quarta-feira, 25 de novembro de 2020

1960-2020

 Talvez a genialidade tenha morrido hoje.

Com excepção de MARADONA, nunca tive um ídolo na minha vida.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Querido diário

Não, não vou contar tudo. Seria repugnante. Digamos apenas que era alegre e viva. Mas o seu último espasmo irritava-me. O orgasmo de uma boneca é monstruoso. Porém, era demasiado tarde para parar. Mas não, não sou obrigado a anotar aqui todas as loucuras, todos os caprichos que assaltaram o meu espírito sedento de liberdade, de pecado e... de tranquilidade.
A grande vantagem do mal reside em que a qualquer momento se pode transformar em bem. O contrário também é capaz de ser verdade.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Elegia da derrota

Naquela noite, a luta durou mais tempo do que o habitual. Ambos estávamos exasperados com a resistência do outro. Os nossos músculos, endurecidos mas flexíveis, davam-nos uma fantástica sensação de amplitude, mais imaginária do que real. Os nossos braços procuravam e encontravam pontos de apoio inesperados. De acordo com as nossas posições, os olhares pousavam ao acaso, no tapete, num canto da cama ou da parede, no espelho. 
Lembro-me de pensamentos dispersos, de esperanças pueris, de sentimentos vexatórios. Imaginei o sangue dela a fervilhar nas veias como o meu. De súbito, sentir que me rendia, que queria ser vencido, embora fosse o mais forte. Um segundo mais tarde, ela, obedecendo a um impulso irreflectido, impôs-me a derrota. O efeito foi de uma estranha grandiosidade. A minha derrota durou uma eternidade. Não senti deslumbramento. O combate prosseguiu, selvagem. Estávamos inconscientes, fatigados, encarniçados. O instinto mergulhava-nos numa bruma de torpor. Ignoro quando reassumi o controlo, sei apenas que o fiz ao mesmo tempo que ela. E a minha consciência não me revelou qualquer crime cometido, nem contra mim nem contra ela.

sábado, 14 de novembro de 2020

Rompi o recolher obrigatório

.... e fui por aí bater às portas. E as portas abriram-se de par em par e ofereceram do seu pão acabado de fazer, do seu vinho, das suas rutilâncias, do seu eco, das suas locuções entusiastas, das suas flores, das suas angústias, do seu chá, dos seus olhares, dos seus sufixos indignados, das suas dores, do seu café, das suas fotografias, das suas imprecisões, dos seus livros, dos seus amores, das suas paranóias, dos seus medos, da sua poesia, das suas estações meteorológicas, do seu sentido de humor, dos seus animais, das suas rupturas, do seu mundo, do seu mar, do seu sol, da sua musica, do seu cinema, das suas personagens, da sua pele e da sua segunda pele, das suas irritações, das suas vidas e da pátina que o tempo nelas foi deixando..?

http://noismoraaki.blogspot.com/
(entre outros que não estavam nas suas casas, mas deixaram as portas abertas...)

Sabeis de portas novas onde este sedicioso possa ir bater?

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Breve interrupção, só para tentar perceber o mundo e os seus habitantes

Devido ao agravamento significativo da pandemia, o governo declara um estado de emergência nacional e decreta um recolher obrigatório ao fim-de-semana das 13 horas às 6 horas da manhã seguinte. Portanto, um recolher obrigatório implica as pessoas manterem-se em casa. No entanto, os supermercados anunciam um alargamento dos seus horários de funcionamento a montante, a jusante e dentro do recolher obrigatório. Que raio de perspectiva de negócio esta! Para quem? Se as pessoas não devem sair de casa. Ou podem? Ou a analise do perfil cívico e de cidadania que os grandes senhores dos supermercados fazem dos portugueses dá-lhes a garantia, impune, de mais um dia de gaveta cheia? Ide, ide.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Oh! O deslumbramento depois da angústia!

Quantas e quantas vezes lhe dei forma nas minhas viagens e pensamentos. Ele vive na minha alma. Criei-o ao enredar os factos, as paisagens e os desconhecidos que me rodeiam e não pela força das minhas mãos. Foram muitas as manhãs e inúmeros os crepúsculos em que contemplei uma outra argila transformada nesse mesmo esplendor.
Onde começará, onde acabará o deslumbramento? Não sei. 
Por agora tenho de voltar à narrativa real. Mas o caderno espera-me constantemente sobre uma mesa num alpendre voltado para um mundo empedernido. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Isabel e as águas de Novembro

É bonita e calada. Não tem qualquer talento ou angustia. O seu saber viver ajuda-a. Não faz perguntas e só fala com conhecimento de causa. Chegada a casa os seus gestos tornam-se mais soltos, esforça-se por lhes conferir maturidade. O chá é o seu principal prazer. Toma-o sozinha, confortavelmente instalada no sofá, descalça, com o televisor ligado no Big Brother e na CMTV apalpa as entranhas do mundo. Depois de beber o chã, deita-se, brinca com o gato, lê umas páginas de um romance de Raul Minh'alma. Amanhã, se não chover, Isabel quer aprender a voar. E actualizar o Linkdin.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Díptico

Importa tomar o rumo de outras tentações. As tentações e os pecados não determinam apenas os caminhos da carne e é essa a felicidade de um homem. Quando peca, liberta-se: da estupidez, dos demónios. Torna-se simples e puro. A luz não provém da luz, provém das trevas.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Sem foto de pouco vale, mas...

Se eu escrevesse para os outros, deleitar-me-ia a descrever tudo o que não sinto necessidade de descrever para mim. Recorreria a uma enorme paleta de cores cruas e insólitas. Escreveria com uma bonita caligrafia sobre o céu azul desta tarde de Novembro. E uma sensação de azul liquido incitaria a minha mão. As palavras alinhar-se-iam, crispadas, incapazes de circunscreverem esta sensação de azul que me dilata o coração. E com a mesma caneta, a caneta da ilusão, descreveria o vento, o horizonte, as ondas à minha frente, as montanhas arrasadas atrás de mim... e o sol lá em cima.  
Mas como não escrevo para os outros e vim até aqui chamado por mim, não fotografei o azul. Um evadido não olha para as ondas nem para o céu. 

domingo, 1 de novembro de 2020

Fiéis defuntos

O medo é como a morte. A morte é pertença de cada um, indivisível, ninguém tem nada a ver com as nossas mortes, ninguém tem nada a ver com as mortes dos outros. Portanto, a morte é um território privado, como o medo. A nossa morte só a nós diz respeito, não a podemos compartir, não há duas mortes para cada um, não a podemos dividir nem rejeitar, como o medo; por isso tememos o medo e tememos a morte porque estamos sozinhos com o nosso medo e com a nossa morte. E o que nos horroriza na morte é termos de ficar outra vez sós. Mas aprender a gostar do medo não significa que aprendamos a gostar da morte.