terça-feira, 31 de março de 2020

Adenda à homilia do Papa Francisco desta tarde

O tempo é de pandemia. Brevemente estaremos em plena crise económica e social. Como sempre, estamos todos no mesmo barco. 
Uns de colete salva-vidas outros não.

domingo, 29 de março de 2020

Itália

Itália - digo eu. Mas não o digo, dez dias depois, como se convocasse uma provisão de sentidos ou fizesse emergir uma submersa reserva de memórias e frustrações. Digo: Itália em voz suave, como se ao eco da palavra em si apenas solicitasse a recíproca tolerância. 
Estou ocioso e só: unos sentimentos de segurança e de agasalho aquecem-me a alma. Sou agora um homem de céu sereno e vida mansa. Já não procuro distinguir o justo do injusto: acato as coisas sem reservas, tal como são; admito-as resignado e calmo; calo a ira e a frustração com disciplina. Sentado na varanda do alpendre virado para para o mundo, com Fiodor dormitando a meus pés, tomo um copo de Serra Mãe reserva 2015 e contemplo o virar dos dias no morrer das tardes, e sei que ninguém vê duas vezes o mesmo rio. Agora há uma parte de mim mesmo que anda mais devagar e por isso prefiro ficar só: não quero atrasar os outros, que já pouco andam.
Ciao. Avanti, amici. Torno subito.

(aquilo de um post por dia até ao fim do Corona ainda está a rolar?)

sexta-feira, 27 de março de 2020

Palomar

Há gente que sabe escrever, desenhar, aplicar tinta e que consegue fazer dela o que quer. Tem olhos para captar e pintar as coisas simples e belas da vida: a luz matinal, a superfície de um espelho, o som de uma música erudita, a casca de uma maçã, a pele arrepiada, os olhos cintilantes, os ombros brancos e esculturais, peitos proeminentes. O Senhor Impontual, observador inveterado, espírito em ebulição permanente, gostava muito de ser dotado dessas habilidades. O Senhor Impontual gostava muito de pincelar, já, um retrato do Mundo daqui por três meses. Pintar Junho. Nem que fosse em tons pastel.

terça-feira, 24 de março de 2020

Desterro

Não há nada que falte no paraíso: comida, roupa limpa, jornais, colchões , guarda-chuvas, computadores, ecrãs de parede, ecrãs de bolso, sapatos, gravatas, vinhos, bijutarias, flores, óculos de sol, discos, candeeiros, velas, cães, pássaros canoros e peixes coloridos. 
E tintas, rolos, lixas e outros polidores, moveis desirmanados, antigos, antigos - verdadeiras telas em branco. E livros. E a Lady Day na grafonola interpretando majestosamente "solitude". E todas as outras figuras e línguas e alturas e pesos que povoam a manhã inverosímil em que o ( sobre)vivente celebra o terceiro dia de cárcere - essa vida nova, esse mundo novo. Esse tempo morto.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Passe-Partout

Há alturas em que a ausência é tão pesada como uma criança sentada sobre o meu peito. Noutras alturas, mal consigo recordar os traços exactos da fisionomia de quem me falta e tenho de ir buscar fotos que guardo em envelopes velhos dentro dos gavetões das cómodas. Os piores dias são aqueles em que, sem os procurar, os encontro nos sítios mais improváveis.
O tempo não cura nada, só fabrica cicatrizes... com uma habilidade sublime.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Marinheiros de água doce


Águas sombrias, rotas que se bifurcam, imagens contraditórias, o porvir, o tempo parado como se aguardássemos algo alheio que tudo mude, o vento soprando com mais força por cima da cabeça e a vela recolhida no mastro, confiados na corrente. Esperar, esperar, esperar com a esperança de que não venha uma enxurrada que nos abalroe ou que, se chegar, nos permita avançar pelas margens, protegidos dos remoinhos e dos perigosos rápidos, sem que os troncos e os destroços que arrasta nos levem na frente. Esperar, esperar, como se não existisse outra palavra, como se não houvesse outro tempo, como se não houvesse horizonte. Como mestres da impotência.

#giorno1

quinta-feira, 12 de março de 2020

Diário de Treviso, uma passeata de braço dado com Alda Merini


Os viventes também laboram de dia, quando o tempo urge sobre eles, quando falta o rumor da multidão e acontece o linchamento das horas. Os viventes, e os seus silêncios, fazem bem mais rumor que um dourado ajuntamento de estrelas.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Diário de Treviso, onde Cagnano se encontra com Sile



Lá fora, um ar frio e húmido que flutua em tons acinzentados. Do lado de dentro da noite, pendurados no cabide, os despojos da pandemia que se mesclam com os diferentes cheiros do dia: as grosserias dos convivas de trabalho, as suas diligências e a incompreensível tagarelice, os transportes, os transeuntes, a cidade, o mundo, a televisão e os seus resíduos - tudo colado à roupa como uma película aderente. Na verdade também lá estão impregnados os temores e os medos do que se não fala, mas que se podem perfeitamente agarrar com as mãos.
Isto está feio.

domingo, 8 de março de 2020

Mulheres

É tão bonito quando o seu ar se torna subitamente interrogador e inquieto. Aparece apenas por alguns segundos, essa inquietação febril. É quase incrível, a instantaneidade dessa mudança. As mulheres sentem as ameaças muito melhor que os homens. Elas vêem-nas perfilar-se. Por vezes, quando são suficientemente malignas, fazem-nas abortar. Mas estão sempre prontas a libertarem-se da crisálida, sacudir os ombros para a fustigar e depois reduzi-la a fanicos. É tão bonito! São tão bonitas!

terça-feira, 3 de março de 2020

Na noite em que dormi com Alda Merini

Entrou na calada da noite, nesse espaço de tempo que antecede o sono e em que o mais severo dos cansaços nos toma e, vencidos, a memória omnipresente fustiga-nos a consciência fazendo-nos procurar cálidas miragens de quem poderia estar ali a dormir ao nosso lado. Como se esse alguém batesse à porta para recuperar o lugar de onde tinha sido expulso e implorasse: ama-me agora que não tenho palavras para te fazer enamorar do meu silêncio.
O amor há-de ser isso. Quando o silêncio do outro ameaça no escuro.