terça-feira, 24 de outubro de 2023

Aline

Saiu da cama e abriu as cortinas, entreabrindo a janela da sacada. A tempestade de Outono deixou-a gelada, mas embora a pele estivesse arrepiada de frio, gostava de estar nua. Fechou os olhos e sentiu o vento, como uma mão, acaricia-la com vigor, desde a testa, descendo pelas maçãs do rosto e pelo pescoço até à garganta e ao peito. Sentiu os mamilos endurecerem quando a temperatura caiu dentro do quarto e o vento a lambeu entre as pernas.
Depois, abriu os olhos e sentiu muitas saudades de estar em Fortaleza, ao ar livre no meio da natureza, nua sobre a areia quente, sentindo o cheiro salgado do mar a envolve-la. Enquanto caminhava pelo quarto, imaginou-se a andar pelo mar tranquilo. Sentiu o peso da nudez e, ao passar à frente do espelho, viu de relance o rabo. Tinha um belo rabo. Os homens sempre lhe haviam admirado o rabo e ela, era obrigada a reconhecer, tinha muito orgulho nele.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Breaking News

Se por um lado, por mera cegueira ideológica, dá-se total cobertura à decapitação de bebés(!?), violação de crianças e mulheres, raptos de idosos, queimar famílias vivas. 
Do outro defende-se com unhas e dentes, como retaliação, terraplanar e alcatroar a Faixa de Gaza.
Oh iluminados!! 

Hipócrates

Um senhor, um homem vulgar, mais fraco que superdotado, a caminho da meia-idade, acorda cedo, à sua hora do costume. O ruído do despertador irrita-o, senta-se um instante na borda da cama, adverte que não é ninguém, ou quase ninguém; gostava das imagens do sonho interrompido que velozmente se vão apagando da memoria. Quer voltar para a cama. Mas não deve fazê-lo. Lembra-se do dia da semana, da hora. Não é uma estreia. Está há vários anos a representar a mesma personagem, embora, como nas séries de televisão, as cenas vão sofrendo algumas alterações. 
Hoje tem de discutir o relatório que há dias o director lhe entregou. Tentará seguir a corrente. Beija com amor e rotina a sua mulher. Quase mecanicamente, sem entrar na situação, troca umas palavras com as crianças e começa a colocar a máscara: barbeia-se, toma duche esfrega-se energicamente, não veste o roupão - já velho, que lhe ofereceu a esposa e com o qual se sente tão bem - nem as calças de ganga, mas o seu fato completo de empregado de escritório. Os do departamento de design e publicidade podem ir vestidos como lhes der na gana, mas ele não. Toma o pequeno-almoço que considera adequado. Põe os óculos que, de acordo com a moça da óptica, vincam a sua personalidade.
Hoje tem de estar firme para discutir o relatório e, embora com firmeza, alegre para receber o espirituoso director. Se durante esta temporada agir bem, talvez para o próximo ano lhe dêem um papel de executivo. E se tiver algum cuidado com o vestuário, mostrar-se afável e ao mesmo tempo seguro de si próprio, talvez Alice, a nova recepcionista, lhe deixe representar um papel de amante, que são os mais bonitos.
Já pôs a mascara, a pessoa. O duche, as fricções no corpo, as palavras trocadas com os filhos, o café desembaraçaram-no e estimularam-no. Uma vez convertido num perfeito hipócrita, lança-se à rua, ao palco. E a palavra hipócrita não contém aqui nada de pejorativo, uma vez que hipócritas chamavam os gregos aos actores. 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Despertador

Podia ter sido do género ópera, cançoneta ou peça de jazz, Händel, Piaf ou Mingus. Mas não foi. Foi Fausto. "Como um sonho acordado".
Foi música que me entrou pela cabeça dentro, igual a uma recordação, como um veneno que se instala até suplantar o desassossego e profanar-me o espírito. 
Abram-se as portas do inferno.