"Viagem a Tóquio" - Yasujiro Ozu, 1953
(na magnífica companhia da Tétisq)
terça-feira, 28 de agosto de 2018
Grand Hotel (epílogo)
Quanto àquela noite, bem leitor lascivo, a minha mãe pode estar a ler isto e ficará corada, portanto, tenho de abrir um biombo por cima desta página. Imaginem o que quiserem, por detrás dele: um ar nevoeirento a cobrir um corpo com gotas de suor, a recordação de um perfume com notas de sândalo, a prece de um homem atendida, um sussurro de um nome amado, belíssimo, uma exaltação de andorinhas, e por aí fora.
O resto já
domingo, 26 de agosto de 2018
Grand Hotel III
Reparei nos casais que desciam a escadaria preparados para o jantar, os homens talhados de negro, as mulheres cobertas de folhos. Ocorreu-me que aquela era a cena em que, nos romances góticos, o corcunda rapta a sua donzela. Ali, com o candelabro, o brilho da lampada do pilar das escadas em caracol, os diamantes e a carne nua. Aquela era a hora do monstro. Depois de a ter seguido, de a ter enganado, estava agora pronto a raptá-la - sem nada para oferecer-lhe em troca, para além da sua vida envenenada, dos seus carnudos e sedentos lábios.
Não demorou mais de um segundo. Trazia um vestido branco, comprido, salpicado de bordados e renda, as mangas, meros véus que cobriam os seus braços, uma espécie de cinto prateado que descia abaixo da cintura, e uma longa cauda, caída atrás dela pelas escadas abaixo numa espiral cintilante; um vestido que se ajustava a ela como um delicado gérmen agarrado à sua pálida semente. Não usava nada em volta do pescoço, absolutamente nada, apenas a sua pele clara, ondulando como uma pequena vaga, quando engolia e olhava para baixo com a grandiosidade de uma mulher sem preocupações de juventude, sem confusões nem piscar de olhos, uma mulher de paixões, ali, naquela escadaria, com uma mão pousada no corrimão. Havia estrelas no seu cabelo...
quarta-feira, 22 de agosto de 2018
Grand Hotel II
...se fosse eu, talvez sentado naquela cadeira branca de vime, iria pegar-lhe na mão, ouvi-la suspirar, e ficar a saber que ela me queria muito. Ou no quarto dela, quando estivesse sentada à janela a admirar os relvados e os pinheirais que se estendiam até à orla do oceano, quando ela abrisse a janela da varanda de par em par para deixar entrar no quarto o ar salgado e começasse a inspirá-lo às lufadas. Era ali que ia acontecer. Num daqueles quartos, eu iria tomar o rosto dela nas minhas mãos e beijá-la em ambas as faces, depois iria sussurrar-lhe ao ouvido enquanto desapertava os botões do seu casaco, da blusa, os atilhos do corpete e de todas as desnecessárias e ridículas peças de vestuário que usavam as mulheres daquela época. Soltaria todas as esperanças que havia conservado num frasco e guardado na prateleira mais alta da minha vida. Mas aquela tarefa requeria um espírito delicado que a minha vida raramente tinha exigido. Como diria a minha avó: pode levar-se uma rosa a fazer quase tudo, até a crescer dentro de uma jarra de vidro, mas temos de o fazer com carinho, e era assim que eu teria de proceder. Ouvi-la sorrir e cortejá-la, tratá-la não como uma deusa, mas como uma mulher inteligente, demasiado esperta para se deixar levar pela lisonja. Tinha de ser cuidadoso. Teria de ir introduzindo muito lentamente os espinhos da minha vida nas espirais do seu coração. Uma mulher complexa tem de ser amada de uma forma mais elaborada.
Mas... não estou certo se seria exactamente assim. Vou mas é polir o toucadorconsola que hoje está um pouco mais fresco.
Mas... não estou certo se seria exactamente assim. Vou mas é polir o toucador
Torga
A vida podia ser só isto o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre este areal coberto de um sol intenso, um manto ondulado de água azul resplandecente, de onde esvoaça uma gaivota solitária, e mais dois seres silenciosos, escancarados, pasmados, a olhar e a ouvir o arrulhar das ondas. Mas não é. Temos pena. Eu e o Cão de pêlo pardo.
terça-feira, 14 de agosto de 2018
Grand Hotel
Ainda agora, enquanto me entretinha vagarosamente no restauro de um toucador muito antigo - que há-de vir a ser uma consola -, olhava uma fotografia e a sua história também ela muito antiga e fico com a firme impressão de que o Grand Hotel mantém exactamente o mesmo aspecto de há quase um século atrás; a longa avenida de ciprestes que corta o sol em tiras, o próprio edifício do hotel semelhante a um enorme navio, cravejado de portadas verdes e varandas, os mastros com bandeiras esvoaçantes, o terraço com cadeiras de vime, onde certamente à noite uma orquestra, com fatos de corte militar em azul e branco tocava valsas, a sucessão alternada de guarda-sois que resguarda as mesas, as pessoas, pavões e estátuas oxidadas. Estou certo que noutros tempos os cronistas sociais escrevinhavam artigos, enquanto apreciavam as chegadas das celebridades, e que donas de bordel passavam por baronesas e empregadinhas do comércio, por debutantes.
Na piscina, certamente, existia uma rede que separava os homens das senhoras, uma espécie de véu, e era aí que raparigas e rapazes solteiros se conheciam. Ou nas varandas, muito tranquilamente, enquanto bebiam limonadas e observavam as tias velhas solteironas a chilrearem enquanto jogavam croquet. Imagino a calma estudada destas personagens de outrora. Que sitio mais engraçado para duas pessoas se apaixonarem!
segunda-feira, 13 de agosto de 2018
Conflagração
Eis senão que o meu olhar pousou na paisagem de fundo, um infinito horizonte sem problemas latentes, sem nenhum dos acidentes causados pela humanidade. Não isento de fogo, é certo. Mas sem terror, sem tragédias, sem inépcias, sem culpas. Sem desculpas...
quarta-feira, 8 de agosto de 2018
Refrigério
Aquela poderia ter sido a hora mágica das nossas vidas - a única altura em que poderíamos ter sido exactamente aquilo que gostaríamos de ser - e os deuses tinham-nos trazido, naquele momento dourado, o prémio mais desejado: descobrimos uma pequena loja de chã, onde entrámos, um lugar com paredes forradas a papel de veludo azul índigo com relevo e com cortinas corridas até meio, de modo que os vultos das pessoas que passavam na rua formavam uma espécie de jogo de sombras balinês no tecido amarelo dos maples onde estávamos sentados, silenciosos, cara a cara, olhos nos olhos, espectro no espectro...
quinta-feira, 2 de agosto de 2018
E tu Impontual, o que vês da tua janela?
Caiu a canícula sobre a cidade, os citadinos caminham mais rígidos que de costume, ombros direitos, passo rectilíneo, carregam o peso de uma fatalidade impensável. As guitarras eléctricas calaram-se, está-se agora em Mozart e na sua perfeição tensa que atapeta as ruas. Instalou-se uma névoa que emite vagas calorificas muito acima do suportável. As horas invadiram a atmosfera para aí se desfiarem mais lentamente, pousando as suas voltas sobre as pedras ardentes dos edifícios. Gotas de suor, gargantas secas, a canícula estendeu os seus tentáculos sobre a cidade e impôs a sua disciplina. Gestos comedidos. Respirações contidas. Vive-se em poupança. Crânios abrasados, entre-pernas suados, desejos amolecidos, os corpos reagem e crepitam brandos. Enquanto os pensamentos se revestem de gelo e de cristais glaciares, cada qual segue como um ladrão de sombras, rasando paredes sem sol.
Mas, ainda há quem trabalhe em Agosto.
Mas, ainda há quem trabalhe em Agosto.
quarta-feira, 1 de agosto de 2018
Prólogo
São cada vez menos os olhos que vêem o que ainda está escondido. Olhos infelizes, haveis visto de menos! A verdade é que as linhas começam a ter um traçado pouco definido, os extremos tornam-se flexíveis; as cores esbatem-se e como que flutuam, estão a ficar esbranquiçadas à luz e a perder a sua vitalidade. A sua camada fina distende-se. A Natureza fala, chora, pede socorro. O Homem é frágil e débil, à semelhança da civilização que erigiu em seu redor. Calado ainda avança decisões na noite escura das perguntas sem resposta. Estas parecem ser as características do retrato do mundo futuro. Está em marcha o processo de óxido-redução e da transformação dos haletos. Para já fica assim. Ainda se respira. Quem vier a seguir que ponha a máscara. Ou que feche a porta. Dou graças por não estar presente para ver essa fotografia.
Hoje arranca a volta a Portugal em bicicleta. Esta tarde temos um curto prólogo, seguem-se doze longas etapas. Abri os olhos.
Hoje arranca a volta a Portugal em bicicleta. Esta tarde temos um curto prólogo, seguem-se doze longas etapas. Abri os olhos.
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