Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma terça-feira. Estamos em Dezembro. Sorri, o olhar é agudo, gelado, isso mesmo um olhar gelado, como se, lá dentro, no interior do olhar, houvesse um registo de uma memória coberta de névoa que um vento glaciar faz emergir: um espelho com a devolução de precárias e lacónicas imagens. Nunca um silêncio, porque aquela tropelia de lembranças arrasta-se com gritos lancinantes, suplicas veementes, resignações, uma teia laboriosamente tecida, um meandro, um labirinto.
Pela primeira vez reparo que a sua beleza é assimétrica, que cada metade do seu rosto terá de ter uma atenção separada. O seu perfil visto de lados opostos é diferente, como as deusas tradicionais de duas faces.
Abro subitamente o caderno de esboços, numa folha em branco, tentando não olhar para os desenhos anteriores, e com o lápis de carvão desenho as suas formas. Os contornos são conhecidos e esperados. Posso ser honesto com ela, dentro daqueles contornos encontro novos sinais que o seu espírito mandou imprimir na pele - rugas, vincos e laivos de amargura. Registo todos eles. E, curioso, a sensação que me invade, à medida que a minha mão segue o seu instinto, é de indulgência. Indulgência plenária.
Preciso preparar uma mistura equilibrada entre o vermelho e o azul. Púrpura. Não sei se um magenta ou um anil. Se mais vermelho, se mais azul.