domingo, 31 de maio de 2020

Palomar

A tarde vai cinza, quente e preguiçosa. Pela janela escancarada o Senhor Impontual vê telhados e telhados e, para lá deles, mesmo no limite, um manto de água chamado Atlântico. Pensa nas pessoas que passaram pela sua vida, mais um monólogo em voz alta do que outra coisa. Pensa nas pessoas e procura uma definição moral para cada uma delas. Sabe, o Senhor Impontual, que mesmo persistindo em nós próprios, mesmo dando um sentido individual à nossa vida, tornamo-nos pessoalmente responsáveis por muitos outros seres humanos que connosco se cruzam. E é isso: devemos persistir em dar um enredo individual, uma trama singular à nossa vida. Assim, delega-se nas ilusões a parte mais rica da nossa existência conferindo-lhe uma qualidade febril, inquietante, e uma considerável força de interrogação nos que tentam descortinar, no crepúsculo tardio, para lá do horizonte visual, a marca invisível que todo o homem traz em si, como um estigma que pertence ao destino. E que os destinos extraordinários são, por vezes, inseparáveis da ausência de destino.

1 comentário:

  1. Tanto o senhor Palomar, quanto o Sr. Impontual, são homens de grandes e sábios pensamentos, reflexões e introspecções...A última frase deste texto, é toda ela um tratado de sabedoria...

    Onde quer que esteja, desejo que esteja bem, I.



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