terça-feira, 30 de agosto de 2022

Liberdade


Estamos aqui três perfeitos desconhecidos a olhar este final de tarde magnifico de fim de Agosto. Cada um de nós formou um conceito próprio de liberdade, feito à medida das suas inclinações ou das suas conveniências. Cada um bebe com lábios diferentes a tisana da liberdade. Para ela, a vagabunda que pinta quadros, a liberdade é um pincel em forma de telemóvel. Para ele, o aventureiro de mochila às costas que colecciona bilhetes postais, a liberdade reduz-se a um passaporte internacional. Para mim, que sou um deslumbrado, mas que, sobretudo, sou um fugitivo, a liberdade é outra coisa.
Para cada homem ou para cada mulher, a liberdade é algo diferente. Caminho, escolha, acaso, sonho. Fugindo das servidões do dia-a-dia, todo o homem procura a liberdade, persegue-a, alcança-a, compreende-a, usufrui dela à sua maneira. 
O drama começa quando há duas pessoas, porque duas pessoas não conseguem pôr-se de acordo para falar disso. A liberdade não é nada, porque a liberdade é tudo. A liberdade é um enigma ao alcance dos olhos.

sábado, 27 de agosto de 2022

Nódoas na consciência


No princípio, a saudade é apenas um som delirante: um som esquecido pelo nosso coração. Ao tocar no corpo e examinar a alma, encontramos apenas as protuberâncias remanescentes da distância. A distância despojou-nos de tudo, menos de uma convicção: ainda posso parecer-me com um homem livre. Depois, com o passar do tempo, a saudade toma a forma de uma brisa cuja caricia nos vai arrebatando. Até que um dia a saudade explode e deslumbra-nos, como se entre as nossas mãos acabasse de cair uma bola de sol. Os nossos olhos, angustiados de cobardia e escuridão, ficam por um instante cegos de saudade. Então, a saudade, ar e luz dos fugitivos começa a palpitar no nosso sangue. A saudade está connosco e por isso fugimos cada vez para mais perto. Não temos pernas para mais.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

11:17



Onze horas e dezassete minutos da manhã. Trinta e quatro graus centígrados. Acordei no inferno. Primeiro tentei escapar ao fogo na cama, depois ao fogo no chão e depois ao fogo no ar. Até correr para a varanda não percebi: o fogo não sou só eu, o fogo não sou só eu. Hoje, mesmo fugindo de mim próprio, não sei se conseguirei escapar a esta fornalha intrincada. 

sábado, 13 de agosto de 2022

Nubentes

O corpo dela é um cálice, um cibório, um nicho de sombras. O seu vestido branco de seda selvagem dobrada com um acordeão em volta das ancas, o medo agarrado em cada prega do tecido, uma viagem de infinitos desvios. Do pescoço, um fio obliquo cai-lhe sobre o peito. Os lábios pintados de carmesim encobrem a boca seca. Debaixo do rímel negro das pestanas, os olhos em fuga.
Carrega todas as sensações correspondentes da infância: o desamparo atormentado, o abandono primitivo, a angustia de se encontrar à completa mercê dos outros.
A sensação de fragilidade é tão forte que se assustou com a aparição à sua direita de um corpo que caminhava a par com ela. Olhou de soslaio o seu perfil e sentiu-se confortada pela sua altura e pelo seu sorriso suave. Também estava vestido de branco, também caminhava para o  cadafalso.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Cinderela

Vejo que não conheces o teu poder. Consomes-te em amor e dádiva e desconheces os milagres que daí resultam. Senti isso a noite passada ao ver-te representar a Cinderela, que eras tu, qualquer que fosse o papel que estavas a representar, que tocaste nesse ponto em que a arte e a vida se fundem e em que apenas se existe. Senti a tua fome e os teus sonhos, os teus desejos ao mesmo tempo que despertavas os meus. Senti que não estavas a representar mas a sonhar; senti que eu - o espectador - podia sair do teatro e, sem transição, passar por artes magicas para outro baile, para outra tempestade, para outro amor, para outro sonho. Diante dos meus olhos eras consumida pelo desejo e pelo sonho da entrega. A chama dos teus olhos, dos teus gestos, eram uma fogueira de fé e dissolução. Tu tens o poder. Representar, em ti, é uma revelação. Aquilo que tantas vezes a alma não consegue exprimir pelo meio do corpo porque o corpo não é suficientemente subtil, tu consegues exprimi-lo. Geralmente o corpo atraiçoa a alma. Tu tens o poder do contágio, de transmitir a emoção por meio dos infinitos cambiantes dos teus movimentos, das variações dos traços da tua boca, das palpitações macias das tuas pestanas. E a tua voz, a tua voz ligada à respiração, a ausência do sopro da sensação, de tal modo que me arrebataste a respiração e me levaste para o reino inspirado do silêncio. Que imenso poder tu tens!

Imagino, lá nessa tua vida de representação, o choque ao perceberes que no final o público continua por transformar. A dor que essa quebra do sonho provocará em ti. 
Deviam levar-te imediatamente para fora do palco, para que não sentisses a mudança de nível do palco para a rua, e da rua para casa, e dali para outra festa, para outro amor, para outra cama, para outra tempestade, para outro par de sapatos dourados.