonte, ardendo lentamente até desaparecer lá nos confins do mar que era azul cobalto. 
Mais ao fundo, desta vez com uma ligeira bruma, a Cecília Bartoli cantando majestosamente... quanno fa notte e 'o sole se ne scenne me vene quase 'na malincunia.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Palomar

Esta manhã o Senhor Impontual olhou-se no espelho e reparou nas rugas entre o canto do olho e a têmpora, nos sítios onde a pele já não é tão esticada como dantes. O Senhor Impontual não se reconheceu. Pareceu-lhe que está a envelhecer de uma maneira confusa. Os dias aceleram, mas o Senhor Impontual não se sente pronto para o encaminhamento deles. Porém há uma coisa que mais do que outras sinaliza que o Senhor Impontual está a envelhecer. Deixou de corar. Deixou de sentir aquele rubor nas faces, aquela alerta vermelho perante as situações.
Noutros tempos o Senhor Impontual achava isso incomodativo. Desde a infância que sofria por corar com tanta facilidade. Em todas as situações, muitas vezes sem nenhuma razão óbvia, podia sentir um súbito ardor nas faces. Por vezes corava até quando estava sozinho perante um pensamento ou uma recordação. O Senhor Impontual esforçava-se por deixar de o fazer, mas era impotente.
Agora, assim do nada, o Senhor Impontual deixou de corar. Não é por já não se sentir tímido ou achar uma situação embaraçosa. Deixou simplesmente de corar. Algo se apagou dentro do Senhor Impontual. O Senhor Impontual começa até a interrogar-se se a sua disposição para corar não teria algo de valioso, talvez o mais valioso que em si havia. Talvez tivesse significado uma ousadia paradoxal, talvez a sua timidez tivesse sido, na realidade, uma força. O Senhor Impontual procura agora a chama que se perdeu dentro de si, mas já não a acha. O Senhor Impontual sente a saudade tardia que é a crueldade inerente do tempo: compreender as coisas no mesmo instante em que elas desaparecem.

sábado, 22 de maio de 2021

Fiodor

Há lugares que parece que foram desenhados no mapa com o único propósito de absorver a mente de quem os visita. Até dos cães!  Esses lugares, mesmo que não o consigam alcançar com uma única imagem aniquiladora logo à chegada, vão-se alimentando do visitante paulatinamente, consumindo-o desde o seu interior, banqueteando-se primeiro das suas expectativas - dando-lhe uma e outra imagem que este procura desesperadamente, apossando-se depois dos seus anseios, das suas memórias, das suas nostalgias, das suas premências, até que a emoção dê lugar à loucura e esta comece a ganhar terreno sobre a vitima, tal como a maré que chega à praia. O Senhor Impontual, definitivamente, não tem mão nem fôlego para o canino de pêlo pardo.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Geometria descritiva

Com a Primavera, chega o tempo de cuidar dos jardins. O Senhor Impontual, por si, vivia no meio dos relvados: horas a fio executando o corte sempre de acordo com os seus preceitos geométricos. Todos os dias, qual navegador obstinado, ir e voltar naqueles mares de verdura, sulcando, ao sextante, o coração dos jardins. Deixar atrás de si a ilusão de um mundo pacificado, de uma natureza submissa e de uma vida sem surpresas.