Em frente ao espelho ajustou o corpete, distendeu milimetricamente as meias pretas de cornucópias, calçou os scarpins igualmente pretos, sobiu a saia para três centímetros acima do nível do joelho, vestiu o capote de burel e deu um último retoque meticuloso no véu que lhe emoldurava o olhar. Logo logo atravessou a praça em passo de sessenta centímetros para ir assistir à missa do galo. Ao entrar na igreja procurou Gabriel Arcanjo com o olhar. Nele reservava a esperança de pôr fim aos dias sombrios, aplacar o espírito impetuoso que a consome. Do céu, profeta de todas as desgraças, caiu o foguetório.
domingo, 26 de dezembro de 2021
quarta-feira, 22 de dezembro de 2021
Calendário do Advento
Tenho tudo para escrever este tempo anacrónico. As letras perfeitamente alinhadas, os dedos inclinados sobre as teclas, o silêncio nocturno das ruas, o silêncio da minha voz, a nostalgia humedecendo-me a boca, um calafrio na pele, a música invadindo-me o mais recôndito e profundo patamar do âmago. Mas, não. Não me quero implicado em contrariar minimamente esta efémera felicidade que o mundo teima, e bem, em querer viver por estes dias. Nem sequer do mundo que está aqui mesmo ao meu lado. A página continua em branco como que a iludir este tempo circular. Não há palavras para desenha-lo. Não há pernas para pisar o terreiro do romantismo desacreditado. Apenas umas palpitações electrizantes no corpo todo. Um ou outro soluço intermitente. Uma esperança imposta. Uma teimosia pacifica nos subterrâneos da alegria: dar e receber uns abraços, esse talento miraculoso. Erguer uns copos. Comer uma ou duas rabanadas das tias velhas.
terça-feira, 21 de dezembro de 2021
quinta-feira, 16 de dezembro de 2021
Insónia
Bocarra aberta que aspira o vivente para depois expelir miséria. Sorvedouro. Tudo ali se transforma: o ar, o ruído, o grito. Tudo se apresenta, tudo se exalta. Indiferente, sem pudor, caminha sobre a sombra dos transeuntes como se tudo se espezinhasse. Lugar sem meio, migrante, flutuante ao sabor dos terminais do pensamento, ao sabor das horas e picos de reflexão, campo aberto onde se extasiam fragmentos. Queixume ininterrupto. Às vezes noite-encontro, os amantes nas suas caçadas esgueiram-se pelos becos sem saída, caricias dóceis, o esperma jorra, o prazer é tão curto. O dia nasce frio, embora azul.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
terça-feira, 14 de dezembro de 2021
Amélia
A maioria das pessoas diz "não" quase imediatamente, por puro instinto de sobrevivência. Amélia diz sempre "sim", "claro", "com certeza". Compromete-se para o resto da vida no calor do momento, sabendo que, no fundo, presumindo, o mesmo instinto de sobrevivência que leva os outros a dizer "não" começará a funcionar no momento crucial. Apesar dos seus instintos calorosos e generosos, da sua bondade e ternura instintivas, Amélia é a mulher mais esquiva que já alguma vez conheci.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2021
Siena
Há momentos nos quais aquilo que se cala tem tanta importância como o que se diz. É como uma viagem nocturna, ora reflexiva, ora extravagante e desolada, em busca da linha de sombra onde os anseios habitam, mas também, pelas mesmas razões, um périplo à procura do esquecimento, uma recordação minuciosa e esperançada em que as certezas perdem paulatinamente a sua razão de ser e são substituídas, como se tratasse de um sonho, pelo vazio do tempo.
O tempo passa, as recordações esbatem-se e o que não se extingue para sempre perde intensidade e com a inevitável distância parece menos do que foi. Não há respostas. Não há que lamentar. Nenhuma palavra modifica o passado e nenhuma é exacta se se pronuncia quando o que se nomeia é passado e não o presente. No presente as palavras não existem. As palavras surgem mais adiante. É ter calma.
sexta-feira, 26 de novembro de 2021
Lugar, lugares
«Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.(...)»
_Herberto Helder
terça-feira, 23 de novembro de 2021
CNN
Na sociedade em que nos coube viver, a aluvião de noticias, a cultura imposta, o ensino, as múltiplas opiniões produzidas por gigantescas fábricas de noticias e difundidas em regime de franchising, ao mesmo tempo que aumentam as possíveis explicações do mundo dificultam a tarefa de as interpretarmos por nós próprios, de acordo com a própria natureza, e com serenidade.
O processo de consolidação de uma sociedade de analfabetos funcionais está a avançar em passos muito largos.
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
Sermão aos peixes
segunda-feira, 15 de novembro de 2021
O fabuloso destino de Amélia
Amélia cruza-se comigo varias vezes ao dia. Não posso deixar de reparar naqueles dois globos terrestres que, a cada passada de Amélia, parecem pautar o ritmo do Universo. Esforço-me por adivinhar qual será a diferença entre o rabo tapado de Amélia, que conheço até agora, e o descoberto, ao qual acrescenta beleza - ou talvez a extrapole - a minha inflamada imaginação.
Aquelas esplêndidas nádegas apresentam-se-me generosas e dóceis, entregam-se à minha contemplação, conscientes de que o facto de olhá-las e desejá-las pode embelezá-las ainda mais. Essas delícias, prometedoras, rutilantes e sumptuosas, se são prazenteiras e excitantes à vista manifestam que o serão muito mais ao tacto.
Bem sei que nem Rimsky-Korsakov ao compor o incitante Scheherezade nem Ravel ao compor o orgásmico Bolero, tocaram e acariciaram carne humana. As polpas dos seus dedos apenas batiam nas teclas do piano, o que já é deleitoso para um amante de musica, mas o que é certo é que Scheherazade e as demais mulheres do harém, e o amoroso e frenético par do Bolero, permaneceram intangíveis.
Não fosse a minha incipiente vocação artística e já seria um deleite desenhar, escrever ou musicar a gloriosa protuberância que se esconde para lá das saias de Amélia.
terça-feira, 9 de novembro de 2021
Renoir
Pareceu-me ser uma jovem atraente que combinara encontrar-se com o amante e chegara cedo. Mal tocara no aperitivo que pedira. Olhava atenta e firmemente para quem passava diante da sua mesa. Olhava em seu redor calmamente, avaliando o que via, mas sem o esforço óbvio de chamar a atenção. Era discreta e contida. Estava à espera. Eu também estava à espera. Cumprimentou-me com cordialidade como se tratasse de um amigo, mas raparei que ficou agitada. A sua voz era mais arrebatadora do que o seu sorriso: tinha bom timbre, era ligeiramente grave e um pouco rouca. Era a voz de uma mulher que se sente feliz por estar viva, que se entrega aos desejos, que é descuidada e modesta e que fará tudo para preservar o fragmento de liberdade que possui. Era a voz de uma mulher que dá, que consome: apelava mais ao diagrama que ao coração. O seu corpo era pesado, terreno. Parecia um Renoir. Mas os sons que lhe saiam da garganta eram como notas cristalinas de um violino.
quinta-feira, 4 de novembro de 2021
Gambito de Rei
segunda-feira, 1 de novembro de 2021
Fiéis defuntos
quarta-feira, 27 de outubro de 2021
terça-feira, 26 de outubro de 2021
Pitagorismo
sexta-feira, 22 de outubro de 2021
Quem quer casar com o agricultor
terça-feira, 19 de outubro de 2021
Pina
segunda-feira, 18 de outubro de 2021
Povoléu
É lamentável que hoje o Povoléu ainda misture dois sentimentos tão diversos: o ressentimento, a insatisfação e a névoa que toda a infância convoca. É lamentável, como o é que o erro se tenha perpetuado. O que se passou a seguir, ou seja hoje, não podia ter corrido bem porque estava construído sobre alicerces muito frágeis. Volvidos cinquenta anos, democraticamente, agora mais do que nunca, o Povoléu reduz-se a uma espécie de massa acrítica, destinada unicamente a regular a cotação do petróleo, fazer a vénia e desembolsar todos os prejuízos colaterais.
A unanimidade da derrota previamente anunciada confirma-se a cada dia que passa.
quarta-feira, 13 de outubro de 2021
Outubro
quinta-feira, 7 de outubro de 2021
Squid Game
quarta-feira, 6 de outubro de 2021
Olá, bom dia
Como estão? Cansadinhos do fim-de-semana prolongado, não é? Foi muito caso Rendeiro, muito Pandora Papers, muita pedofilia de sotaina, muito Globos de ouro, pouco Benfica, pouquíssima rede. Pois eu, apesar de tal como tantas outras pessoas que vivem este extraordinário momento da história da humanidade, não tenho, de forma alguma, a certeza do que está correcto e do que está errado. Por isso, se aqui e acolá vos parecer um pouco lento a compreender as dimensões politicas, tecnológicas, morais e sociais do que se está a passar, receio ter de vos pedir que tenham paciência comigo. Peço desculpa. É uma idade cada vez mais difícil.
sábado, 2 de outubro de 2021
Noite da libertação
Depois de lutarmos toda a noite, as sombras, escravas dos nossos corpos, fingem-se hostis. A manhã chegou depressa. O vento sopra em rajadas, a chuva bate nos pavimentos que o farol ilumina intermitentemente, o mar está agitado, parece reclamar cadáveres. Conservamo-nos no calor artificial da casa, na luz amarela, entre paredes que nos protegem, na intimidade reencontrada, reconquistada. Olho-me no reflexo da vidraça da janela. Tenho a fadiga estampada no rosto, mas é uma fadiga serena, confiante, uma prostração pacífica. Deixo-me tombar sobre o colchão ainda quente. Observo os sinais dos seus ombros. Sei que já nada mudará de ora em diante.
Partiremos no primeiro ferry.
segunda-feira, 27 de setembro de 2021
Sermão aos peixes
Vou tentar fazer chegar esta missiva aos vossos olhos e peço que a leiam. Mas não alimento qualquer esperança de que estas palavras penetrem nos vossos corações. Sei que desperdiço a minha tinta e o meu tempo.
quinta-feira, 23 de setembro de 2021
Outono
terça-feira, 21 de setembro de 2021
Sobressalto sistémico
terça-feira, 14 de setembro de 2021
Palomar
sexta-feira, 10 de setembro de 2021
Integridade, decência, solidariedade, dedicação à causa democrática
quarta-feira, 1 de setembro de 2021
Setembro
domingo, 29 de agosto de 2021
quinta-feira, 26 de agosto de 2021
segunda-feira, 23 de agosto de 2021
terça-feira, 10 de agosto de 2021
Tábua de marés
Limitei-me a flutuar com a maré, e nada mais.
terça-feira, 3 de agosto de 2021
No entanto, recordo perfeitamente ...
No instante de afastar as coxas, sentir um êxtase, um momento de terror luminoso, como deve sentir um homem que salta da ponta de uma falésia indo cair sobre as rochas distantes. Ou o criminoso, atirado para a eternidade pelo empurrão do carrasco, voando sobre o silêncio da multidão. Vê-se tudo, compreende-se tudo, uma luz intensa, um ar calmo. Depois o vento quebra as ondas sobre a cabeça, a luz diminui, o odor a terra molhada intensifica-se.
quarta-feira, 28 de julho de 2021
Entrefolhos
Assim que toquei a campainha a porta abriu-se num movimento imediato. Lá dentro era uma sala de mobília tubular em preto e branco, no chão um tapete de lã, espesso, como uma nuvem por onde me deixei deslizar. Não conservo recordações dessa noite, nem das pessoas que ali estavam, nem da musica que foi tocada. A única coisa que subsiste na minha memória é o seu rosto, uma oval perfeita riscada por lábios vermelhos, olhos de corça, planetas de reflexos escuros no interior dos quais parecia decidir-se os destinos do universo, pescoço fino, o movimento do corpo constantemente a escapar às regras mais elementares da gravitação, nádegas aristocráticas, seios tumefactos de vida e de sumptuosos mamilos. Recordo ainda o encontro dos corpos de onde se exsudaram odores intensos, os dentes a morder a pele, ser conduzido às portas do inferno, de me enterrar até ao fundo. E uma vez percorrido esse caminho, escavar a minha própria sepultura, afundar-me no abismo escorregadio onde outrora tantos outros haviam perecido. Não sei se era sábado ou domingo.
segunda-feira, 26 de julho de 2021
Há autores que começam os seus livros de uma maneira que já nem nos apetece ler mais nada
terça-feira, 20 de julho de 2021
Vergílio
Dela quis sempre tudo. Ver todos os seus rostos, todos os seus medos, todas as suas audácias, aquele sentimento novo que se inventa de cada vez que se a volta do avesso como quem vira uma luva e que faz surgir em si territórios desconhecidos, para onde nos deixamos arrastar aterrorizados, voluntários e seguros de que estamos a aproximar-nos de uma luz que nos cega, mas que nos escombros do interior nos fala de amor, de identidade, de terra por desbravar.
Tivesse tido eu tempo de a invadir e certamente encontraria por dentro o que amei por fora até à estupidez.
quarta-feira, 14 de julho de 2021
Tu nem sabes a sorte que tens
quinta-feira, 8 de julho de 2021
Summertime
Fim de tarde, um banco junto ao passeio marítimo, uma silhueta, um vestido florido com as cores do dia, o peito generosamente desnudado, as ancas amplas, a pele branca, o cabelo acobreado sobre os ombros arredondados, sandálias com plataforma de juta, ao pescoço um lenço de seda, ao lado a mala aberta, óculos, tabaco, isqueiro... e por cima um outro lenço, também fino e leve, amarelo torrado. Os cabelos revoltos pelo vento, o olhar atento, absorto, perscrutando o horizonte, o rosto marcado por uma branda e evasiva solidão, mas intenso como no passado, à espera de um sussurro, de um movimento de lábios ou de mãos ou de corpo ou... de ondas no mar ao fundo. Ou, mais ao fundo, Billie Holiday interpretando majestosamente a chegada do Verão.
quarta-feira, 7 de julho de 2021
segunda-feira, 5 de julho de 2021
Apostasia
Toda a minha vida fui um ateu militante, mas perante estes tempos de espírito inquieto não tomarei a mal que rezem pela minh'alma.
Amém.
sábado, 3 de julho de 2021
Afonso Cachucho*
quarta-feira, 30 de junho de 2021
Sara Pinote *
terça-feira, 29 de junho de 2021
terça-feira, 22 de junho de 2021
História universal da submissão
terça-feira, 15 de junho de 2021
Selecção Nacional
O que é um "colectivo" para um EU ainda com tantas necessidades? O que é um "eu" para um COLECTIVO cheio de talento oprimido?
Da resposta às questiúnculas decorrerá a qualidade e a quantidade do ópio que o povo tomará nas próximas semanas.
sexta-feira, 11 de junho de 2021
Penúltima fase do desconfinamento
Primeiro aconteceu um beijo que se prolongou no entrelaçar das línguas. Depois a mão direita subiu pelas costas em busca dos colchetes superiores. Outros beijos se foram perdendo no pescoço à medida que se desapertavam os fechos dourados. O qipao tombou aos seus pés, revelando um busto de belos seios firmes, uma cintura delgada, descrevendo uma curva suave que se alarga nas ancas e se prolonga harmoniosamente pelas pernas. Abraçamo-nos com outra intensidade.
Melhores dias virão.
terça-feira, 1 de junho de 2021
Dia Mundial da Criança
domingo, 30 de maio de 2021
Sem foto de pouco vale, bem sei
Mais ao fundo, desta vez com uma ligeira bruma, a Cecília Bartoli cantando majestosamente... quanno fa notte e 'o sole se ne scenne me vene quase 'na malincunia.
terça-feira, 25 de maio de 2021
Palomar
sábado, 22 de maio de 2021
Fiodor
quinta-feira, 20 de maio de 2021
Geometria descritiva
Com a Primavera, chega o tempo de cuidar dos jardins. O Senhor Impontual, por si, vivia no meio dos relvados: horas a fio executando o corte sempre de acordo com os seus preceitos geométricos. Todos os dias, qual navegador obstinado, ir e voltar naqueles mares de verdura, sulcando, ao sextante, o coração dos jardins. Deixar atrás de si a ilusão de um mundo pacificado, de uma natureza submissa e de uma vida sem surpresas.
quarta-feira, 19 de maio de 2021
Intifada
Quem sou eu, bem pesadas todas as coisas, para me armar em juiz impassível de civilizações tão ricas? Acabaria certamente por ficar afogado em lugares-comuns. E afinal, bem vistas as coisas, todas as civilizações assentam nesta ideia de que de um lado não há mais que uma horda vagamente humana e do outro os iluminados. A colossal e arrogante desumanidade com que é policiada essa fronteira é que é de uma crueldade absoluta. Ninguém escolhe onde nasce. Parem lá com isso. Ou atirem pedras uns aos outros.
segunda-feira, 17 de maio de 2021
Esmeralda
Entre as características de personalidade com que o destino a atormentou, existe infelizmente esta: pronunciar banalidades nas horas cruciais, manter-se de mármore frente às dores dos seus semelhantes sem encontrar uma palavra afectuosa que a aproxime deles, descobrir que tem um coração duro e impassível mau grado o seu desejo de ser uma irmã ou uma confidente.
terça-feira, 11 de maio de 2021
Funes
quinta-feira, 6 de maio de 2021
Professor Mamadu
terça-feira, 4 de maio de 2021
Sem título, sem adornos
sexta-feira, 30 de abril de 2021
Ainda antes que o dia acabe
Ver os seus olhos fecharem-se de sono antes dos meus, a fim de poder, como agora, murmurar-lhe palavras que vão afagar o seu rosto, a sua nuca, tal qual um demónio protector, escutar a sua respiração apaziguada e dizer-lhe que a nossa dança está ainda para começar.
quarta-feira, 28 de abril de 2021
Cicatrização
É a Invicta a secar suas feridas. A morrinha não ajuda muito.
segunda-feira, 26 de abril de 2021
26 de Abril
Passaram os dias, passaram as noites. O sol aquece agora nas vidraças das janelas. Inês aponta na apostila umas notas de vida livre. Não pode introduzir-lhe notas da sua alma passada. Angustia-se, volta a interrogar-se sobre se tem ou não uma alma e os seus limites assustam-na uma vez mais. Inês é livre e isso deveria bastar-lhe. Vitoriosa também, porque ignora e despreza os antigos moldes que aprisionavam a sua vida, o seu pensamento, tudo, tudo. Deveria responder a esta pergunta: sou um novo ser, sou uma outra? estou verdadeiramente liberta? Não, conclui sem tristeza. Limitou-se a forjar uma armadura.
sexta-feira, 23 de abril de 2021
Pintar Abril
Estamos no fim de Abril. Há uns meses largos que não vinha posar. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio.
A tristeza leva tempo a aparecer num rosto, existe um período de incubação em que paira como um vapor dentro de uma pessoa mas sem deixar rasto; e passados uns meses, uns anos, apodera-se dela lentamente, uma ruga no canto da boca, uma sombra à volta dos olhos, um pescoço menos esguio, um olhar quiesciente.
Um lápis imoto. Uma tela em branco com um fundo flavo.
quinta-feira, 22 de abril de 2021
Dia da Terra
O Senhor Impontual continua desconfiado que um dia o Planeta travará de súbito naquele preciso momento e por ali ficará, estático, durante um instante mais alongado, mostrando-nos todos os horrores que lhe fomos infligindo. Já faltou mais.
quarta-feira, 21 de abril de 2021
Falsete
segunda-feira, 19 de abril de 2021
Nelinho
sexta-feira, 16 de abril de 2021
You're stumbling in the dark? **
**subtracted from the darkness, right here.
quinta-feira, 15 de abril de 2021
Estilo D. Maria
terça-feira, 6 de abril de 2021
Caducifólio
Todas as manhãs, enquanto tomo o pequeno almoço, costumo fazer um rascunho daquilo que me reserva a jornada. Depois gosto de acender a televisão passado um bocado, sem ver o que está a dar. Hoje não o fiz. Permaneci na cozinha, à janela com as cortinas finas que agitavam levemente na corrente de ar da rua. Com a ponta do dedo levantei a bainha e olhei pela vidraça. O céu lá fora estava sem uma nuvem. Imaculado. Os pombos arrulhavam na tangerineira. A andorinha de asa negra no beiral. Era Abril. Nas árvores viam-se botões fortes, saudaveis. Tudo luzia. Mas no passeio, lá em baixo, umas folhas sussuravam ao vento. De que tipo de árvores viriam essas folhas outunais caídas agora, na Primavera?
segunda-feira, 29 de março de 2021
Minuete
Os seus passos demorados não têm nada de cansaço ou de confuso, pelo contrário: toda a aparição está desperta, ali, onde desliza pelo passeio. Aquela é a sua forma de se mover e percebe-se claramente que não se envergonha disso. Essa lentidão é mais provocante que um decote ousado ou uma saia justa um palmo acima do joelho. Tudo é tão intimo, como se estivéssemos a vislumbrar a sua alma. A lentidão torna-a mais nua que a própira nudez alguma vez teria conseguido. Por detrás dela pressente-se uma coragem do tipo mais despretencioso e profundo. Inventou uma forma totalmente nova de se mover, um equilibrio nunca antes visto, uma coreografia do principio do mundo. Não caminha sobre o chão, acaricia-o. É como se toda a sua vida fosse um minuete demorado e ela se movesse ao som de uma música que nunca se extingue e que mais ninguém ouve.
sexta-feira, 26 de março de 2021
Palomar
O Senhor Impontual é um fugitivo. Desde sempre que o é. O Senhor Impontual sabe desenhar casas, sabe toldar-lhe as fachadas e o interior. Sabe desenhar jardins. Mas o que o Senhor Impontual gostava, mesmo, era de saber desenhar rostos. Se um dia, no grande incêndio, os livros fossem queimados, o Senhor Impontual está seguro de que os rostos passariam a ser a biblioteca dos homens, as rugas as suas linhas, o olhar as suas histórias. Mas desenhar rostos é muito dificil. Em cada rosto há algo de inatingivel. O lápis desespera e continua à procura. Por vezes sente-se que se roça nele e ficamos com a mão a escaldar. Outras vezes pressente-se que desde que se espere de um modo suficientemente observante, chegará o momento em que se revelará por um único risco milagroso, como quando se espera na noite pelo alvoroço, pelo momento do nascer do sol, quando as névoas se levantam, as sombras se dispersam e o interior da paisagem se revela. Mas não. Com muita pena do Senhor Impontual.
quinta-feira, 18 de março de 2021
Rosinha
Rosinha não é má rapariga. No fundo, é avessa à falsa burguesia e ao puritanismo em que vive. Mas é incapaz de entrar em choque com o seu mundo. O seu derivativo é aquele tipo de rebelião mansa: afinal um sintoma das épocas de impotência. Rosinha está, como qualquer um, à espera de um grande acontecimento que a obrigue a modificar a penúria da sua vida, mas não provoca esse acontecimento, porque estaria a agir contra si própria. Também lê, como qualquer um, também é esperta, como qualquer um, mas tem um emprego em home office e não está disposta a perder esse privilégio. Rosa é uma virtuosa, à sua maneira.
terça-feira, 16 de março de 2021
Ao postigo
sexta-feira, 12 de março de 2021
Chesterfield
Apesar dos dias serem agora mais claros, a rua lá fora mais animada e o chilrear dos pássaros nas árvores ser mais forte, sentava-se no sofá. Aquele sofá que fora a primeira peça de mobilia que compraram juntos. Pensava no amor que costumavam fazer nele. Nesses tempos arrancavam a roupa por desejo. Agora despem-se com movimentos frouxos ao fim do dia, dobrando a roupa cuidadosamente em cima das costas da cadeira do quarto.
quarta-feira, 3 de março de 2021
Memória háptica
O amor é agora mais intenso e demorado. Porque, antes de a penetrar por várias vezes, tinha-a despido lentamente e tinha-me detido com carícias em cada parte do seu corpo, sorrindo-lhe e dizendo-lhe que era bonita, e quisera ser eu a tirar-lhe os ganchos do cabelo e a enterrar as mão naquela nuvem negra de caracois e desabotoar-lhe o vestido, deixa-lo cair, e ficar a olhar para ela, nua, deitada na cama, admirando-lhe os seios grandes e rijos, a pele branca e macia, as longas pernas, enquanto a acariciava e a beijava em sitios onde nunca tinha sido beijada.
Isto depois de uma garrafa de Cartuxa, claro.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021
Parlenda
A televisão. O país. O Mundo. A dissecação de uma pandemia. A queda da civilização livre. A falsa justificação da responsabilidade. A confrontação entre um certo tipo de destruição e de ascese. Palavras, palavras e mais palavras.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
Cratera Jazero
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Entrudo
domingo, 14 de fevereiro de 2021
Valentinos
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021
Palomar
O Senhor Impontual, um homem vencido pela contemplação e que nunca gostou de páthos, que sabe que todas as honras e as palavras elogiosas com que nos cobrem não passam de palha e que o que permanece é a voz destituida de ambiguidade, esperteza ou ironia, a voz herdada dos tempos vividos. Essa é a voz autêntica. Os disfarces e os artifícios não passam, afinal, de uma roupagem provavelmente necessária para cativar o ouvido, mas não são o essencial. O essencial grava-se no corpo e não na memória. As células do corpo lembram-se melhor do que a memória que foi feita para recordar. O Senhor Impontual gosta da contemplação porque esta não o sujeita a qualquer geografia estática. Mais ainda: permite-lhe alargar os seus limites ou elevar o objecto às alturas. Sem que para tal tenha de dizer uma única palavra.
O Senhor Impontual esta manhã rompeu o confinamento e foi olhar o mar de perto. Era um mar plúmbeo, agitado, coberto de nuvens grávidas. Tão bonito, tão azul...
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
Escala cinza
Hoje abriu uma nesga de sol. Enquanto faço uns rabiscos em escala maior e nos ouvidos tenho os The Cure com Lullaby, reparo que o casal de pombos voltou à tangerineira. Já tinha dado conta da chegada do pombo macho. Esteve por ali durante uns dias, só, calado, mudo, cinzento. Hoje, pela aurora, chegou o outro - a femea. Penugem luzidia. Igualmente cinzento. Cabeça bem levantada: eu sou a saudade toda-poderosa, deves tremer diante de mim, dar-me tudo porque sou insaciável, um ogre, um vampiro, uma assassina em serie de felicidades confessadas e anunciadas em voz baixa.