terça-feira, 23 de junho de 2020

Fadário

Estou sentado junto ao que resta da igreja matriz, de cujo interior, segundo consta, saíam em tempos cânticos hinários, entoados em idiomas bíblicos. Gaivotas circulam baixo e, por vezes, cautelosamente, poisam, em bandos estridentes. O tempo flui e nascem trevas que logo se dissipam. Ou foram apenas brumas procedentes das marés. Agora a largos intervalos tombam gotas nos telhados de zinco gasto, provocando tristes ressonâncias. Mas não chove. Ou, se chove, de onde cai a chuva? Do céu não é, esse está aberto numa claridade primitiva, os aromas são subtis mas profundos. O marulhar da água é ameno. Os raios de sol são paralelos ao atingirem o mar. Aliás tudo no Universo é paralelo. Contemplo o mar, como se o mar fosse uma estrada ou um ligeiro presságio mordido e rendilhado pelo bater das ondas.
Ocorre-me que é isto que nos impede de morrer: andarmos surpreendidos desde que começou o fadário. Tenho muita sorte com a minha profissão que, entre outras agruras, me permite construir destinos. Ou reconstruir, vá lá.

Mas... e o que é o destino?
 - Talvez seja isto mesmo: construir para permitir a destruição.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Disto de escrever nos blogs - esse instrumento de sopro.

Inspiramo-nos no escuro, de uma maneira ou de outra. E a fraqueza tem vários nomes: igualdade, generosidade, benevolência, justiça. Todavia, é ainda no escuro que determinamos que nas relações com os outros é preciso saber mandar, pelo menos uma vez por outra; saber exercer uma certa violência mansa, um discreto terror enleante na discordância e... alimentar um certo, e por vezes acentuado, poder de exclusão. Claro que para qualquer um de nós viver é: olhar, sentir, cheirar, caminhar de cabeça erguida e regista-lo com palavras rutilantes. Quando só exprimimos os sentimentos mais profundos - assobiando.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Do verbo açaimar

Um dia, e esse dia já esteve mais longe, pacientemente, aprenderemos a viver com o mau-estar, com a medonha presença da outra figura. Para aí chegar, revestiremos tudo de silêncio. Será dispendioso. Não estaremos, sem dúvida, em condições de reencontrar a quietude senão ao preço alto desse mutismo. Ignoraremos por que razão uma tal confiança se forjou e instalou tão rapidamente. Saberemos apenas que isso aconteceu. Insinuou-se e existe agora entre nós. Uma coisa sólida e simples. Com uma certeza porém, indiscutível, que no entanto, sem dúvida alguma, debaixo da máscara cirúrgica, jamais invocaremos: ambos somos estrépitos.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Impontual with an P



Vocês não sei, mas eu de repente estou a sentir-me repleto de possibilidades. 

terça-feira, 9 de junho de 2020

Asdrúbal

Colocou os óculos de parte, depôs as mãos sobre o colo, abandonando aí os braços com suavidade. Coisa alguma o prende àquele lugar, não retém qualquer saudade daqueles sítios que somente conservam o cenário já de si nublado do reencontro com Almerinda.
Não é novo nem é velho: chegou à idade indefinida em que um homem vai ficar até ao fim da vida com a cara que fez por merecer e com as recordações do que recusou e aceitou: espectros cada dia mais vivos e agressões cada vez mais insolentes. Todavia, aprendera há muito tempo que para esquecer é preciso recordar. E se poucas coisas deseja recordar talvez seja porque é um homem dividido nas suas lealdades. O importante, porém, não é esquecer ou recordar, mas deixar que surja, alternadamente, uma coisa e outra. Às vezes fala com os céus. Mas os céus também já não são os mesmos - as estrelas estão separadas por espaços infinitos.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Acervo de letras

De repente, um dia sentirás que a tinta passa por dentro do teu corpo antes de chegar ao papel e, quando tiveres essa sensação, já nada nem ninguém poderá instigar-te ao que quer que seja. Tudo dependerá, não direi da tua inspiração, mas da forma como suspiras. Até lá, deixa o subconsciente gritar. Sem reservas.

 (a partir de uma cisma do  meu Caro, e saudoso, Miguel Bondurant)

sábado, 6 de junho de 2020

Beatriz

Lá fora o ar flutua quente e em tons acinzentados. Do lado de dentro da noite, o inferno entranhado nas paredes e nos poros. Dorme nua. Espalhado sobre a almofada, o cabelo está intacto, cheio de um furor bestial, como se fosse uma crina. De repente uma visão turva. Sorriu melancolicamente, a seguir fez o gesto de quem espanta um mau pensamento, uma obscura e risível tentação. Há muito que a intimidade chegara a um ponto inatingível. 

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Lei da Insurreição

Eu até gostava de dizer algo sobre a situação na América, mas não sei se o faça. 
Não tarda acende-se de novo o fascínio do mundo pré-moderno, subdesenvolvido e desfavorecido por uma mesma América que dele se tem continuamente afastado e continuará a afastar-se, apesar das suas próprias misérias e sofrimentos, mas que permanecerá sempre pronta a mostrar que está ali para ajudar os oprimidos de toda a parte, como se pagasse, assim, todos os seus pecados e privilégios. 
Mas que aquilo é uma vergonha, lá isso é.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

A partir de um rabisco de Almada



Os cegos copulam de olhos na pele.