2019, desaparecer em silencio seria a maior das crueldades. Partir e deixar-te o peso de todas as dúvidas. Não que seja necessário explicar as razões porque se desaparece, mas sempre é necessário explicar porque não se fica. Há nessa partida súbita e calada um castigo insuportável, uma negação absoluta de tudo o que ficou para trás. E isso não pode ser. A ausência sem explicações é um peso que não te vou entregar de mão beijada. Ainda havemos de falar, nem que seja em 2020. Até lá.
terça-feira, 31 de dezembro de 2019
sábado, 21 de dezembro de 2019
Postcrossing
A verdade é que continua a haver um ínfimo tremor naquele momento em que me aproximo da porta e toco a campainha: aquele olhar sereno, trespassado mortalmente pela nostalgia, que num reflexo de alegria me afaga a alma, um outro tempo a assumir de imediato um certo contorno, a ganhar forma, voz e vida própria. Um trecho de história continua a acontecer ali naquele instante, naquela fracção de segundo e eu sei perfeitamente qual é porque continuo a apanha-lo num voo planado vindo muito lá de trás, capto-o num movimento pendular, porque nele me deixo embalar numa tremenda, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de doces recordações.
___________
Às vezes parece um mero voto circunstancial e meio chocho, mas se isso redundar em mais aproximação, mais afecto, mais felicidade, mais paz, mais solidariedade, mais qualquer coisa aí desse lado - desejo muito a todos.
Feliz Natal!
quarta-feira, 27 de novembro de 2019
Pluviometria
Nunca ninguém foi obrigado a exaltar as mulheres sem que estas estivessem nuas ou revestidas de milhares de adornos, a pinta-las sem ser em natureza-morta, sem ser em pintura de ilusão, a canta-las sem estar de pé, a exalta-las sem ser como cortesãs, a canta-las sem ser em lágrimas.
Não sei como me permiti exaltar-te assim, por trás desse enorme chapéu de chuva.
Não sei como me permiti exaltar-te assim, por trás desse enorme chapéu de chuva.
domingo, 24 de novembro de 2019
Dos voos
O mar, ao longe, lá em baixo, muito fundo, quase branco na bruma da manhã e a chuva a bater. Lá em baixo, ao fundo, o mar e o céu, cinzentos, fundem-se e só se distinguem um do outro pelo facto de os pássaros que se movem aí terem barbatanas.
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
Sandra
Diz-me, muito convicta, que se a vida é um rio, então não é de estranhar que só nos apercebamos das mudanças que nela ocorrem quando já estamos perdidos no mais sombrio dos mares. Um dia acordamos e nada, em nosso redor, nos é familiar. Nem mesmo o nosso próprio rosto. Diz-me ainda que o seu nome já significou filha, neta, irmã, amiga, amada, mãe. Agora estas palavras querem dizer apenas aquilo que as suas letras compõem: uns rabiscos de luzes cadentes no céu nocturno.
Está numa situação que nunca imaginou que fosse possível. É uma pessoa que nunca sonhou ser. Um esquisso impreciso, porém. E é assim, um corpo e uma alma em fuga. Queimem-me, afoguem-me, mintam-me. Continuarei a ser quem sou. Sorrindo a tudo e a todos.
terça-feira, 19 de novembro de 2019
segunda-feira, 18 de novembro de 2019
sábado, 16 de novembro de 2019
Retalhos da vida no campo
Esta manhã quando o sol rompeu, do céu azul caía uma chuva miúda e transparente. Em dias como este, em que o sol e a chuva se abraçam na terra, diz-se com alegria que é para festejar o casamento dos viúvos, que o céu tem destes caprichos. Hoje, porém, um silêncio triste cobre o povoado e os rostos dos seus habitantes parecem cerrados para todo o sempre.
Quem parece não se importar muito com isso é o cão de pêlo pardo que, entretido com o vento, não pára de correr e de arfar com a língua de fora. Como se a noiva estivesse presa no horizonte.
Está mas é um frio de rachar.
terça-feira, 12 de novembro de 2019
Palomar
O Senhor Impontual, com a chegada do frio, deu conta de algum défice na sua gaveta de interiores. Então, esta manhã, dirigiu-se a uma loja da especialidade. Enquanto esperava pela sua vez de ser atendido, o Senhor Impontual foi discretamente seleccionando algumas peças de pijama e simultaneamente deliciando-se a ouvir os magníficos nomes com que foram baptizadas as cuecas, os sutiãs e demais peças de roupa intima. Caleçon, slip, string, négligé, baby-doll, strappy, sungão tudo nomes magníficos. Sutiã e cuecas! Tem algum jeito?
O Senhor Impontual até nem desgosta daquela posição de asa-delta, de busto direito e omoplatas salientes, que tomam os seus braços quando, a tactear nas costas, desapertam o sutiã. Nunca gostou foi do nome sutiã. Sutiã! Parece uma expressão de condutor de camião de trabalhos na via publica.
É aflitivo quando depois de terem feito deslizar as rendas leve como um lagarto que chega ao seu buraco e as espessas borrachas, embebidas naquele odor característico, traçam um X nas costas e elas fazem rodar o sutiã para apanhar a abertura na frente, entre os seios, e desaperta-lo assim com mais facilidade. O Senhor Impontual acha inestético, mesmo vagamente inquietante, o breve instante em que, passado para as costas e de certa forma liberto das suas libras de carne, o sutiã, curtinho, fica pendurado através da sua coluna vertebral, como a albarda de um burro ou as protuberâncias de um camelo a morrer de sede. Ainda se fosse um strappy. Agora um sutiã!
Já slip, ou mesmo string, é diferente. Presta-se bem ao minúsculo bocado de tecido e à escorregadela sedosa entre as coxas. É até bonito contemplar com algum divertimento e ternura a maneira como se libertam do slip: inclinando-se primeiro para libertar uma perna, saltitando sobre o outro pé, deixando em seguida o bocadinho de tecido descer em hélice com a ajuda do pé ao longo da outra perna e, projectando final e bruscamente esta perna para a frente atirando o string ao acaso o mais longe possível. Tal como um passarinho com a asa ferida, agitada, palpitando, ele ali fica, na posição e no sitio exactos da queda, a agonizar até à manhã seguinte em que volta para a gaiola, debaixo da saia.
quarta-feira, 6 de novembro de 2019
Pintar Novembro
Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma quarta-feira. Estamos em Novembro. Sabe que será severamente condenada pelo júri popular, sempre seguro da sua retaliação e dos valores que considera defender. A negligência socialmente criminosa prevalecerá, mas se puder sustentar o homicídio, não se privará disso. O júri popular não dispõe de qualquer prova de crime, mas no seu espírito, esse acto não suscitará dúvida nenhuma.
Fixo-a sem a julgar. Sei que nem é culpada nem inocente. Franzi ligeiramente os olhos. Não a absolvo. Não é a minha função. Não a amarguro. Não é o meu género. Franzi novamente os olhos. Não a interrogo. Trata-se de outra coisa que não a simples discrição. Outra coisa que não o tacto, também. Não espera de mim nada a não ser o meu silêncio e a minha presença, essa força natural.
Conservo a recordação exacta, física, da sua libertação. Foi como aliviar-se de um peso, acabar com o que não deveria ter sido, por-se em situação de dominar o seu destino, enfim. Há pessoas que levam tempo a tornar-se naquilo que são, naquilo que pretendem ser. Ela é uma dessas pessoas.
O retrato é perigoso. Preciso de fingir que sonho com o seu modelo. Apresso-me a impregnar tinta na tela. Respondo mesmo antes de a imagem emergir. Tenho ideias em catadupa. Esta viscosidade insistente não ajuda na secagem que se queria rápida.
domingo, 3 de novembro de 2019
Dos problemas dos homens e das mulheres, a verdadeira história
Enquanto lá fora a chuva e o vento, irrevogáveis, não paravam de se digladiar, começou por explicar-lhe as coisas como se ela fosse ele e ele fosse ela e não se soubesse onde acaba um e começa o outro. E dizia: é preciso rirmos muito, até sentir as costelas quase a estalar, ou é preciso chorarmos muito, até sentir que ficamos limpos e vazios, ou então é preciso ter um orgasmo, que visto de certo modo também é uma forma de nos lavarmos, esvaziarmos, endireitarmos as costelas e sairmos dali, daquilo, de nós.
sábado, 2 de novembro de 2019
Finados
Há pessoas que morreram, porque a vida era a única coisa que tinham. Outras morreram sem nunca terem tido uma vida. Outras morreram e deixaram muita vida.
Mas, vendo bem, qualquer pessoa que morre torna-se imortal porque já não pode voltar a morrer.
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Dual Chip
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
A última palavra
Quantas e quantas vezes damos connosco a escutar a nossa voz perdida. Fala para si mesma, sem se lembrar de procurar do lado de fora, no longe dos espaços. Pronuncia palavras locais, onde há um desconforto no corpo, sem olhar para um além, para uma outra terra, para outras horas. Por vezes as contingências dessas palavras propõem uma involução no tempo - descida vertical da memoria presa de recordações, de rostos, de entidades queridas, de ritos amarelecidos. O tempo da história de cada um, para aí tentar encontrar as causas esquecidas dos males insidiosos e da felicidade palpável e impalpável. Revisita e questiona o tempo passado perdido no espaço do presente que ainda frui, intensamente. Quando a primeira pergunta deveria incidir sobre isso mesmo: "o que é que eu fiz"? Precedido da resposta: "pouco". Como última palavra.
Uma cisma claramente subtraída de uma dissertação feita num jeito muito mais manso.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Da euforia da simplicidade
É incrível como num dado momento estamos aqui e no outro já estamos lá atrás. A mim, chega inclusive acontecer-me, aquando do último andamento, vir de lá de trás e ultrapassar a orla do tempo. Não é fácil, mas é simples.
domingo, 20 de outubro de 2019
Da calculadora de probabilidades
Outra coisa sem jeito nenhum, é acharmos que quem nos conheceu os dédalos interiores teria de nos amar para sempre.
sábado, 19 de outubro de 2019
Nostomania
Hoje apetece-me suster e ignorar o universo e os seus mistérios: a chuva e o vento, a luz e a escuridão, a noite e as estrelas, os deuses do mal e os anjos da guarda e... apaziguar o corpo, ouvir musica, dançar, evocar o passado e o presente, sorrir deles com indulgência, deixar-me abraçar, porque além do talento de inventor de mundos, é preciso saber fazer cantar a consciência.
quarta-feira, 16 de outubro de 2019
ADN
Desde a bactéria à reprodução sexuada o vivente não cessou de se diversificar, de se adaptar, reagiu ao granizo, à geada, ao diluvio, inventou códigos para comunicar, barcos e outros meios para viajar, pilhou a natureza, oprimiu os animais até os reduzir à escravidão em massa nos recintos onde os cria em série, conquistou as florestas e os oceanos, inventou satélites que num ápice fazem as suas melhores imagens correr o mundo, mas sem jamais conseguir ficar em paz com o seu único desejo. O desejo de ser amado da maneira que quer ser amado e não do modo como os outros o podem amar.
O vazio perturbará o seu espírito, o seu coração e o seu corpo até aos confins do tempos.
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
Palomar
"Sfortunatamente, le donne usano il sesso per ottenere l'amore."
Os italianos quando falam gostam muito de introduzir citações para alavancar a sua oratória.
O Senhor Impontual está de novo em Treviso e acaba de ouvir numa conferência sobre conservação e restauro do património arquitectónico a utilização destas palavras em tempos saídas da boca de uma das mais belas e elegantes mulheres do mundo, se não a mais bela. E questionou-se: a que propósito? o que está aqui a fazer a Theron?
Mas a beleza é uma história que se inventa. Isso não existe. O Senhor Impontual, por exemplo, é um ser medíocre, desses que não se distinguem no meio da multidão, desses que não atraem a atenção. O que aliás não é grave, e o Senhor Impontual, acomodou-se.
O Senhor Impontual jamais deteve as mulheres bonitas. Nunca foi a favor do movimento do mundo contra o poder das mulheres bonitas. Viu o perigo que trazem com elas, a ameaça que por vezes representam. Aprendeu que estão aptas a devastar tudo à sua passagem se não as travarem. Deve perdoar-se-lhes, sem dúvida, porque não sabem o que fazem. Enfim, nem sempre. Na realidade, não possuem uma ideia precisa da sua força. Se avaliam, muitas vezes com grande rigor, o seu poder de sedução, a sua habilidade para levarem os homens a ceder, se conseguem chegar a um conhecimento intimo dos seus trunfos, das suas armas, não medem inteiramente aquilo que são capazes, os danos que são susceptíveis de causar. É esta última ignorância que as salva, evidentemente. Porque, no fim, é impossível querer-lhes verdadeiramente mal. Como se, nos desastres, lhes fosse reconhecido o beneficio da irresponsabilidade.
Posto isto, o Senhor Impontual saiu da conferência absolutamente convencido de que o aspecto principal da preservação de um edifício é a sua história e não a sua beleza. Nem que para se atingir tal desiderato seja preciso ficar quieto.
Os italianos quando falam gostam muito de introduzir citações para alavancar a sua oratória.
O Senhor Impontual está de novo em Treviso e acaba de ouvir numa conferência sobre conservação e restauro do património arquitectónico a utilização destas palavras em tempos saídas da boca de uma das mais belas e elegantes mulheres do mundo, se não a mais bela. E questionou-se: a que propósito? o que está aqui a fazer a Theron?
Mas a beleza é uma história que se inventa. Isso não existe. O Senhor Impontual, por exemplo, é um ser medíocre, desses que não se distinguem no meio da multidão, desses que não atraem a atenção. O que aliás não é grave, e o Senhor Impontual, acomodou-se.
O Senhor Impontual jamais deteve as mulheres bonitas. Nunca foi a favor do movimento do mundo contra o poder das mulheres bonitas. Viu o perigo que trazem com elas, a ameaça que por vezes representam. Aprendeu que estão aptas a devastar tudo à sua passagem se não as travarem. Deve perdoar-se-lhes, sem dúvida, porque não sabem o que fazem. Enfim, nem sempre. Na realidade, não possuem uma ideia precisa da sua força. Se avaliam, muitas vezes com grande rigor, o seu poder de sedução, a sua habilidade para levarem os homens a ceder, se conseguem chegar a um conhecimento intimo dos seus trunfos, das suas armas, não medem inteiramente aquilo que são capazes, os danos que são susceptíveis de causar. É esta última ignorância que as salva, evidentemente. Porque, no fim, é impossível querer-lhes verdadeiramente mal. Como se, nos desastres, lhes fosse reconhecido o beneficio da irresponsabilidade.
Posto isto, o Senhor Impontual saiu da conferência absolutamente convencido de que o aspecto principal da preservação de um edifício é a sua história e não a sua beleza. Nem que para se atingir tal desiderato seja preciso ficar quieto.
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
Ressaca
Há décadas que, em noite de eleições, me fascinam os discursos das vitórias. No dia seguinte, os discursos dos empates ainda me parecem mais impressionantes.
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Voto compulsório?
A analise do tecido politico que por estes dias se propõe tomar as rédeas do país é de tal forma óbvia, fácil e contundente que a sua simples leitura é suficiente para se impor enquanto farsa. Não são necessárias observações minuciosas, interpretações incisivas e sinistras para inculcar o nível politico da nação. A credibilidade é uma conquista que se faz todos os dias: ninguém a oferece gratuitamente. Não é uma questão de gramática. Não é uma questão aritmética. É uma questão moral. É uma questão de carácter. Insuflar força e honra nas palavras e nas tomadas de decisão é o dever mais caro e terá de ser o propósito quotidiano de quem pretende fazer politica com responsabilidade. Não é um epitáfio. Tem de ser a bandeira desfraldada, todos os dias.
Ora se assim não é, e atendendo a que (alegadamente) vivemos num regime de democracia representativa legitimada pela soberania popular, eu, que não percebo nada disto, ponho-me a pensar se não seria melhor respondermos com uma ida massiva às urnas de modo a que os políticos deste país sentissem, de uma vez por todas, o ónus da responsabilidade que pesa sobre eles? e por outro lado afunilar (lhes) o leque de desculpas infundadas que decorre da altíssima abstenção que habitualmente se verifica e que (lhes) serve de capa protectora?
Uma votação massiva não teria o condão de uma melhor definição parlamentar - responsabilizando-a: quer seja maioritária ou minoritária? além de deixar a descoberto a insustentabilidade de algumas alas politicas populistas que aparecem a querer ganhar alguma força circunstancialmente alavancadas pela abstenção?
Bom...isto foi só um pensamento. E como eu não percebo nada disto, se calhar o melhor é continuarmos, perversamente, entretidos em festas alegres e jazz. E... daqui a seis meses cantarmos a uma só voz: " eu não tenho nada a ver com isto, nem sequer fui votar".
Ora se assim não é, e atendendo a que (alegadamente) vivemos num regime de democracia representativa legitimada pela soberania popular, eu, que não percebo nada disto, ponho-me a pensar se não seria melhor respondermos com uma ida massiva às urnas de modo a que os políticos deste país sentissem, de uma vez por todas, o ónus da responsabilidade que pesa sobre eles? e por outro lado afunilar (lhes) o leque de desculpas infundadas que decorre da altíssima abstenção que habitualmente se verifica e que (lhes) serve de capa protectora?
Uma votação massiva não teria o condão de uma melhor definição parlamentar - responsabilizando-a: quer seja maioritária ou minoritária? além de deixar a descoberto a insustentabilidade de algumas alas politicas populistas que aparecem a querer ganhar alguma força circunstancialmente alavancadas pela abstenção?
Bom...isto foi só um pensamento. E como eu não percebo nada disto, se calhar o melhor é continuarmos, perversamente, entretidos em festas alegres e jazz. E... daqui a seis meses cantarmos a uma só voz: " eu não tenho nada a ver com isto, nem sequer fui votar".
terça-feira, 1 de outubro de 2019
Volta ao mundo em cinco minutos
Em Paris eras uma dama aprisionada num espartilho fumando cigarrilha no Cabaret du Ciel. Em Berlim estavas sentada num palco da Filarmónica, abanando-te com um programa onde constava, entre outras sinfonias, a nona de Mahler. Em Amesterdão eras uma daquelas prostitutas lindíssimas que se exibem nas montras dos canais. Em Londres eras um ramo de daffodils que comprei no Columbia Market no inicio da Primavera. Em Praga eras uma rapariga que orava no Cemitério Velho. Na reserva de Kilaguni, no Quénia, rodeada de hienas, ao cair do sol, estavas vestida de caqui como Ava Gardner no Mogambo. Em Rabat eras Saida a pôr o tempo a dançar numa noite de Ramadão. Nas ilhas gregas eras uma turista inglesa que teimava em prolongar o Verão. Em Viena simplesmente vendias tortas de chocolate na pastelaria Demel. Em Braga...passado aquele ponto em que os rostos foram atravessados por um agradável momento de calor, em que todos os músculos se relaxaram e uma alegria cósmica de textura impetuosa e contaminada de inquietação nos levou a descobrir que, sim, os beijos eram para cumprir, tornou-se impossível estabelecer diferenças entre a postura dos homens e dos cães: do encontro entre os corpos ergueram-se odores tão intensos que acabamos fundidos um no outro. Réus, culpados, mortos.
No Rio de Janeiro poderias ter sido a Garota de Ipanema gingando pelo calçadão fora, mas nunca lá estive.
No Rio de Janeiro poderias ter sido a Garota de Ipanema gingando pelo calçadão fora, mas nunca lá estive.
quarta-feira, 25 de setembro de 2019
Osculação
Já se sabe que, às vezes, acontecem coisas com o condão de alterar o clima em torno de uma pessoa, o que é natural, porque as primaveras não são eternas e um desastre registado num qualquer fim de tarde dá azo imediato a um tempo cinzento e espesso que, como também se sabe, para uma legião de observadores insensatos, está sempre longe de se adivinhar.
segunda-feira, 23 de setembro de 2019
Pensão Imperial II
... com a varanda aberta a todos os ruídos e vozes da rua dentro do quarto, lançaram-se um contra o outro sobre a cama, desnudando-se com os dentes e, à medida que descobriam uma parte do corpo, depois de cada mordidela crescia neles um furor que os impulsionava para dentro de si mesmos para sair de imediato com mais força ainda. Ainda não estavam completamente nús e já se resfolegavam como cavalos que chegam juntos à meta, a égua apenas com meia cabeça de vantagem, e a claridade que entrava pela janela era suficiente para descobrir sobre a pele coberta de suor qualquer sinal de identificação. Ela quando procurou aquele sinal por baixo do mamilo nem sequer teve tempo de se alegrar por o encontrar exactamente igual, porque de imediato sentiu que ele a possuía com uma força desmesurada e foi como se uma onda a cobrisse e enchesse de água o fundo da sua memória.
Os gritos de prazer que ela soltava chegavam à rua. Os pintassilgos e os canários dentro das suas gaiolas pendurados nas janelas calaram-se, um lojista perguntou a si mesmo que guerra era aquela e houve um grupo de pessoas que parou no passeio, disposto a aplaudir a grandeza e a qualidade daquele orgasmo.
- Que se passa ali em cima?
- Não é nada - respondeu um peão residente na zona. - É apenas uma mulher muito satisfeita por voltar ao mundo... por voltar à vida.
quinta-feira, 19 de setembro de 2019
Pensão Imperial
Beberam em silêncio, observando-se um ao outro como dois desconhecidos que marcaram um encontro sem se conhecerem e nada têm a dizer um ao outro senão matar o tempo necessário antes de começarem a devorar-se. Foi ela quem pagou a conta e disse-lhe sem palavras, movendo a cabeça: - vamos? Na rua seguiram por um passeio muito estreito. Levou-o pela mão, ela adiante, ele atrás como que arrastado, até encontrar uma varanda com gerânios, de onde pendia o nome da pensão. Ele sentiu que a sua mão continuava a ser de aço e essa sensação atacava-lhe a vontade. Entraram por um portal velho e sujo e foram vencendo todos os obstáculos que se interpunham à sua passagem: uma escada ensebada com degraus de madeira ruvinhosa até ao terceiro piso. Uma porta verde bosque repintada, uma campainha que soou estridente na recepção, uma velha que abriu o postigo, um gato que miou de forma sinistra ao ver o par debaixo da lâmpada do patamar, a velha que os obrigou a limpar as solas dos sapatos no tapete, um corredor longo com odor a repolho cozido em lume brando, a retrete ao fundo, um quarto à direita com o número nove sobre o lintel, um candelabro azul indigo sobre a mesinha de cabeceira, uma varanda com gerânios pendente sobre a azafama da rua, uma cama grande com a cabeceira de barras de ferro muito próprias para atar o amante que goste disso, um espelho no guarda-roupa que reflectia dois corpos nus tal como eram agora. Ele visivelmente mais magro, ela continua a ser uma mulher formosa de quarenta e cinco anos com a cintura levemente arredondada depois de dois partos, um deles de cesariana, e o tempo deixou-lhe certas marcas na comissura dos lábios e em volta dos olhos, que conferem à sua beleza um esplendor já amadurecido. Perdeu aquela magreza que a fazia parecer bastante mais frágil. Agora parece uma fêmea madura e segura de si, com muito poder na carne. Imperial.
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Pintar Setembro
Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma terça-feira. Estamos em meados de Setembro, nas árvores ocorre a flavescência das primeiras folhas. Diante de mim, ela é frágil. O seu corpo parece vazio. Está à beira de chorar. Retém as lágrimas. Tem de dizer qualquer coisa. Mas não possui a superioridade dos magníficos, esses que encontram, sem reflectir, expressões luminosas. Não tem essa desenvoltura que exaspera os aplicados, que desencoraja os laboriosos. Tem apenas o seu sorriso trémulo, a sua tez de pêssego onde se desenham umas finas linhas precoces, a idade em fuga. É irresistível e indefesa. Linda e desamparada. Tem de dizer qualquer coisa. O rio, lá fora, está como que suspenso da sua palavra. O céu está imóvel também. A manhã chega ao fim. Baixo os olhos. Não pretendo força-la a nada. Não espero nada dela. A mim, não deve palavra alguma. É uma questão entre ela e ela, essa história de dever dizer qualquer coisa. Na paleta tenho apenas um tom, pastel, esconjuro de feridas na alma.
segunda-feira, 16 de setembro de 2019
Erecções
Desde que a grande fraude - que é a vida politica portuguesa - se instalou livremente à luz do dia, a partir do momento em que a aparência enganadora dos fazedores de politica caiu por terra e as revelações capciosas passaram a ser encaradas segundo valores normais, mais os políticos se mostram consistentes e desprovidos de qualquer sentido de inibição própria: apresentam-se com ligeireza acima da moral e das dúvidas das pessoas comuns, aprontam-se a tomar decisões sem vergonha, tudo acontecerá porque tem de acontecer, as perguntas parecem estúpidas e os homens desprezíveis, desprezíveis.
Eles aí estão de novo. Com as cristas bem levantadas.
quinta-feira, 12 de setembro de 2019
Palmira
Palmira entrou, sobranceira, no casino da costa envolta numa écharpe de seda crua e coberta de jóias. Ele ofereceu-lhe um punhado de fichas vermelhas. A bola já rodava nas primeiras mesas. Palmira aproximou-se da roleta com uma elegância natural e pousou todo o seu capital apostando no zero. Depois de dar uma volta por todo o universo, a bola brincou, com alguns saltos mágicos, e finalmente caiu no zero. Palmira compreendeu que o zero era o seu destino.
terça-feira, 10 de setembro de 2019
Estrada da circunvalação
Basta que voltemos à vida para que se sinta, por todos os lados, o espectro da violência e da brutalidade quotidiana, os subtis insultos ordinários, as intimidações como um reflexo, uma animosidade de todos os instantes, uma espécie de cólera surda sempre pronta a explodir, uma fúria mal contida. Tisnados, os corpos das pessoas parece que são portadores duma energia destrutiva, duma dureza à flor da pele. Adivinha-se que esta impetuosidade poderá rapidamente provocar agitação. Está-se sempre à beira do tumulto.
O período de férias, por direito e por obrigação, deveria contemplar uma semana extra para readaptação ao habitat natural antes do regresso.
O período de férias, por direito e por obrigação, deveria contemplar uma semana extra para readaptação ao habitat natural antes do regresso.
terça-feira, 3 de setembro de 2019
Setembro
Passaram a noite num hotel de praia que no andar de baixo tinha um restaurante muito popular e, naquele entardecer de Setembro, o seu terraço com toldos e caniços estava a transbordar de gente cujo o alarido chegava aos quartos e, juntamente com as vozes e as risadas, chegava também um odor a lulas grelhadas e mexilhões em vapor.
Ela olhou-se nua de perfil no espelho do guarda-fatos e observou o baixo-ventre que ia amadurecendo sobre as ancas largas. Antes que se apagasse a luz que ainda restava no mar, estenderam-se numa cama com cabeceira de ferro que, dentro de pouco tempo, começou a gemer, enquanto na praia se ouviam canções entoadas em coro por um grupo que havia lanchado bem. Foi nessa cama que, pela primeira vez ela lhe disse que o amava e que o seguiria para sempre, para todo o lado que fosse, como uma cadela. Depois de ambos se possuírem com uma profundidade desconhecida, ficaram exaustos e suados, deitados de costas em silêncio. Por fim, ela murmurou:
- Agora recita-me outra vez aquele poema.
- Outra vez? Estamos às escuras. Não posso ler.
- Sabes de cor. Começa - disse-lhe ela de forma imperiosa.
- "Pernoitas em mim... e se por acaso te toco a memória..."
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
Deusas
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Há instantes em que parece que deus, não arranjando mais com que se entreter para escapar à perpétua monotonia dos seus dias, dá um toquezinho no mundo com a biqueira do sapato. Daí vem depois esta estranheza da passagem do tempo, o fogo da terra a vibrar debaixo dos pés, a confusão entre luz e trevas, a lua sem domínio das marés. São precisas várias noites à deriva no vazio até que o mundo se encaixe numa nova órbita.
Há instantes em que parece que deus, não arranjando mais com que se entreter para escapar à perpétua monotonia dos seus dias, dá um toquezinho no mundo com a biqueira do sapato. Daí vem depois esta estranheza da passagem do tempo, o fogo da terra a vibrar debaixo dos pés, a confusão entre luz e trevas, a lua sem domínio das marés. São precisas várias noites à deriva no vazio até que o mundo se encaixe numa nova órbita.
MP em Mãe Preocupada
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Deus fez-nos cheios de buracos na alma e o nosso dever é tapá-los todos para navegar.
(Vergílio Ferreira)
Ana P em Primeiramente
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Pois então, deus queira que deus exista.
Isto é feito de novas folhas, novas flores, novas águas, novas barcas.
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Pois então, deus queira que deus exista.
Isto é feito de novas folhas, novas flores, novas águas, novas barcas.
terça-feira, 27 de agosto de 2019
Palomar
O Senhor Impontual aprendeu, por estes dias de calor intenso, em sede própria, que quando se perde a reputação começa-se a ficar livre.
domingo, 25 de agosto de 2019
Luz de Agosto (último)
No adro, os noivos deambulam com um sorriso largo. Ainda há gente que se consegue apaixonar até às orelhas.
É bonito.
terça-feira, 20 de agosto de 2019
Luz de Agosto (VII)
A esta hora toda a praia está cheia de pares jovens que celebravam, entre as dunas, inúmeras cópulas em todas as suas modalidades e, embora esses actos de amor sejam invisíveis, criam, sem dúvida, um fluxo pegajoso no ar em que também as gaivotas fazem as suas libações.
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
Luz de Agosto (VI)
«O tempo consome-se ao seu ritmo imóvel, igual para todos os homens, nem mais lento para os felizes nem mais veloz para os desventurados.»
quarta-feira, 14 de agosto de 2019
Luz de Agosto (V)
Insisto. Não há nada como vir ao pôr-do-sol, quando as aves regressam aos ninhos para dormir. Devia ser este o som do mundo antes do homem existir.
sexta-feira, 9 de agosto de 2019
Luz de Agosto (IV)
Aproximou a sua mão da minha. Olhamos um para o outro. Quantas histórias começaram com um olhar assim? Vi-o na vida real, nos filmes, nos livros, nos quadros. É um olhar que funciona como uma malha, que bate suavemente à porta para entrar, um olhar diferente e inequívoco. Pouparam-se mais palavras e explicações com esse olhar do que com qualquer outra coisa na história da humanidade.
_ Vamos? Disse, naquela tarde cinzenta de Agosto, metendo os olhos fixos nos meus.
quinta-feira, 8 de agosto de 2019
quarta-feira, 7 de agosto de 2019
Luz de Agosto (II)
Procuraram um sitio para se beijarem e, como na aldeia àquela hora a solidão era absoluta, sem outra presença que não fosse a de algumas lagartixas, sentaram-se mesmo por baixo da carvalheira grande, tendo aos seus pés as raízes e ali começaram a acariciar-se enquanto as lagartixas erguiam o pescoço. O silencio era tão profundo que os estalos dos seus lábios soavam no ar cada vez com mais força, tal como os seus arquejos e até se ouvia o ruído surdo das línguas que se procuravam absolutamente frenéticas quando sentiram uns passos que se aproximavam. Era uma mulher de meia idade, sorridente, que passeava sozinha com um ramos de flores campestres na mão.
segunda-feira, 5 de agosto de 2019
quarta-feira, 31 de julho de 2019
segunda-feira, 29 de julho de 2019
Terminal
Chegou no comboio das 13:38. Eram apenas meia-dúzia de pessoas na sua carruagem. Não foi incomodado durante a viagem. Não leu nenhum livro nem jornal, limitou-se a encostar a testa de lado no vidro húmido, viu a paisagem desfilar sem lhe prestar grande atenção e os leves pingos de chuva a baterem contra o reflexo da sua cara. O matraquear metálico das rodas ao longo dos carris não o perturbou; passado pouco tempo deixou mesmo de o ouvir. Desceu na estação terminal. Sabia que não iria mais longe, que tinha chegado, que era o fim da viagem. Olhou o relógio. O comboio não se tinha atrasado. Não chegou adiantado. Atravessou a gare sem se cruzar com ninguém. Ninguém o viera esperar. Levantou o colarinho, acendeu um cigarro e avançou em direcção à rua. Não tinha nenhuma mala com ele. A morrinha depositava pequenas gotículas nos seus cabelos grisalhos, o vento ligeiro soerguia por momentos a orla da sua gabardina fluída. O mundo resumia-se a ele. Novamente. Nunca foi perfeito, nunca andou direito na linha que Deus fez.
Obrigado, meu Caro. Pela música, pela opinião independente, pela carolice.
Obrigado, meu Caro. Pela música, pela opinião independente, pela carolice.
quinta-feira, 25 de julho de 2019
Palomar
Não sei se convosco também acontece? Com o Senhor Impontual acontece amiúde ficar pasmado diante das montanhas, dos oceanos, dos sóis, dos céus, das estrelas, impressionado pelo que está fora do seu alcance, pelo que as nossas mãos não saberiam fabricar, pelo que o nossos espíritos seriam incapazes de conceber. Mas não se espera nada diante das mulheres bonitas. Nada que não sejam sentimentos vulgares. E depois, um dia, há uma que aparece para o qual não estamos preparados, e eis que os joelhos se dobram. Não se sabe dizer porquê. Não se encontram palavras. O que nada tem de religioso. Não se está em adoração. É qualquer coisa que tem a ver com a graça, com a magia. Subitamente cai-se no deslumbramento. Está-se um passo atrás, ou um furo abaixo. É-se mantido à distancia. O sentimento que se experimenta não é necessariamente o desejo. Mas uma outra coisa. Uma espécie de reserva.
O Senhor Impontual quer acreditar que se trata de um leve e passageiro momento de afronesia. Não sei se convosco também acontece?
O Senhor Impontual quer acreditar que se trata de um leve e passageiro momento de afronesia. Não sei se convosco também acontece?
quarta-feira, 24 de julho de 2019
terça-feira, 23 de julho de 2019
Consubstanciação
Quer tranquilizar-se e não se tranquiliza. Vê espaços vazios por toda a parte e não sabe como preenche-los. Busca desesperadamente a sua espiritualidade e a única coisa que encontra é um vulgar apego à vida de merda. Isso ainda a aflige mais do que o próprio vazio. Sente que não foi aquilo que queria ser e que não fez as coisas que sonhava. Agora depara-se com a realidade de ser demasiado tarde para tudo. Não quer dizer que tivesse feito as coisas de maneira diferente, no entanto, não sabe como teria sido a sua vida aos vinte e cinco anos se alguém a tivesse avisado que aos quarenta e cinco estaria vazia. Agora tudo se reduz à escassa consciência que tem da sua vulnerabilidade e à ridícula suposição de que tinha o tempo, de que poderia ser imortal.
Cuba Libre
Tinha o rosto carregado de estuque, muito mal pintado e muito pintado. Os lábios engelhados e a boca murcha, circunflexa. Nas comissuras atulhavam-se camadas sobrepostas de base. Cabelo preto, farto, armado, sobrancelhas desenhadas dificultosamente a lápis. Os lóbulos das orelhas pendentes; os orifícios tornaram-se, com o girar dos anos, em fendas enormes. As mãos pergaminhos veiudos; documentos antiquíssimos. Mas existia, embora submerso, o toque de uma beleza remota, de uma harmonia moribunda, no corpo, no porte, nos traços de mulher que exerce a profissão de prostituta desde que se conhece. Quis que eu lhe oferecesse uma Cuba Libre. Senti uma certa melancolia.
quinta-feira, 18 de julho de 2019
Ressalga
Ao abrir a janela pela manhã, espalhou-se por toda a casa a epidemia do odor intenso à maresia. Depois, à tarde, com a chegada do sol o ar foi ficando um pouco mais limpo. Ao cair da noite, o aroma salgado foi-se introduzindo de novo em todos os interstícios da casa, encheu a cozinha, corredores, alcovas e armários, penetrou na intimidade das arcas e baús, impregnou a roupa e as cortinas, ficou agarrado às paredes e também penetrou na alma das pessoas através dos sete ou oito orifícios que o corpo tem, até se apoderar por completo da sua vontade. E a sua vontade, já se sabe, é o amor. Embora, por vezes, o hipotálamo não dê a ordem em tempo útil.
terça-feira, 16 de julho de 2019
Whitman
Celebro-me e canto-me a mim mesmo.
E o que eu assumir tu também haverás de assumir,
pois cada átomo meu é igualmente teu.
Ando à sorte e convido a minha (e a tua) alma a andar também.
sábado, 6 de julho de 2019
Afrontamentos
Há lugares no mundo onde uma certa classe de vento, por vezes muito selvagem, constitui uma atenuante e até uma absolvição para qualquer crime que seja cometido enquanto ele sopra. Quero crer que esta parrilhada de mar que acabo de manducar em quantidade vergonhosa não me há-de fazer mal nenhum. Já em tempos o meltemi enlouquecia os gregos clássicos. Esse vento do norte que varria o mar Egeu deixando as suas ilhas polidas como ossos e ninguém sabe se se deve à sua influência que os filósofos e poetas tivessem aquelas mentes tão pecaminosas.
Logo mais, espero apanhar uma barrigada de Bacurau. E, quiçá, estrearei a imaculada camisa de linho que trouxe de Treviso, na noite branca.
Não posso é comer mais nada.
Logo mais, espero apanhar uma barrigada de Bacurau. E, quiçá, estrearei a imaculada camisa de linho que trouxe de Treviso, na noite branca.
Não posso é comer mais nada.
quinta-feira, 4 de julho de 2019
Tax Free
A rapariga da loja de perfumes, talvez devido à minha insistência em manter o frasco bem perto do nariz, aproximou-se com um sorriso e disse: não se deixe levar pelas notas de entrada, são voláteis, fugidias, são fortes e alegres pois querem conquista-lo. Isto dos perfumes é como no amor, primeiro tem de se entranhar no nosso corpo e ali ficar, deixando-nos alvoroçados, aumentando a corrente sanguínea e o calor do corpo de modo que a nossa transpiração tenha a fragrância essencial. Essas são as notas médias ou do coração. Depois vem as notas de base, que são as mais importantes, pois são aquelas que se sentem quando alguém nos abraça.
Por isso este aroma do anis que tem agora no seu nariz, depois, logo mais, quando abraçar a sua amada, será uma inebriante fragrância almiscarada à mistura com couro e madeira.
- Mas eu não vou para casa. Estou exactamente no sentido contrário. Atirei.
- Não faz mal. O frasco é de 100 ml. L'amore non muore mai.
segunda-feira, 1 de julho de 2019
Palomar
Treviso, nove horas da manhã, trinta e três graus centígrados.
Não é todos os dias que se ouve senhoras, lindas, na casa dos 50 anos de idade, dizer umas para as outras: "mi sento caldo oggi"!
O Senhor Impontual, homem discreto, alinha o seu olhar no horizonte urbano e caminha sorridente sobre a escaldante calçada da Piazza dei Signori, ali e acolá aproveita uns salpicos da água que cai dos fontanários e interroga-se como é que ainda há quem ouse dizer mal do aquecimento global. Isto há malta que nunca está contente.
quinta-feira, 27 de junho de 2019
quarta-feira, 26 de junho de 2019
Osvaldo
Do amor, almeja apenas os golpes, as contorções dos corpos, o prazer carnal que esquece logo que é saciado, as traições, as águas turvas e densas onde nada como um peixe ágil que produz bolhas de felicidade. Tudo o que mantém a distância e impede a reunião dá-lhe ardor, apetite. Os elogios, as palavras doces, as atenções, a ternura que jorra dum coração para outro, provocam-lhe uma repugnância petrificante.
sábado, 22 de junho de 2019
Solstício
©Jacques Henri Lartigue
(...)
uma fornalha, uma cavidade sofrendo dores até à cisão;
um vazio,
uma mulher, à espera de ser cheia
a luminosidade dos elementos,
a corrente que avança!
(...)
__William Carlos Williams, Alguns rastos de "Paterson".
quarta-feira, 19 de junho de 2019
terça-feira, 18 de junho de 2019
Cinéreo
Tudo nele é cinzento: o fato, a armação dos óculos, os olhos, os cabelos, a gravata, os sapatos. Por mais que me esforce não lhe noto o mínimo vestígio de uma outra cor qualquer. Fala e eu escuto. Nunca faz uma pausa de controlo para perceber se aquilo que está a dizer me apaixona de algum modo; está habituado a ser escutado. Não anda, pavoneia-se, não se senta, sobe ao trono, não telefona, a sua secretária marca os números por ele.
Demora-se entre duas garfadas de comida requintada que saboreia com o ar contido do conhecedor exigente que reflecte sempre antes de se abandonar ao prazer das coisas. Deixa cair palavras, pomposo e lento. Sujeito, verbo, complemento directo, e uma série de subordinadas eloquentes. Ignora-me e continua a pontificar, limpando a comissura dos cantos dos lábios com o guardanapo de pano branco que, em seguida, coloca sobre a barriga arredondada. Estende o copo e faz o vinho rolar devagar na boca e atira: "aceita pegar no projecto nestas condições?"
Lancei-lhe um multicolorido "tenho de pensar". Certo de que hoje ele não ia aguentar o rotundo "não", cinzento como chumbo, que tenho para lhe deixar amanhã à mesma hora sobre a mesma mesa de pé de galo estilo inglês. Espero que não se coma pior.
sábado, 15 de junho de 2019
Contra-luz
Fatigado por uma semana inteira, sentir perfeitamente que esta informação de que poderá chover me proporciona uma onda de prazer, não deixando de ser embaraçosa, mas ainda assim deixar-me levar totalmente por essa emoção ambivalente. À minha volta a paisagem começa a desaparecer num crepúsculo precoce. Mordiscado pela sombra cinza suspensa num céu prestes a apagar-se na noite que chega inquieta e cuja negrura é a própria expressão das expectativas, dou comigo a pensar que ainda há quem saiba alumiar os outros enquanto outros não possuem, nesse particular, qualquer talento especial, e que isso também faz parte das coisas ocultas que ainda não sabia que sabia.
quinta-feira, 13 de junho de 2019
Santo António Pequenino
Diz-me, sem hesitar, que o casamento é a forma mais difícil de se viver com outra pessoa. Faz desaparecer os enigmas da relação, junta aquilo que talvez nunca devesse juntar, compartilha coisas que não deveriam ser compartilhadas, vai emudecendo subtilmente os cônjuges porque as palavras vão perdendo o seu antigo brilho, o que anteriormente parecia uma ideia original acaba por parecer uma ideia mil vezes repetida, mais que sabida, velha, com o passar dos anos as pessoas começam a não se ver e já não se aborrecem, mas também não provocam fúrias entre si, nem paixões, nem há motivos para reconciliações. Já não há despedidas do lado de fora da porta, nem partidas de madrugada, nem beijos furtivos nas escadas. Deixa de haver ruas por onde se deambula à noite, a sonhar. Do casamento em diante os beijos tornam-se cada vez mais conhecidos e menos húmidos e aquilo que vem depois da noite é mais do mesmo do dia de ontem, acaba o amor louco, romântico, mágico e começa a rotina do papel higiénico e do pagamento das contas e faz-se sexo a pensar no que se há-de comprar para o almoço do dia seguinte porque o marido tem o colesterol alto e não come isto e aquilo...
Senti uma espécie de pânico. Borges é que tinha tinha razão. "O casamento é um destino demasiado pobre para uma mulher".
Senti uma espécie de pânico. Borges é que tinha tinha razão. "O casamento é um destino demasiado pobre para uma mulher".
quarta-feira, 12 de junho de 2019
O acaso é intrigante!
sexta-feira, 7 de junho de 2019
Feira do Livro
Aproximo-me do stand. A rapariga que está de pé atrás do balcão, folheia um livro, não se apercebe da minha aproximação. Observo-a sem que ela dê por mim. Gosto desta atitude das mulheres que viram distraidamente as páginas de um livro, que têm aquele ar falsamente concentrado, ausente do mundo, que tresvariam mais do que lêem, que vagueiam por onde nenhum homem está em condições de se lhes juntar, que são belas porque não estão arranjadas, que têm encanto porque não procuram seduzir, que são indefesas porque são desatentas.
No balcão ao lado, uma mulher - que me parece ser a gerente do stand, da editora - tenta atrair-me com o olhar. Só com o olhar. Os seus lábios mantém-se ostensivamente selados. Também se os entreabrisse, dar-se-ia pela peçonha nas suas comissuras. Detenho-me sobre o seu fácies estriado de rugas, o carrapito cinzento, a sua pele quase transparente onde finas veias azuis desenham formas monstruosas. Estou certo de que aquele ar de malvadez não veio com a idade, que tudo já lá estava no começo, que os anos mais não fizeram do que acentuar este traço do seu carácter. Ao lado dela, a tez fresca e rosada da rapariga acorda subitamente: "ai desculpe estava aqui a deitar os olhos sobre o "Eu Confesso" do Jaume Cabré. Já leu? Olhe que está barato". Não li, mas vou ler - retorqui.
quarta-feira, 5 de junho de 2019
Pintar Junho
Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma quarta-feira. Estamos em Junho e no ar paira a fragrância do jasmim, do alecrim, da madressilva e das mimosas. Os botões da catalpa rebentam nas árvores, parecendo estrelas, o seu perfume a leite-creme espalha-se delicadamente pelo ar.
Estou impedido de lhe mentir. Tudo deve ser dito, posto na tela. Observo a sua cara bonita, os lábios tingidos de vermelho pelo refresco de framboesa, a tez diáfana pontuada de sardas, o cabelo ruivo e aquela espécie de esgotamento, esse estigma da vida, apesar de toda a sua frescura. Está imóvel na banqueta, impõe a si mesma essa inércia, essa anquilose. É patente. Usa as suas feridas com elegância, com desenvoltura.
Na tela, deslizo o carvão pelo seu sorriso imperceptível. Na paleta, ensaio o carmesim que será o respingo nos seus lábios. Nada mais.
segunda-feira, 3 de junho de 2019
Chumaço
Nessa terra cujos céus eram límpidos, as madrugadas húmidas, as manhas frescas, e onde as silhuetas se dobravam contra os ventos ruins, tu era uma espécie de contra-mão, a prova de que a bruma não vence todas as resistências. Sorriso gratuito, franco, livre, quase involuntário, eras como um bálsamo. Assumias a expressão do triunfo.
A principio não falávamos. Havia somente o ruído dos nossos passos sobre o asfalto húmido, o sopro do vento da tarde que se embrenhava nos nossos pescoços; havia as nossas cabeças curvadas, os nossos narizes avermelhados, o frio dos corpos, a companhia muda do outro, a marcha silenciosa. E depois, sem que nada o deixasse prever, tu tomaste a palavra. Acreditei que irias fazer uma alusão ao tempo. Mas não, foi outra coisa, dessas coisas que não se dizem quando as pessoas não se conhecem, mas que contudo tu disseste, pois tu não eras uma mulher como as outras.
Disseste que eu era um homem como tu gostavas. Não era teu desejo deixar-me embaraçado, apenas tinhas necessidade de o dizer. Disseste que não tiveste de vencer uma única reticência, não tiveste que te conter. O que tu notaste antes de mais em mim foi o ar distante, a indiferença, a displicência. Não te terias aproximado de um homem que te tivesse cobiçado, que se tivesse exibido. Desses homens que trazem a virilidade a tiracolo.
Hoje pensei em ti. Fiquei com um alto nas calças.
Disseste que eu era um homem como tu gostavas. Não era teu desejo deixar-me embaraçado, apenas tinhas necessidade de o dizer. Disseste que não tiveste de vencer uma única reticência, não tiveste que te conter. O que tu notaste antes de mais em mim foi o ar distante, a indiferença, a displicência. Não te terias aproximado de um homem que te tivesse cobiçado, que se tivesse exibido. Desses homens que trazem a virilidade a tiracolo.
Hoje pensei em ti. Fiquei com um alto nas calças.
quinta-feira, 30 de maio de 2019
Sem foto de pouco vale
Mas seja como for, de manhã, o ar que se respira no alto desta falésia é tão revigorante, que nos leva a crer que, graças a ele, se ganha um suplemento de tempo. Dizem-me que à tarde, os reflexos no mar têm por vezes qualquer coisa de assombroso e quando os céus alaranjados se estendem sobre a baía, ao pôr- do-sol, quase dá vontade de chorar. Vou ficar para ver. Mas não estou para choros.
terça-feira, 28 de maio de 2019
Lolita
A rapariga da loja de conveniência onde me abasteço de manhã é uma rapariga de uma simplicidade absoluta. Não verdadeiramente bela. O rosto não chama particularmente a atenção. Mas, olhando de mais perto, damo-nos conta de que há qualquer coisa na sua silhueta, no seu modo de andar, no rubor das suas faces, no seu sorriso também, que é mais próprio da adolescência. A rapariga da loja de conveniência é uma mulher-menina. Tenho ocasião de observar as suas mãos longas: são finas e longas. Uma rapariga de mãos finas e longas. E manchas de rubor nas faces. Usa roupas informes e lenços intermináveis que lhe ficam bem na tez fresca e rosada. Os seus olhos brilham. No entanto não sinto desejo por ela. Já não desejo tudo o que vejo.
sexta-feira, 24 de maio de 2019
Abstencionismo
É certo que se tem vontade, necessidade, que o mundo seja branco ou negro, que os homens sejam inocentes ou culpados, santos ou escumalha. É uma cisão que dá segurança. Cada um tem o seu modo de vida, tem o seu papel. O cinzento, isso é que não é assunto nosso. O intermédio não se sabe bem onde se encontra. As fronteiras devem estar claramente estabelecidas, desenhadas. Consoante o lado onde cada um se encontra, assim se é capaz de dizer a que campo se pertence. Tem-se necessidade de coisas límpidas, e legíveis, e duras. No entanto, a mim, acontece-me acreditar que a realidade é mais contrastada. Aprendi que a luz e a sombra são indissociáveis. Aprendi que é preciso fazer escolhas na base da tridimensionalidade. Na sombra própria e na projectada. Apreendi a puxar-me as orelhas. Vou lá. Mas percebo quem não vá. Quem não queira ir. Quem não queira puxar as orelhas.
quarta-feira, 22 de maio de 2019
Desaparição
Chego à casa. Finalmente. Avanço no escuro. No escuro e no vazio. Não arrisco embater em nada, excepto nas paredes. Tudo parece mais vasto e os meus passos ressoam. Pelas janelas entram os reflexos azuis da lua. É o instante de maior desapossamento. Da inigualável solidão.
A casa já não é a casa, os quartos já não são os quartos, são apenas espaços intocáveis, sem ocupantes, sem vida, lugares desimpedidos. Esta desolação, este despojamento é verdadeiramente a ausência. É o que mais se parece com a ausência. É um território ao abandono, estéril. É o silencio apenas perturbado pelo ruído dos meus passos no soalho nu. Ando sem me dirigir a nada em particular. Ando na casa que já não é a casa, desamparado. Os meus olhos habituam-se ao escuro. Trago comigo o odor da desaparição.
Não sei o que fazer àquilo. Ou melhor, sei.
Não sei o que fazer àquilo. Ou melhor, sei.
terça-feira, 21 de maio de 2019
Melgaço
É a vida, diz-me Dona Célia enquanto me coloca o café sobre a mesa com os olhos fixos na CMTV acompanhando mais um daqueles casos.
Só que, aqui, os homens e as mulheres não se separam. São indissociáveis até à morte. Estão unidos perante Deus, não correm o risco de um perjúrio. E, depois, não descontam a felicidade como um retorno da sua união. Casam-se porque é assim, porque os mais velhos o fizeram antes deles, maquinalmente. Das mulheres, os homens esperam que cuidem bem da casa, que se ocupem dos filhos. Dos maridos, as mulheres esperam que tragam uma paga e que as acariciem quando não estão fatigados. A vida é tão simples quanto isto nestas terras. Não se é sofisticado. Posso testemunha-lo: não agi de outro modo. Estou casada à 30 anos.
segunda-feira, 20 de maio de 2019
Vulpes pilum mutat, non mores
Enquanto lhe digo as coisas, os seus olhos franzem-se ligeiramente. O resto da sua cara permanece absolutamente impassível. Ela tem a forma oval dos vasos sagrados. Esta impassibilidade é para significar que não tem nada a acrescentar, que o que acaba de ser enunciado não tem nenhuma necessidade de ser confirmado. Esquadrinho a estranha imobilidade dos seus traços, a cera da sua máscara. Impressiona-me tanto auto-domínio, tanta discrição. Manteve as mãos entrelaçadas sobre os joelhos cruzados, exibindo uma elegância que já não se usa. Encoraja-me com a sua simples presença muda, mas não tenho mais nada para lhe dizer.
sábado, 18 de maio de 2019
Mestrado em marketing e estratégia
Na Finlândia um deputado e candidato às eleições legislativas daquele país fez toda a sua campanha no Pornhub. O Pornhub é um site de cunho pornográfico com mais de cem milhões de visitas diárias.
"Temos de estar onde as pessoas estão", justificou o candidato.
quinta-feira, 16 de maio de 2019
Layer vectorial
Está fora de dúvida de que apenas gosto da periferia, das fronteiras, das orlas, dos contornos. Desconfio dos centros, das evidências.
terça-feira, 14 de maio de 2019
Azad
No local onde me encontro os paquistaneses têm umas mercearias onde gravita todo o tipo de gente à procura do improvável. Os paquistaneses são gente fleumática. Não consigo entender se a sua fleuma advém da indiferença na qual foram acantonados e à qual parecem acomodar-se. Ou serão eles, muito simplesmente, gente que não procura as histórias das outras gentes, decididos que estão em não exprimir nenhuma opinião para não afastar ninguém? Fundem-se na paisagem até se tornarem um elemento dessa paisagem, apenas um pouco mais exótica do que o resto do cenário. Usam turbante, mas a sua fisionomia castanha é impassível e pacifica. Os seus modos são elegantes e lentos. A sua falta de afecto funciona nos outros como um bálsamo de relaxamento.
Azad não é visivelmente o género de pessoa para se lançar em grandes dissertações, nem para formular extensas teorias. Guarda as suas reflexões para si próprio, jamais desejaria embaraçar alguém. Aprecio este tipo de discrição, que é a verdadeira elegância. Sou tocado por esta moderação, este pudor, que são de um homem honesto. Contenta-se em perguntar-me como tomo o meu chá. Voltamos ao silêncio. O chá arrefece na minha chávena. Azad tem movimentos lentos, seguros, delicados. Não se desgasta inutilmente. Quando acabo de tomar o meu chá, pronuncia algumas palavras a propósito do tempo, da chuva, da morrinha. Conta-me que nunca se habituou ao chuviscar permanente. Que lhe falta o sol do Paquistão. Interrogo-o para saber quando deixou o seu país. Informa-me que nasceu em Londres, que nunca pisou solo da terra natal dos seus pais, que sente a falta do que não conheceu, dessa pertença que lhe foi negada, que lhe é impossível reivindicar. Diz que é um puro produto da Inglaterra. Dí-lo sem acrimónia, mas com verdadeira tristeza. Diz que é um exilado no seu próprio país.
quinta-feira, 9 de maio de 2019
Da noite em que me deitei com Anaïs Nin e acordei com a Hilda Hilst
Perturbado, incerto, inquiridor não cessei de respirar, de tirar proveito de uma presença fulgurante, de um corpo que se movia a meu lado mas que insistia que o dia impediria a continuidade do êxtase, porque tudo o que se move, tudo o que flui, tudo o que passa sufoca-nos e enche-nos de angustia.
Adormeci atolado na ideia de que não há maior erro possível do que acreditar que uma ausência é um vazio. A diferença entre os dois sentimentos é uma questão de tempo (sobre o qual eles não podem fazer nada). O vazio está antes, a ausência está depois. De vez em quando é fácil confundir os dois. Há-de ser daí que emergem alguns dos nossos desgostos.
- Ama-me na exiguidade, é tempo ainda. Ouvi, estremunhado, de uma voz vinda do lado de fora.
Adormeci atolado na ideia de que não há maior erro possível do que acreditar que uma ausência é um vazio. A diferença entre os dois sentimentos é uma questão de tempo (sobre o qual eles não podem fazer nada). O vazio está antes, a ausência está depois. De vez em quando é fácil confundir os dois. Há-de ser daí que emergem alguns dos nossos desgostos.
- Ama-me na exiguidade, é tempo ainda. Ouvi, estremunhado, de uma voz vinda do lado de fora.
terça-feira, 7 de maio de 2019
Palomar
O Senhor Impontual não sabe ao certo quais a razões para tal, mas quando se encontra longe de casa torna-se um homem bastante mais introspectivo, um homem que se intriga com as pessoas e com o mundo. O Senhor Impontual também não tem a certeza se o intrigam mais as pessoas do mundo ou o mundo das pessoas. O que é certo é que o Senhor Impontual, e o seu eu flutuante, está imerso num mundo desincorporado e chegado a este grau de amadurecimento sente o desejo de agradar a si mesmo, prelúdio ao prazer, mergulhar em si próprio, rodeado por uma música interior, construir um abrigo e às vezes elevar-se para observar de longe. O Senhor Impontual sente mesmo gosto em frequentar esse universo alargado de pessoa só, sem se atolar em delírios de desgaste lento, mas não deixa de se questionar: pode alguém ser quem não é?
domingo, 5 de maio de 2019
Olívia
O local onde me encontro neste momento está quase deserto. Uma senhora e um cavalheiro, seguramente italianos do norte, estão a desfrutar do magnifico fim de tarde sentados em duas cadeiras de lona já algo amarelecida. Ele parece rondar os oitenta anos e ela segue-o de perto, setenta e cinco ou talvez até mais. A senhora pediu um Belini, ele uma Birra Moretti. Dão a impressão de estar casados há uma vida inteira e sem dúvida que o estão. Tomam as suas bebidas com aquele ar condescendente de quem que já não tem pressa de coisa nenhuma e que estão tranquilos em relação aos fantasmas do passado. Parecem ter toda a certeza de que tudo está bem assim. E está.
Entretanto a voz de Omara Portuondo fez-se ouvir de alguma coluna escondida entre os bem cuidados arbustos que rodeiam o jardim. Alguém pôs um disco a rodar. Lembrei-me do meu pai que, naquela altura da sua vida, de cada vez que ouvia esta musica cantada pelo Milanés dizia que a única mulher com quem um dia voltaria a casar seria com uma que se chamasse Olívia. Eu, dou por mim a pensar o mesmo: um dia se vier a ter outra mãe também terá de ser uma Olívia. Eternamente Olívia.
sexta-feira, 3 de maio de 2019
Contratenor
Gostava de conseguir olhar para este tipo de situações e seguir em frente com a leveza dos que ignoram. Em vez de indagar, varrer a minha breve inquietação para debaixo do tapete. Doravante vou tentar fazê-lo, mas não sem que antes emita um pequeno sopro: estes gajos são uns filhos da puta. Todos.
quinta-feira, 2 de maio de 2019
segunda-feira, 29 de abril de 2019
Ó cronistas do erotismo e do sexo à toa
Vós que vos julgais capazes de encontrar palavras para contar o êxtase, a loucura que há em descobrir a única pessoa no mundo com quem podereis apagar o planeta, riscar o universo para aí vos instalardes solitários, carne e alma fundidos, no lugar do tempo. Absorvei uma premissa essencial que este vosso pobre leitor vos oferece graciosamente. A intimidade não se conta nem se confessa, partilha-se. Podemos ser dois, três, mas nunca estar sozinhos. Sem ninguém com quem a confrontar não há senão um saber higiénico do nosso próprio corpo, um conhecimento dos nossos desejos, manchas e vestígios nas roupas. A intimidade de si próprio e a do outro passa pelo rebuscamento de línguas e pelas secreções do corpo, pelas bocas e a saliva, pela glande e a vulva, os lábios, os orifícios. Confronto dos desejos em tempo real. Sem a carne dos outros nada sabereis de vós. Condenais-vos a nunca vislumbrar o que significa a intimidade, nem para vós, nem para ninguém, o conhecimento dela passa através dos corpos, não das palavras. Ó cronistas do sexo, à toa.
quarta-feira, 24 de abril de 2019
Património
Parece que afinal ainda importa comemorar, com virtuosismo, a memória e a fidelidade, a resistência e a música como alternativas à mentira e à escuridão, percebendo-se que a liberdade nunca será o paraíso perdido em que, por vezes, já nestes tempos novos, nos querem fazer acreditar.
(Sim, ainda leio o Blitz. Se é a mesma coisa? Não, não é a mesma coisa.)
(Sim, ainda leio o Blitz. Se é a mesma coisa? Não, não é a mesma coisa.)
terça-feira, 23 de abril de 2019
O homem-livro
"Agora ajude-me a descarregar os livros, por favor - disse-lhe Kien sem mais preâmbulos, assombrado com a sua própria ousadia. Para evitar qualquer pergunta capciosa, tirou da sua própria cabeça uma pilha de livros e passou-a ao anão. Este recebeu-a destramente entre os seus compridos braços e exclamou: - Ena tantos! Onde quer que os ponha?"
__Elias Canetti in Auto-de-Fé
Acabou a reflexão, acabou o jejum, voltai ao pecado
Cantarolai, vesti os linhos, longas saias dançantes, blusas justas, cabelos soltos ao vento, corpo ofertado ao luar. Distribuí beijos, caricias ao acaso. Sabei que o amor é um fluido que circula de um ser para outro fazendo desvios, é generoso e perde-se no caminho, pousa sobre corações solitários e deixa neles a sua marca, antes de florescer naqueles que elegeu. Ó pecadores, voltai ao pecado.
quinta-feira, 18 de abril de 2019
Sexta-feira Santa
Naturalmente Deus é apenas uma ficção da imaginação humana. Mas também é, por ventura, a sua invenção mais galvanizadora. Uma crença sem a qual a humanidade se sentiria perdida. Uma ficção sem a qual tudo o que restaria seria uma espécie de trivialidade virtuosa, no máximo, ou, na pior das hipóteses, e muito mais provável, uma queda ainda mais miserável na fornalha da ganância desmedida, da vulgaridade e do egoísmo ainda menos esclarecido; ou seja, aquilo que se define por Inferno - outra invenção. Creio que uma geração humana em cada duas ou, pelo menos, os seus supremos sacerdotes, perceberam a necessidade da existência desta ficção. E acredito que o problema é que a humanidade não compreendeu isso. Ao matar Deus, destruí a criação mais impressionante, mais afirmativa e a mais imaginativa da espécie humana. Fez, se quisermos, uma lobotomia colectiva. E o pós-lobotomia tem sido uma era amorfa, carregada de estupidez e mesquinhez.
Deus nunca existiu, mas não havia necessidade de o matar.
Deus nunca existiu, mas não havia necessidade de o matar.
quarta-feira, 17 de abril de 2019
A paixão segundo Tétisq
O que existe é um momento de desprendimento durante o qual se aclara o horizonte com cores impensáveis; a isto segue-se uma sensação de euforia por finalmente nos termos libertado, o mundo parece novo, aberto, colorido, como se o víssemos pela primeira vez; depois, vem o inevitável período da dúvida, o desesperado e sombrio recuo do arrependimento; só mais tarde, depois de as emoções terem retrocedido, somos capazes de ver com equanimidade a aberração cromática onde estivemos metidos.
terça-feira, 16 de abril de 2019
Paixão
A exacta diferença entre paixão, digamos assim, e adoração não interessa grandemente. Não interessa saber se me sinto enfeitiçado ou deslumbrado. Escrever "mon amour" ou "amore mio" em vez de "caso amoroso" não passa apenas de uma forma afectada de expressão. O que interessa de facto é saber que "paixão" é apenas uma palavra que nos permite descrever todo o espectro de cores que vai desde o rosa chã ao azul celeste, passando pelo preto, naturalmente. Isso é que importa.
segunda-feira, 15 de abril de 2019
Guerra dos tronos
Maria João é uma mulher pálida e sem viço. Anémica e caseira, à imagem dos personagens de romances anglo-saxónicos. Está morta. Ninguém a matou e não nasceu morta. Foi morrendo aos poucos estupidamente, como morrem as flores baratas. Ela já não é nova, mas foi-o.
João Maria nasceu velho. Nunca está contente, nunca está aborrecido. É um homem alto, seco, louro que vive afogado na dúvida sacramental. Um homem à procura de asilo nos braços de uma mulher; um homem de anseios irracionais, atormentado por um síndrome característico da infância. Tenta a todo o custo fugir da história da sua própria história - uma solene e glacial farsa.
Embebidos nas suas infelicidades secretas, tem dias em que sentem um aperto no coração, uma vontade fina que lenta e insidiosamente se vai-se espalhando pelos seus peitos. Estão presos nas malhas da tristeza. Há um turbilhão de deboche no mar morto dos seus corações. Mas o prazer é perigoso. O dever sim, ainda é tranquilizador. Há um modo a observar em cada família, basta consulta-lo, ilustrar-se a seu respeito e seguir o sulco cavado pela história ancestral.
quarta-feira, 10 de abril de 2019
Buraco negro
Fizeram amor com uma intimidade física que nem um nem outro alguma vez havia experimentado. O corpo dela já não recusava o dele. Ele fechou os olhos e os seus olhos fechados viam-na a ela. Os músculos dela, pronunciados pela magreza, e a frescura e macieza quase inanimada da sua pele reclinaram-se sobre ele expondo os seus peitos ao toque. A entrada entre as suas pernas estava molhada e dilatada mas, ao mesmo tempo, estranhamente rígida; fazendo lembrar - contra a sua vontade - uma ferida, conferindo ao seu sexo uma tonalidade violenta apesar da suavidade com que tentava movimentar-se. Sentiu o seu cheiro. Sentiu a sua respiração trepar dificultosamente das entranhas. Perto do fim, ela estremeceu - lamentosamente, quase mortalmente e o seu estremecimento desencadeou o dele. Sentiram-se simultaneamente saciados e envergonhados.
terça-feira, 9 de abril de 2019
Cuna
Sim, era inebriante. Isto é o que, olhando para trás e de uma forma reconhecidamente prolixa, eu penso da grande cidade. A grande cidade tornou tudo possível para mim. Mas não me fez, não podia ter feito, esquecer outras coisas tais como quanto gosto do arroz de ervilhas de quebrar aqui, nesta minha terra natal, cozido o tempo suficiente para adquirir esta cor rica e esta textura solta. Vou levar para o Fiodor.
segunda-feira, 8 de abril de 2019
Omniscientes ou observadores, pouco importa
Não é possível narrar sem nos contradizermos. Vivemos presos do calculo e, por isso, contamos verdades enviesadas. Calculamos e erramos com semelhante frequência, porque com frequência esquecemos que os outros calculam como nós e que os seus cálculos não coincidem necessariamente com os nossos. Nem sequer os nossos cálculos sobre um mesmo assunto são coincidentes. Cada vez que escolhemos um rumo e não outro, deixamos para trás partes de nós mesmos, e cada vez que contamos construímos uma história parcial onde essas possibilidades que demos de lado não aparecem sem antes serem convenientemente modificadas. Anulamo-las ou diminuimo-las ou, se o que pretendemos é lamentar-nos, empolamo-las outorgando-lhes uma importância que não tiveram.
quinta-feira, 4 de abril de 2019
Não é o Facebook, não é o Instagram
O que está a matar os blogs é a fria lubricidade com que os bloggers se estão a despir.
Penitencio-me.
Penitencio-me.
quarta-feira, 3 de abril de 2019
Inanidade
o longo dos corredores, no acaso dos compartimentos, no espelho da casa de banho, nas portas entreabertas, distingo por vezes, e sempre fugazmente, aquilo que poderá ter sido a família que ali habitou. Ainda ontem à noite, enquanto me entretinha no restauro de umas poltronas velhas e que foram resgatadas a uma casa também ela muito antiga, dei por mim a imaginar as noites, quando apenas subsistia o ronco de uma borrasca ou o sibilar de um vento mau, sou remetido a um passado que não foi meu, quando a mesma borrasca ou o mesmo vento os encontrava todos juntos sentados nestas poltronas, em volta da lareira. O ruído familiar, o odor comum, o cinzento de um céu, as vozes a cochichar, as crianças que crescem, as saídas na manhã azul e os regressos na noite negra, o prado à janela, o odor quente dos pratos que aquecem em lume brando, a telefonia que graniza na indiferença de outras misérias, os anos que desfilam.
Penso em tudo isso, embora não seja um sentimento que me pese, não são feridas minhas que se reavivam, não é uma estranha melancolia, nem uma espécie de vácuo na alma. Não sinto dor ou tristeza, mas uma estranha lassidão imprecisa. Na verdade meço o tempo que decorreu. Contemplo vidas antigas como se séculos me separassem do instante presente. Fico-me pela vacuidade de tudo isso. Na inanidade de umas poltronas meticulosamente restauradas. Embora me custe a entender o ânimo leve de quem se livrou delas.
sábado, 30 de março de 2019
Palomar
O Senhor Impontual vive um raro momento de desapego. Ninguém se apaixona pelo Senhor Impontual, o Senhor Impontual não se apaixona por ninguém. Por isso deixa-se na sublime distanciação, estende um braço, pega num livro e foge para dentro da história. Ali e acolá, sem deprecar, desata uns nós, desatravanca os dédalos interiores, toma um gole de limoncello de Amalfi, sorri por tudo e por nada. O Senhor Impontual não consegue definir com rigor o seu estado de espírito, mas não renega uma certa aquiescência. Ou falta de tesão, vá lá.
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