Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma quinta-feira. Desta vez estamos em Outubro, as flores caídas dos jacarandás jazem brilhantes sobre o pavimento do lado de fora, apanho-as às mãos-cheias e espalho-as sobre o Chesterfield de veludo alemão onde ela se irá sentar, ou deitar, ou recostar, para o retrato. Magnificas pétalas roxas, fazei-a sentir-se como uma rainha.
Antes de ela chegar, misturo sempre as cores da minha paleta. Conheço a tonalidade da sua pele, a cor do seu cabelo, o cor de rosa da meia-lua nas unhas. Depois de ela chegar ajusto levemente as cores, de acordo com o seu aspecto: se vier de tempos maus o tom de pele precisa de mais amarelo; se estiver com ar benevolente, acrescento uma camada de azul ao branco dos olhos.
Começo com um esboço a carvão do seu rosto. Na primeira vez que posou, favoreci-a na tela. Hoje sou implacável nos pormenores e registo cada ruga ou mudança de cor, ou sinal oblongo. Observo-lhe o busto. Um dilúvio de entusiasmo pela sua pele, aquela seiva provocante que anima os meus olhos, faz-me antever horas sublimes. Mas acabo por esquivar a minha própria rendição, prolongar o tempo em volta de um corpo nunca vazio, dar-lhe vontade de se mostrar nu, fazê-lo encontrar em si essa volúpia. Para que consiga deleitar-se com esse exercício é preciso que goste de si mesma, do seu corpo, mas também da personalidade que sofre dentro dele. A imagem das formas fragmentadas que a compõem, aquele esboço reconstituído na sua mente, é aquilo que terei de retocar para desvanecer aquele olhar severo. Não tenho talento.