quinta-feira, 30 de abril de 2020

Palomar

O Senhor Impontual, homem grisalho, observador treinado de oficio, de sobejo experimentado na avaliação de outras figuras, pensa à distância regulamentar: a postura, o modo de estar sentada, o rosto oblongo, os olhos biselados, os beiços húmidos de luxuria, os pés inquietos com calcanhares sobressaídos, as mãos vividas, dedos longos e arredondados nas pontas, as unhas pintadas a sangue-de-boi, o pescoço arrogante, a expressão estulta, o trejeito desdenhoso a vogar para distâncias infinitas, a deslizar por estradas já desaparecidas, mas fiel na lembrança; certamente uma evocação fabulosa e gigantesca, uma cadência longínqua. Já fora outra pessoa e, ao pensar nisso, a imagem devolvida agrada-lhe imensamente. Certas mágoas, por antigas, perderam a força de a atingir. A vida, apesar de tudo o que contém de inamistoso, nunca é importuna e ninguém vive o suficiente. Há um vago e insidioso erotismo no olhar. Um indefinível apelo a um prazer derradeiro, consentido.
 O Senhor Impontual, homem moderado e incapaz de uma desobediência, coagita com os seus botões que talvez pudesse ter sido um mau rapaz. Mas não.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Medo-20

No meio de toda esta convulsão sanitária e de todo um já mais que notório descalabro económico e social, não tardará a aparecer pelas mão de biólogos, químicos, físicos, médicos e cientistas a invenção de um medicamento capaz de disparar um míssil sobre o vírus. A verdade é que tanto se pode sofrer de não encontrar como de perder. Há pessoas que jamais conseguirão reencontrar o conforto, o amor, a beleza, o prazer, a fé, um ideal. Reencontrar o tempo em que viviam serenas. Apaziguar os corpos e tornar as almas mais leves. O medo, que começou por ser uma vantagem competiva, apresentar-se-à agora como a doença universal que corroi os viventes. Mas não antes da passagem pelo outro polo: a euforia do cão que esteve preso.

sábado, 25 de abril de 2020

Capitães d'Abril, Maio, Junho e de todos os outros meses

Que haja o céu descoberto, por vezes o odor salgado dos ventos marinhos, a claridade estonteante dos intermináveis dias de Primavera, a riqueza sombria da solidão consentida, a corajosa sensação da suficiência, o gozo da confusa liberdade, o raro prazer de conduzir os destinos - tudo o que, sem humilhação nem afronta, permita vencer os confrontos do dia-a-dia sem a impaciência aviltante de aguardar o incerto mês seguinte. 

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Guimarães Rosa


Eu estou só. O cão de pelo pardo está só. O mar está só. O sol está só. Mas não o só da solidão: o só da concomitância. Ou da solistência, como diria o escriba.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Diário da quarentena

Aprendi que todo o homem transporta na sua alma uma rua, um bairro, uma cidade, um mar, um rio, um jardim, uma árvore, uma montanha ou um planalto, uma mulher, um amigo, uma criança, uma procissão de infinitos desencontros. São as suas pátrias portáteis e intimas, os seus modestos e pequenos mundos azuis, no interior do outro grande Mundo azul onde se desenrola o drama da espécie vivente.
Aprendi, ainda, em frente a um espelho, que o mesmo aparelho que apara a barba também corta o cabelo. Descobri que aos dez cabelos brancos que já vinham do tempo da gripe espanhola se juntaram mais dez. São agora vinte. Sou hoje um homem grisalho.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Trecento

Estamos no meio de Abril. A natureza retoma o seu fôlego e sussurra. A cidade, o campo, o sol, o mar, a ondulação, as árvores, tudo ramalha e excita a pele dos vivos para que eles se deixem invadir pela aventura do tempo. O tempo vindouro, uma aposta, aquela que desculpará o tempo passado, o tempo parado, o tempo perdido ou o transformará. O ar recheado de partículas que penetram no nariz, nos ouvidos, os odores do rio e dos jardins, a natureza a exportar os seus indícios. E nós aqui, com os linhos guardados em cómodas bafientas, à espera de sabermos se o Mundo nos aceita de novo.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Amor em tempo de pandemia

Entre a palidez e o rubor dos seus rostos perpassa uma tímida procura e um atenuado desejo. Mas logo se beijam mais e com fúria. Ele mexe-lhe nos seios, acaricia-lhe as coxas macias. Deitam-se ao lado dos juncos na margem do rio. Dolente, vagarosa, ela tira as ligas, as meias, as cuecas; mostra-lhe o sexo, ele afaga-o, as pontas dos dedos tocam-no de mansinho, docemente percorre os pêlos espessos negros e abundantes que o confinamento criou: é atraído por uma inquietação nova e muito viva, beija-o, trémulo e feliz; ela suspira, um bulir suave, estremece, solta um grito rouco quando o pénis dele a penetra, sente-se rasgada por dentro, envolve-lhe os rins com as pernas, os movimentos de ambos aceleram-se, as respirações tornam-se opressas, gemem e gritam unânimes, cálidos e majestosos: a móvel felicidade. 
Depois, uma espessa bruma subiu do rio e inundou os ecrãs. Riram-se, cada um do seu lado.

domingo, 12 de abril de 2020

Vantagem competitiva

O que está a ser admirável nisto do confinamento é a capacidade de as pessoas se persuadirem, serem honestas consigo mesmas. E quando isso acontece, elas obtém uma vantagem - o medo. Uma vantagem táctica incomparável em qualquer insurreição. As mentiras que contamos as nós mesmos é que nos tornam inconscientes. As pequenas coisas é que nos assustam. As grandes coisas tornam-nos mais fortes. A ver vamos.
Parece que foram, para aí, detidos uma centena e tal de mentirosos.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Linha da frente

Alberto é um homem alto, seco, solene e nobre. Andará um pouco acima dos oitenta anos de idade. A arca do peito é convexa e ainda imponente. Está deitado na maca como uma estátua caída, marcado por uma remotissima serenidade. Um ser maiúsculo, se assim se pode dizer. Mas os olhos... os seus olhos revertem para outras paragens, os pensamentos mergulham no caudal do tempo e o tempo também tem compartimentos, e ele sabe que à medida que o tempo passou, as trevas foram-se acumulando em seu redor.
Diz para quem o acompanha no corredor do infortúnio:
-- Chegamos à linha da frente. Um de nós vai morrer. Mas não os dois. Também eu fiz sempre o que era necessário, nem sempre o que estava certo.

terça-feira, 7 de abril de 2020

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Saida precária

O vírus caiu sobre a cidade. Pousou os seus tentáculos e impõs o ditame da rareza. Como se porventura se tramasse uma indelicadeza no mundo, os citadinos caminham mais rígidos, ombros direitos, passo rectilíneos, carregam agora o peso de uma fatalidade impensável. As guitarras eléctricas calaram-se e deram lugar a Mozart e é agora a sua perfeição silenciosa e tensa que povoa as ruas. O vírus é uma névoa que emite um som abaixo do macadame. As horas invadiram a atmosfera para aí se desfiarem mais lentamente, espessam-se e pousam as suas volutas de segundos sobre as pedras frias da calçada. Gargantas secas. Gestos comedidos. Respirações contidas. Vive-se em poupança. Crânios abrasados, mãos suadas cobertas, amolentados os desejos, os pensamentos revestem-se de desinfectante e de sabonária rosa, cada qual segue como um ladrão à procura de uma nesga de terreno onde se refugiar na espera de uma nesga dois metros mais adiante. Há uma chapa absoluta que tampona o território, o vírus abre valas no asfalto. Quem não for rápido e expedito será estraçalhado.
Em casa, na televisão, o cenário é o mesmo. Mas deixem-se estar, que pelo menos tendes onde vos sentardes a uma distância de relativa segurança.

domingo, 5 de abril de 2020

Domingo de Ramos

Quando Jesus voltou a Jerusalém montado num burro, o que francamente não foi um acto de grande astúcia da sua parte.