Assim que toquei a campainha a porta abriu-se num movimento imediato. Lá dentro era uma sala de mobília tubular em preto e branco, no chão um tapete de lã, espesso, como uma nuvem por onde me deixei deslizar. Não conservo recordações dessa noite, nem das pessoas que ali estavam, nem da musica que foi tocada. A única coisa que subsiste na minha memória é o seu rosto, uma oval perfeita riscada por lábios vermelhos, olhos de corça, planetas de reflexos escuros no interior dos quais parecia decidir-se os destinos do universo, pescoço fino, o movimento do corpo constantemente a escapar às regras mais elementares da gravitação, nádegas aristocráticas, seios tumefactos de vida e de sumptuosos mamilos. Recordo ainda o encontro dos corpos de onde se exsudaram odores intensos, os dentes a morder a pele, ser conduzido às portas do inferno, de me enterrar até ao fundo. E uma vez percorrido esse caminho, escavar a minha própria sepultura, afundar-me no abismo escorregadio onde outrora tantos outros haviam perecido. Não sei se era sábado ou domingo.
quarta-feira, 28 de julho de 2021
segunda-feira, 26 de julho de 2021
Há autores que começam os seus livros de uma maneira que já nem nos apetece ler mais nada
terça-feira, 20 de julho de 2021
Vergílio
Dela quis sempre tudo. Ver todos os seus rostos, todos os seus medos, todas as suas audácias, aquele sentimento novo que se inventa de cada vez que se a volta do avesso como quem vira uma luva e que faz surgir em si territórios desconhecidos, para onde nos deixamos arrastar aterrorizados, voluntários e seguros de que estamos a aproximar-nos de uma luz que nos cega, mas que nos escombros do interior nos fala de amor, de identidade, de terra por desbravar.
Tivesse tido eu tempo de a invadir e certamente encontraria por dentro o que amei por fora até à estupidez.
quarta-feira, 14 de julho de 2021
Tu nem sabes a sorte que tens
quinta-feira, 8 de julho de 2021
Summertime
Fim de tarde, um banco junto ao passeio marítimo, uma silhueta, um vestido florido com as cores do dia, o peito generosamente desnudado, as ancas amplas, a pele branca, o cabelo acobreado sobre os ombros arredondados, sandálias com plataforma de juta, ao pescoço um lenço de seda, ao lado a mala aberta, óculos, tabaco, isqueiro... e por cima um outro lenço, também fino e leve, amarelo torrado. Os cabelos revoltos pelo vento, o olhar atento, absorto, perscrutando o horizonte, o rosto marcado por uma branda e evasiva solidão, mas intenso como no passado, à espera de um sussurro, de um movimento de lábios ou de mãos ou de corpo ou... de ondas no mar ao fundo. Ou, mais ao fundo, Billie Holiday interpretando majestosamente a chegada do Verão.
quarta-feira, 7 de julho de 2021
segunda-feira, 5 de julho de 2021
Apostasia
Toda a minha vida fui um ateu militante, mas perante estes tempos de espírito inquieto não tomarei a mal que rezem pela minh'alma.
Amém.