Mas seja como for, de manhã, o ar que se respira no alto desta falésia é tão revigorante, que nos leva a crer que, graças a ele, se ganha um suplemento de tempo. Dizem-me que à tarde, os reflexos no mar têm por vezes qualquer coisa de assombroso e quando os céus alaranjados se estendem sobre a baía, ao pôr- do-sol, quase dá vontade de chorar. Vou ficar para ver. Mas não estou para choros.
quinta-feira, 30 de maio de 2019
terça-feira, 28 de maio de 2019
Lolita
A rapariga da loja de conveniência onde me abasteço de manhã é uma rapariga de uma simplicidade absoluta. Não verdadeiramente bela. O rosto não chama particularmente a atenção. Mas, olhando de mais perto, damo-nos conta de que há qualquer coisa na sua silhueta, no seu modo de andar, no rubor das suas faces, no seu sorriso também, que é mais próprio da adolescência. A rapariga da loja de conveniência é uma mulher-menina. Tenho ocasião de observar as suas mãos longas: são finas e longas. Uma rapariga de mãos finas e longas. E manchas de rubor nas faces. Usa roupas informes e lenços intermináveis que lhe ficam bem na tez fresca e rosada. Os seus olhos brilham. No entanto não sinto desejo por ela. Já não desejo tudo o que vejo.
sexta-feira, 24 de maio de 2019
Abstencionismo
É certo que se tem vontade, necessidade, que o mundo seja branco ou negro, que os homens sejam inocentes ou culpados, santos ou escumalha. É uma cisão que dá segurança. Cada um tem o seu modo de vida, tem o seu papel. O cinzento, isso é que não é assunto nosso. O intermédio não se sabe bem onde se encontra. As fronteiras devem estar claramente estabelecidas, desenhadas. Consoante o lado onde cada um se encontra, assim se é capaz de dizer a que campo se pertence. Tem-se necessidade de coisas límpidas, e legíveis, e duras. No entanto, a mim, acontece-me acreditar que a realidade é mais contrastada. Aprendi que a luz e a sombra são indissociáveis. Aprendi que é preciso fazer escolhas na base da tridimensionalidade. Na sombra própria e na projectada. Apreendi a puxar-me as orelhas. Vou lá. Mas percebo quem não vá. Quem não queira ir. Quem não queira puxar as orelhas.
quarta-feira, 22 de maio de 2019
Desaparição
Chego à casa. Finalmente. Avanço no escuro. No escuro e no vazio. Não arrisco embater em nada, excepto nas paredes. Tudo parece mais vasto e os meus passos ressoam. Pelas janelas entram os reflexos azuis da lua. É o instante de maior desapossamento. Da inigualável solidão.
A casa já não é a casa, os quartos já não são os quartos, são apenas espaços intocáveis, sem ocupantes, sem vida, lugares desimpedidos. Esta desolação, este despojamento é verdadeiramente a ausência. É o que mais se parece com a ausência. É um território ao abandono, estéril. É o silencio apenas perturbado pelo ruído dos meus passos no soalho nu. Ando sem me dirigir a nada em particular. Ando na casa que já não é a casa, desamparado. Os meus olhos habituam-se ao escuro. Trago comigo o odor da desaparição.
Não sei o que fazer àquilo. Ou melhor, sei.
Não sei o que fazer àquilo. Ou melhor, sei.
terça-feira, 21 de maio de 2019
Melgaço
É a vida, diz-me Dona Célia enquanto me coloca o café sobre a mesa com os olhos fixos na CMTV acompanhando mais um daqueles casos.
Só que, aqui, os homens e as mulheres não se separam. São indissociáveis até à morte. Estão unidos perante Deus, não correm o risco de um perjúrio. E, depois, não descontam a felicidade como um retorno da sua união. Casam-se porque é assim, porque os mais velhos o fizeram antes deles, maquinalmente. Das mulheres, os homens esperam que cuidem bem da casa, que se ocupem dos filhos. Dos maridos, as mulheres esperam que tragam uma paga e que as acariciem quando não estão fatigados. A vida é tão simples quanto isto nestas terras. Não se é sofisticado. Posso testemunha-lo: não agi de outro modo. Estou casada à 30 anos.
segunda-feira, 20 de maio de 2019
Vulpes pilum mutat, non mores
Enquanto lhe digo as coisas, os seus olhos franzem-se ligeiramente. O resto da sua cara permanece absolutamente impassível. Ela tem a forma oval dos vasos sagrados. Esta impassibilidade é para significar que não tem nada a acrescentar, que o que acaba de ser enunciado não tem nenhuma necessidade de ser confirmado. Esquadrinho a estranha imobilidade dos seus traços, a cera da sua máscara. Impressiona-me tanto auto-domínio, tanta discrição. Manteve as mãos entrelaçadas sobre os joelhos cruzados, exibindo uma elegância que já não se usa. Encoraja-me com a sua simples presença muda, mas não tenho mais nada para lhe dizer.
sábado, 18 de maio de 2019
Mestrado em marketing e estratégia
Na Finlândia um deputado e candidato às eleições legislativas daquele país fez toda a sua campanha no Pornhub. O Pornhub é um site de cunho pornográfico com mais de cem milhões de visitas diárias.
"Temos de estar onde as pessoas estão", justificou o candidato.
quinta-feira, 16 de maio de 2019
Layer vectorial
Está fora de dúvida de que apenas gosto da periferia, das fronteiras, das orlas, dos contornos. Desconfio dos centros, das evidências.
terça-feira, 14 de maio de 2019
Azad
No local onde me encontro os paquistaneses têm umas mercearias onde gravita todo o tipo de gente à procura do improvável. Os paquistaneses são gente fleumática. Não consigo entender se a sua fleuma advém da indiferença na qual foram acantonados e à qual parecem acomodar-se. Ou serão eles, muito simplesmente, gente que não procura as histórias das outras gentes, decididos que estão em não exprimir nenhuma opinião para não afastar ninguém? Fundem-se na paisagem até se tornarem um elemento dessa paisagem, apenas um pouco mais exótica do que o resto do cenário. Usam turbante, mas a sua fisionomia castanha é impassível e pacifica. Os seus modos são elegantes e lentos. A sua falta de afecto funciona nos outros como um bálsamo de relaxamento.
Azad não é visivelmente o género de pessoa para se lançar em grandes dissertações, nem para formular extensas teorias. Guarda as suas reflexões para si próprio, jamais desejaria embaraçar alguém. Aprecio este tipo de discrição, que é a verdadeira elegância. Sou tocado por esta moderação, este pudor, que são de um homem honesto. Contenta-se em perguntar-me como tomo o meu chá. Voltamos ao silêncio. O chá arrefece na minha chávena. Azad tem movimentos lentos, seguros, delicados. Não se desgasta inutilmente. Quando acabo de tomar o meu chá, pronuncia algumas palavras a propósito do tempo, da chuva, da morrinha. Conta-me que nunca se habituou ao chuviscar permanente. Que lhe falta o sol do Paquistão. Interrogo-o para saber quando deixou o seu país. Informa-me que nasceu em Londres, que nunca pisou solo da terra natal dos seus pais, que sente a falta do que não conheceu, dessa pertença que lhe foi negada, que lhe é impossível reivindicar. Diz que é um puro produto da Inglaterra. Dí-lo sem acrimónia, mas com verdadeira tristeza. Diz que é um exilado no seu próprio país.
quinta-feira, 9 de maio de 2019
Da noite em que me deitei com Anaïs Nin e acordei com a Hilda Hilst
Perturbado, incerto, inquiridor não cessei de respirar, de tirar proveito de uma presença fulgurante, de um corpo que se movia a meu lado mas que insistia que o dia impediria a continuidade do êxtase, porque tudo o que se move, tudo o que flui, tudo o que passa sufoca-nos e enche-nos de angustia.
Adormeci atolado na ideia de que não há maior erro possível do que acreditar que uma ausência é um vazio. A diferença entre os dois sentimentos é uma questão de tempo (sobre o qual eles não podem fazer nada). O vazio está antes, a ausência está depois. De vez em quando é fácil confundir os dois. Há-de ser daí que emergem alguns dos nossos desgostos.
- Ama-me na exiguidade, é tempo ainda. Ouvi, estremunhado, de uma voz vinda do lado de fora.
Adormeci atolado na ideia de que não há maior erro possível do que acreditar que uma ausência é um vazio. A diferença entre os dois sentimentos é uma questão de tempo (sobre o qual eles não podem fazer nada). O vazio está antes, a ausência está depois. De vez em quando é fácil confundir os dois. Há-de ser daí que emergem alguns dos nossos desgostos.
- Ama-me na exiguidade, é tempo ainda. Ouvi, estremunhado, de uma voz vinda do lado de fora.
terça-feira, 7 de maio de 2019
Palomar
O Senhor Impontual não sabe ao certo quais a razões para tal, mas quando se encontra longe de casa torna-se um homem bastante mais introspectivo, um homem que se intriga com as pessoas e com o mundo. O Senhor Impontual também não tem a certeza se o intrigam mais as pessoas do mundo ou o mundo das pessoas. O que é certo é que o Senhor Impontual, e o seu eu flutuante, está imerso num mundo desincorporado e chegado a este grau de amadurecimento sente o desejo de agradar a si mesmo, prelúdio ao prazer, mergulhar em si próprio, rodeado por uma música interior, construir um abrigo e às vezes elevar-se para observar de longe. O Senhor Impontual sente mesmo gosto em frequentar esse universo alargado de pessoa só, sem se atolar em delírios de desgaste lento, mas não deixa de se questionar: pode alguém ser quem não é?
domingo, 5 de maio de 2019
Olívia
O local onde me encontro neste momento está quase deserto. Uma senhora e um cavalheiro, seguramente italianos do norte, estão a desfrutar do magnifico fim de tarde sentados em duas cadeiras de lona já algo amarelecida. Ele parece rondar os oitenta anos e ela segue-o de perto, setenta e cinco ou talvez até mais. A senhora pediu um Belini, ele uma Birra Moretti. Dão a impressão de estar casados há uma vida inteira e sem dúvida que o estão. Tomam as suas bebidas com aquele ar condescendente de quem que já não tem pressa de coisa nenhuma e que estão tranquilos em relação aos fantasmas do passado. Parecem ter toda a certeza de que tudo está bem assim. E está.
Entretanto a voz de Omara Portuondo fez-se ouvir de alguma coluna escondida entre os bem cuidados arbustos que rodeiam o jardim. Alguém pôs um disco a rodar. Lembrei-me do meu pai que, naquela altura da sua vida, de cada vez que ouvia esta musica cantada pelo Milanés dizia que a única mulher com quem um dia voltaria a casar seria com uma que se chamasse Olívia. Eu, dou por mim a pensar o mesmo: um dia se vier a ter outra mãe também terá de ser uma Olívia. Eternamente Olívia.
sexta-feira, 3 de maio de 2019
Contratenor
Gostava de conseguir olhar para este tipo de situações e seguir em frente com a leveza dos que ignoram. Em vez de indagar, varrer a minha breve inquietação para debaixo do tapete. Doravante vou tentar fazê-lo, mas não sem que antes emita um pequeno sopro: estes gajos são uns filhos da puta. Todos.
quinta-feira, 2 de maio de 2019
segunda-feira, 29 de abril de 2019
Ó cronistas do erotismo e do sexo à toa
Vós que vos julgais capazes de encontrar palavras para contar o êxtase, a loucura que há em descobrir a única pessoa no mundo com quem podereis apagar o planeta, riscar o universo para aí vos instalardes solitários, carne e alma fundidos, no lugar do tempo. Absorvei uma premissa essencial que este vosso pobre leitor vos oferece graciosamente. A intimidade não se conta nem se confessa, partilha-se. Podemos ser dois, três, mas nunca estar sozinhos. Sem ninguém com quem a confrontar não há senão um saber higiénico do nosso próprio corpo, um conhecimento dos nossos desejos, manchas e vestígios nas roupas. A intimidade de si próprio e a do outro passa pelo rebuscamento de línguas e pelas secreções do corpo, pelas bocas e a saliva, pela glande e a vulva, os lábios, os orifícios. Confronto dos desejos em tempo real. Sem a carne dos outros nada sabereis de vós. Condenais-vos a nunca vislumbrar o que significa a intimidade, nem para vós, nem para ninguém, o conhecimento dela passa através dos corpos, não das palavras. Ó cronistas do sexo, à toa.
quarta-feira, 24 de abril de 2019
Património
Parece que afinal ainda importa comemorar, com virtuosismo, a memória e a fidelidade, a resistência e a música como alternativas à mentira e à escuridão, percebendo-se que a liberdade nunca será o paraíso perdido em que, por vezes, já nestes tempos novos, nos querem fazer acreditar.
(Sim, ainda leio o Blitz. Se é a mesma coisa? Não, não é a mesma coisa.)
(Sim, ainda leio o Blitz. Se é a mesma coisa? Não, não é a mesma coisa.)
terça-feira, 23 de abril de 2019
O homem-livro
"Agora ajude-me a descarregar os livros, por favor - disse-lhe Kien sem mais preâmbulos, assombrado com a sua própria ousadia. Para evitar qualquer pergunta capciosa, tirou da sua própria cabeça uma pilha de livros e passou-a ao anão. Este recebeu-a destramente entre os seus compridos braços e exclamou: - Ena tantos! Onde quer que os ponha?"
__Elias Canetti in Auto-de-Fé
Acabou a reflexão, acabou o jejum, voltai ao pecado
Cantarolai, vesti os linhos, longas saias dançantes, blusas justas, cabelos soltos ao vento, corpo ofertado ao luar. Distribuí beijos, caricias ao acaso. Sabei que o amor é um fluido que circula de um ser para outro fazendo desvios, é generoso e perde-se no caminho, pousa sobre corações solitários e deixa neles a sua marca, antes de florescer naqueles que elegeu. Ó pecadores, voltai ao pecado.
quinta-feira, 18 de abril de 2019
Sexta-feira Santa
Naturalmente Deus é apenas uma ficção da imaginação humana. Mas também é, por ventura, a sua invenção mais galvanizadora. Uma crença sem a qual a humanidade se sentiria perdida. Uma ficção sem a qual tudo o que restaria seria uma espécie de trivialidade virtuosa, no máximo, ou, na pior das hipóteses, e muito mais provável, uma queda ainda mais miserável na fornalha da ganância desmedida, da vulgaridade e do egoísmo ainda menos esclarecido; ou seja, aquilo que se define por Inferno - outra invenção. Creio que uma geração humana em cada duas ou, pelo menos, os seus supremos sacerdotes, perceberam a necessidade da existência desta ficção. E acredito que o problema é que a humanidade não compreendeu isso. Ao matar Deus, destruí a criação mais impressionante, mais afirmativa e a mais imaginativa da espécie humana. Fez, se quisermos, uma lobotomia colectiva. E o pós-lobotomia tem sido uma era amorfa, carregada de estupidez e mesquinhez.
Deus nunca existiu, mas não havia necessidade de o matar.
Deus nunca existiu, mas não havia necessidade de o matar.
quarta-feira, 17 de abril de 2019
A paixão segundo Tétisq
O que existe é um momento de desprendimento durante o qual se aclara o horizonte com cores impensáveis; a isto segue-se uma sensação de euforia por finalmente nos termos libertado, o mundo parece novo, aberto, colorido, como se o víssemos pela primeira vez; depois, vem o inevitável período da dúvida, o desesperado e sombrio recuo do arrependimento; só mais tarde, depois de as emoções terem retrocedido, somos capazes de ver com equanimidade a aberração cromática onde estivemos metidos.
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