sábado, 27 de outubro de 2018

Bolsonaros

Acredito que desejem, tão-só, respostas práticas, caminhos e direcções onde o particular ceda vez ao geral. Talvez se odeiem uns aos outros. A miséria possui formas subtis para degradar a lucidez humana. E os aspectos singulares do desespero confundem-se, frequentemente, com o desdém da própria solidariedade colectiva.

Sempre ouvi dizer que uma história começa quando a própria história nos surpreende. Não há-de ser o caso. Mas não é certo.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Questiúncula

As pessoas humildes sabem que são humildes, ou aquilo nem se nota?

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Toucador


Envelhece, mantém-te inteligente, educa os teus filhos para que sejam bons escuteiros e amantes fieis, ensina-os a usar a confiança com prudência, diz-lhe que acreditem, mas não os deixes viver pendurados na esperança, deixa o teu cabelo embranquecer, deixa que as tuas ancas aumentem de volume e ocupem toda a cadeira, deixa que os teus seios fiquem descaídos, permite que quem te ama não seja o último. Não fiques só. Não faz nada bem viver só. Regenera. Regenera-te em cores abstémias.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Sessão da Meia-Noite


      Viver - Akira Kurosawa, 1952

Com a Alexandra G

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Orçamento do Estado

Tenho evitado pensar sobre a razão que me despertou para isso. Nunca dei grande atenção à politica; se há uma coisa a que não sou obrigado, enquanto criador é, sem dúvida, saber em profundidade o que o governo está a fazer. Para mim é muito mais interessante saber como transformar um pensamento numa imagem e depois a imagem em paredes que serão fortalezas e janelas largas que serão monóculos virados para o mundo, saber como pintar o céu sem usar o azul, erigir um jardim sem usar o verde, ali e acolá obter intencionalmente uma falsa perspectiva... alheando-me dos arrebatamentos insignificantes da política remodelada à força. Todavia, algo me está a incomodar, um ruído de angustia sob os sons nocturnos, vozes de burro a jogarem às escondidas, vozes de burros que se abeiram dos céus. Dos céus sem azul...

domingo, 14 de outubro de 2018

Espuma da noite

Centenas de pássaros a passear pela praia, gaivotas velhas, gaivotas novas de penugem cinzenta e luzidia, parece um salão de baile. No mar jaz todo o ruído do mundo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Consensus omnium

Eis que num crepúsculo de um fim de tarde de Outono, a campainha toca e ao portão que se abre instantaneamente assoma uma Senhora loura, soberba, elegante. Podia vir de Moscovo, Estocolmo ou mesmo de Berlim. Mas vinha com certeza de Hollywood. O peito desnudado, as ancas amplas, a pele bronzeada, o cabelo louro e os olhos muito azuis. Sapatos de salto alto, um vestido que pertencia a outro mundo. Uma aparição triunfal e uma voz, uma voz incomparável. Em lugar de boa tarde ou boa noite, anunciou dramaticamente: tem de ver a situação do seu Fiodor que não pára de tentar pular a cerca e isso está a amedrontar a minha Mimi. Olhe que se algo acontecer, vou processa-lo e pedir uma indemnização. Veja lá o que se passa com o seu canídeo, vizinho.
Assenti e descansei a Senhora loura, elegante, soberba, assoberbada. As coisas estão como estão.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Lapalissada

Quando um crime sexual é divulgado na comunicação social mata o inocente, o culpado e o público.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Pintar Outubro

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma quinta-feira. Desta vez estamos em Outubro, as flores caídas dos jacarandás jazem brilhantes sobre o pavimento do lado de fora, apanho-as às mãos-cheias e espalho-as sobre o Chesterfield de veludo alemão onde ela se irá sentar, ou deitar, ou recostar, para o retrato. Magnificas pétalas roxas, fazei-a sentir-se como uma rainha.
Antes de ela chegar, misturo sempre as cores da minha paleta. Conheço a tonalidade da sua pele, a cor do seu cabelo, o cor de rosa da meia-lua nas unhas. Depois de ela chegar ajusto levemente as cores, de acordo com o seu aspecto: se vier de tempos maus o tom de pele precisa de mais amarelo; se estiver com ar benevolente, acrescento uma camada de azul ao branco dos olhos.
Começo com um esboço a carvão do seu rosto. Na primeira vez que posou, favoreci-a na tela. Hoje sou implacável nos pormenores e registo cada ruga ou mudança de cor, ou sinal oblongo. Observo-lhe o busto. Um dilúvio de entusiasmo pela sua pele, aquela seiva provocante que anima os meus olhos, faz-me antever horas sublimes. Mas acabo por esquivar a minha própria rendição, prolongar o tempo em volta de um corpo nunca vazio, dar-lhe vontade de se mostrar nu, fazê-lo encontrar em si essa volúpia. Para que consiga deleitar-se com esse exercício é preciso que goste de si mesma, do seu corpo, mas também da personalidade que sofre dentro dele. A imagem das formas fragmentadas que a compõem, aquele esboço reconstituído na sua mente, é aquilo que terei de retocar para desvanecer aquele olhar severo. Não tenho talento.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Cardápio

Estamos em Outubro e nisto dos Weblogs que ainda por aí proliferam, o que aborrece, seguramente, não é a falta de imaginação, não é a panóplia de interesses apresentados, nem sequer a confusão entre o real, que é somente aquilo que os dias trazem e a imaginação, que mais não é que aquilo que os dias não trazem. O que aborrece, verdadeiramente, é a fria lubricidade daquilo que é anunciado como interessante.

O que nos vai valendo é a qualidade do obituário!

segunda-feira, 1 de outubro de 2018