terça-feira, 26 de outubro de 2021

Pitagorismo

A lei que Costa não soube prever: a base de qualquer triângulo é, invariavelmente, a infidelidade.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Quem quer casar com o agricultor


Bom rapaz. Quintal próprio. Boas colheitas. Mas... até hoje nenhuma soube dar-lhe vontade de ser outra coisa para além de um amante lamentável. Sonha ser fiel, sucede-lhe, por vezes, convencer-se de que o é, durante um tempo, para explorar o que só se descobre na monogamia, mas continua a ser um rapaz que se aborrece depressa, um tipo que, como Óscar Wilde, só se livra da tentação sucumbindo a ela, e que se assusta muitas vezes por não conseguir encontrar aquela que... Detesta os sentimentos que provoca. 
Em redor da casa existe um prado. Não se trata de um sitio onde, naturalmente, devesse haver um prado: logo o prado é um objecto artificial composto por objectos naturais, isto é, ervas. Dá trabalho a desinfestar, cortar e regar.
Quem quer casar com o agricultor?

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Pina


Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Povoléu

Era uma vez um país, numa época em que a maior parte das pessoas acreditavam num qualquer género de universo em três camadas - havia o mundo sobrenatural, o natural e um qualquer lugar onde havia seres humanos. Uma espécie de vácuo nevoento e doloroso onde o Povoléu era a classe dominante. O seu nome do meio era Pobreza e o seu apelido Ignorância. Consequentemente, a sua única possibilidade de felicidade estava na escravidão. Escravizem-nos, se for preciso, gritava silenciosamente o Povoléu, mas dêem-nos de comer.  E assim foi sobrevivendo o Povoléu, matando a fome e passeando-se em ruas mal iluminadas onde ninguém o pudesse escutar - ouvia-se contar o que acontecia aos que erguiam a voz por uma outra liberdade -, mas o Povoléu não ficava muito perturbado com esse género de purga.

É lamentável que hoje o Povoléu ainda misture dois sentimentos tão diversos: o ressentimento, a insatisfação e a névoa que toda a infância convoca. É lamentável, como o é que o erro se tenha perpetuado. O que se passou a seguir, ou seja hoje, não podia ter corrido bem porque estava construído sobre alicerces muito frágeis. Volvidos cinquenta anos, democraticamente, agora mais do que nunca, o Povoléu reduz-se a uma espécie de massa acrítica, destinada unicamente a regular a cotação do petróleo, fazer a vénia e desembolsar todos os prejuízos colaterais.
  
A unanimidade da derrota previamente anunciada confirma-se a cada dia que passa.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Outubro

Acontece sempre em Outubro. Apodera-se do Senhor Impontual uma partícula de lucidez, uma mania, uma atitude compulsiva. Não é sofreguidão. Também não é solidão. Embora o Senhor Impontual tome consciência de que quer estar só. Nesta altura do ano - tal como as árvores - o Senhor Impontual gosta de se desmoronar peça a peça, de se desconstruir de fora para dentro, de se subtrair de componentes que já não funcionam mais. Assim, fragmentos de felicidade, alegria, prazer, vontades, desejos e esperanças vão sendo desarticulados um a um, sem tristezas, sem arrependimentos, sem hesitações, sem contemplações. É um acordo bilateral; do Senhor Impontual para o Senhor Impontual. Depois, se a ideia do desejo continuar presente dentro de si, o Senhor Impontual aceita a eventualidade da atracção e do rebentamento de outros estames, mas jamais para sofrer a tortura lancinante da falta, a comichão exasperante da privação. Acontece sempre em Outubro. Este Outubro vai extraordinariamente quente.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Squid Game

Estação ferroviária. 06:04 da madrugada. O comboio rápido com destino à grande capital acaba de acostar no cais de embarque. Avançam uns de cada vez. Devagar. Entorpecidos. No olhar de cada mulher, de cada homem germina oculto e calado um tempo de espera. Parece que lêem nos olhos uns dos outros, os seus sonhos e as suas aflições. O silêncio, ambíguo, retém-se à sua volta, estranho e solidário. Parece que sabem o fim uns dos outros, as pequenas esperanças e os receios que os calam, de a vida não ser tão generosa como desejavam. Ficam ali de olhos fixos e muito abertos, imóveis e serenos, como se esperassem dai a momentos o instante da morte, uma morte violenta que os liberte definitivamente de toda aquela mesquinhez, da miséria prolongada que os vai prendendo irremediavelmente à vida. 
Vão a jogo. A viagem cumprir-se-à em três horas e trinta minutos. Não há atraso previsto. Na grande capital espera-os uma temperatura do ar de trinta graus centígrados. O inferno. Eles e os outros.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Olá, bom dia

Como estão? Cansadinhos do fim-de-semana prolongado, não é? Foi muito caso Rendeiro, muito Pandora Papers, muita pedofilia de sotaina, muito Globos de ouro, pouco Benfica, pouquíssima rede. Pois eu, apesar de tal como tantas outras pessoas que vivem este extraordinário momento da história da humanidade, não tenho, de forma alguma, a certeza do que está correcto e do que está errado. Por isso, se aqui e acolá vos parecer um pouco lento a compreender as dimensões politicas, tecnológicas, morais e sociais do que se está a passar, receio ter de vos pedir que tenham paciência comigo. Peço desculpa. É uma idade cada vez mais difícil.

sábado, 2 de outubro de 2021

Noite da libertação

Depois de lutarmos toda a noite, as sombras, escravas dos nossos corpos, fingem-se hostis. A manhã chegou depressa. O vento sopra em rajadas, a chuva bate nos pavimentos que o farol ilumina intermitentemente, o mar está agitado, parece reclamar cadáveres. Conservamo-nos no calor artificial da casa, na luz amarela, entre paredes que nos protegem, na intimidade reencontrada, reconquistada. Olho-me no reflexo da vidraça da janela. Tenho a fadiga estampada no rosto, mas é uma fadiga serena, confiante, uma prostração pacífica. Deixo-me tombar sobre o colchão ainda quente. Observo os sinais dos seus ombros. Sei que já nada mudará de ora em diante.


Partiremos no primeiro ferry.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Sermão aos peixes

Vou tentar fazer chegar esta missiva aos vossos olhos e peço que a leiam. Mas não alimento qualquer esperança de que estas palavras penetrem nos vossos corações. Sei que desperdiço a minha tinta e o meu tempo.

Este Mundo está tão breve! Não podemos ter a veleidade de emitir qualquer condenação sobre os seus habitantes. Importa viver primeiro e filosofar depois.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Outono


A maior parte das pessoas, à medida que vai amadurecendo envelhecendo, descobre que passou a vida a dar explicações, e arrepende-se disso, mas continua a fazê-lo.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Sobressalto sistémico

Alguém mandou calar o canto dos pássaros porque o ouvido interior dessa pessoa ouvira uma melodia mais bela! Alguém mandou murchar as flores e as árvores porque o seu olfacto interior descobrira um aroma mais maravilhoso que os aromas da própria natureza. Finalmente, alguém mandou destruir a arquitectura e os objectos de arte porque se apaixonara pelas coisas impalpáveis.
Assusta-me que tenha deixado o céu tão azul.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Palomar

O Senhor Impontual é um desgraçado e desgraçado é toda a alma presa pelo amor às coisas finitas... O Senhor Impontual sente, por antecipação, um profundo tédio aos dias vindouros. A alma do Senhor Impontual está despedaçada e escorre sangue, e não se sente bem em si, mas o Senhor Impontual não encontra lugar onde possa pacifica-la. Ela não encontrará paz nos bosques amenos, nem nos jogos e cânticos, nem em jardins suavemente perfumados, nem em banquetes faustosos, nem em lareiras rubras, nem no prazer da alcova, nem mesmo nos livros e na poesia.
Porém, há uma coisa extraordinária para ver nas margens do Arno neste inicio de Outono: o céu apinhado de pássaros.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Integridade, decência, solidariedade, dedicação à causa democrática

 Jorge Sampaio
(1939-2021)

"Um Presidente da República não é uma folha seca, é alguém que tem de ter princípios e valores que defende a Constituição e está recheado de vivências."

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Setembro


O passado, o presente, o futuro - um livro rasgado em pedaços. 
Por onde começar, a fim de voltar a pôr tudo em ordem?
Hoje estou aqui. Consciente. Dado estar aqui, não necessito perceber os pormenores.
Nem tudo é para ser.

domingo, 29 de agosto de 2021

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Agosto não é um bom mês

... para se fazer uma entrevista a Antonio Barreto.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Tábua de marés

Mas que boa ideia! Que ideia sã! Invejo-lhe a fleuma, a indolência, a despreocupação. Um ideal que para o atingir deve ser preciso ter a mente vazia ou então uma mente preenchida e rica. Vê-la comer foi altamente inspirador. Saboreou cada pedaço de comida, que escolheu com toda a calma. Teve o cuidado de escolher coisas de que gostava, que lhe caiam bem, porque o sabor lhe agradava. Prolongou interminavelmente a refeição, com o seu bom humor a aumentar, com a sua indolência a tornar-se mais sedutora, o espírito mais agudo, vivo, desperto. Uma boa refeição, uma boa conversa. Uma boa f...., pensou a minha mente insana. Que melhor forma de passar o dia. Ao contrario de mim não tinha escorpiões a devorar-lhe a consciência, preocupações das quais não se conseguisse descartar. 
Limitei-me a flutuar com a maré, e nada mais.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

No entanto, recordo perfeitamente ...

No instante de afastar as coxas, sentir um êxtase, um momento de terror luminoso, como deve sentir um homem que salta da ponta de uma falésia indo cair sobre as rochas distantes. Ou o criminoso, atirado para a eternidade pelo empurrão do carrasco, voando sobre o silêncio da multidão. Vê-se tudo, compreende-se tudo, uma luz intensa, um ar calmo. Depois o vento quebra as ondas sobre a cabeça, a luz diminui, o odor a terra molhada intensifica-se.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Entrefolhos

Assim que toquei a campainha a porta abriu-se num movimento imediato. Lá dentro era uma sala de mobília tubular em preto e branco, no chão um tapete de lã, espesso, como uma nuvem por onde me deixei deslizar. Não conservo recordações dessa noite, nem das pessoas que ali estavam, nem da musica que foi tocada. A única coisa que subsiste na minha memória é o seu rosto, uma oval perfeita riscada por lábios vermelhos, olhos de corça, planetas de reflexos escuros no interior dos quais parecia decidir-se os destinos do universo, pescoço fino, o movimento do corpo constantemente a escapar às regras mais elementares da gravitação, nádegas aristocráticas, seios tumefactos de vida e de sumptuosos mamilos. Recordo ainda o encontro dos corpos de onde se exsudaram odores intensos, os dentes a morder a pele, ser conduzido às portas do inferno, de me enterrar até ao fundo. E uma vez percorrido esse caminho, escavar a minha própria sepultura, afundar-me no abismo escorregadio onde outrora tantos outros haviam perecido. Não sei se era sábado ou domingo.