quarta-feira, 31 de julho de 2019

Cesariny

Devo ter um mar próprio e olhos cintilantes.
Devo saber de cor o ceptro e a espada.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Terminal

Chegou no comboio das 13:38. Eram apenas meia-dúzia de pessoas na sua carruagem. Não foi incomodado durante a viagem. Não leu nenhum livro nem jornal, limitou-se a encostar a testa de lado no vidro húmido, viu a paisagem desfilar sem lhe prestar grande atenção e os leves pingos de chuva a baterem contra o reflexo da sua cara. O matraquear metálico das rodas ao longo dos carris não o perturbou; passado pouco tempo deixou mesmo de o ouvir. Desceu na estação terminal. Sabia que não iria mais longe, que tinha chegado, que era o fim da viagem. Olhou o relógio. O comboio não se tinha atrasado. Não chegou adiantado. Atravessou a gare sem se cruzar com ninguém. Ninguém o viera esperar. Levantou o colarinho, acendeu um cigarro e avançou em direcção à rua. Não tinha nenhuma mala com ele. A morrinha depositava pequenas gotículas nos seus cabelos grisalhos, o vento ligeiro soerguia por momentos a orla da sua gabardina fluída. O mundo resumia-se a ele. Novamente. Nunca foi perfeito, nunca andou direito na linha que Deus fez.

Obrigado, meu Caro. Pela música, pela opinião independente, pela carolice.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Palomar

Não sei se convosco também acontece? Com o Senhor Impontual acontece amiúde ficar pasmado diante das montanhas, dos oceanos, dos sóis, dos céus, das estrelas, impressionado pelo que está fora do seu alcance, pelo que as nossas mãos não saberiam fabricar, pelo que o nossos espíritos seriam incapazes de conceber. Mas não se espera nada diante das mulheres bonitas. Nada que não sejam sentimentos vulgares. E depois, um dia, há uma que aparece para o qual não estamos preparados, e eis que os joelhos se dobram. Não se sabe dizer porquê. Não se encontram palavras. O que nada tem de religioso. Não se está em adoração. É qualquer coisa que tem a ver com a graça, com a magia. Subitamente cai-se no deslumbramento. Está-se um passo atrás, ou um furo abaixo. É-se mantido à distancia. O sentimento que se experimenta não é necessariamente o desejo. Mas uma outra coisa. Uma espécie de reserva.

O Senhor Impontual quer acreditar que se trata de um leve e passageiro momento de afronesia. Não sei se convosco também acontece?

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Sessão da Meia-Noite

 "Nostalgia" - Andrei Tarkovsky, 1983

(com a Maria Eu)

terça-feira, 23 de julho de 2019

Consubstanciação

Quer tranquilizar-se e não se tranquiliza. Vê espaços vazios por toda a parte e não sabe como preenche-los. Busca desesperadamente a sua espiritualidade e a única coisa que encontra é um vulgar apego à vida de merda. Isso ainda a aflige mais do que o próprio vazio. Sente que não foi aquilo que queria ser e que não fez as coisas que sonhava. Agora depara-se com a realidade de ser demasiado tarde para tudo. Não quer dizer que tivesse feito as coisas de maneira diferente, no entanto, não sabe como teria sido a sua vida aos vinte e cinco anos se alguém a tivesse avisado que aos quarenta e cinco estaria vazia. Agora tudo se reduz à escassa consciência que tem da sua vulnerabilidade e à ridícula suposição de que tinha o tempo, de que poderia ser imortal.

Cuba Libre

Tinha o rosto carregado de estuque, muito mal pintado e muito pintado. Os lábios engelhados e a boca murcha, circunflexa. Nas comissuras atulhavam-se camadas sobrepostas de base. Cabelo preto, farto, armado, sobrancelhas desenhadas dificultosamente a lápis. Os lóbulos das orelhas pendentes; os orifícios tornaram-se, com o girar dos anos, em fendas enormes. As mãos pergaminhos veiudos; documentos antiquíssimos. Mas existia, embora submerso, o toque de uma beleza remota, de uma harmonia moribunda, no corpo, no porte, nos traços de mulher que exerce a profissão de prostituta desde que se conhece. Quis que eu lhe oferecesse uma Cuba Libre. Senti uma certa melancolia.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Ressalga

Ao abrir a janela pela manhã, espalhou-se por toda a casa a epidemia do odor intenso à maresia. Depois, à tarde, com a chegada do sol o ar foi ficando um pouco mais limpo. Ao cair da noite, o aroma salgado foi-se introduzindo de novo em todos os interstícios da casa, encheu a cozinha, corredores, alcovas e armários, penetrou na intimidade das arcas e baús, impregnou a roupa e as cortinas, ficou agarrado às paredes e também penetrou na alma das pessoas através dos sete ou oito orifícios que o corpo tem, até se apoderar por completo da sua vontade. E a sua vontade, já se sabe, é o amor. Embora, por vezes, o hipotálamo não dê a ordem em tempo útil.

Tour

@Robert Doisneau

terça-feira, 16 de julho de 2019

Whitman


Celebro-me e canto-me a mim mesmo.
E o que eu assumir tu também haverás de assumir,
pois cada átomo meu é igualmente teu.
Ando à sorte e convido a minha (e a tua) alma a andar também.

sábado, 6 de julho de 2019

Afrontamentos

Há lugares no mundo onde uma certa classe de vento, por vezes muito selvagem, constitui uma atenuante e até uma absolvição para qualquer crime que seja cometido enquanto ele sopra. Quero crer que esta parrilhada de mar que acabo de manducar em quantidade vergonhosa não me há-de fazer mal nenhum. Já em tempos o meltemi enlouquecia os gregos clássicos. Esse vento do norte que varria o mar Egeu deixando as suas ilhas polidas como ossos e ninguém sabe se se deve à sua influência que os filósofos e poetas tivessem aquelas mentes tão pecaminosas.

Logo mais, espero apanhar uma barrigada de Bacurau. E, quiçá, estrearei a imaculada camisa de linho que trouxe de Treviso, na noite branca.
Não posso é comer mais nada.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Tax Free

A rapariga da loja de perfumes, talvez devido à minha insistência em manter o frasco bem perto do nariz, aproximou-se com um sorriso e disse: não se deixe levar pelas notas de entrada, são voláteis, fugidias, são fortes e alegres pois querem conquista-lo. Isto dos perfumes é como no amor, primeiro tem de se entranhar no nosso corpo e ali ficar, deixando-nos alvoroçados, aumentando a corrente sanguínea e o calor do corpo de modo que a nossa transpiração tenha a fragrância essencial. Essas são as notas médias ou do coração. Depois vem as notas de base, que são as mais importantes, pois são aquelas que se sentem quando alguém nos abraça.
Por isso este aroma do anis que tem agora no seu nariz, depois, logo mais, quando abraçar a sua amada, será uma inebriante fragrância almiscarada à mistura com couro e madeira.
- Mas eu não vou para casa. Estou exactamente no sentido contrário. Atirei.
- Não faz mal. O frasco é de 100 ml. L'amore non muore mai.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Palomar

Treviso, nove horas da manhã, trinta e três graus centígrados. 
Não é todos os dias que se ouve senhoras, lindas, na casa dos 50 anos de idade, dizer umas para as outras: "mi sento caldo oggi"!
O Senhor Impontual, homem discreto, alinha o seu olhar no horizonte urbano e caminha sorridente sobre a escaldante calçada da Piazza dei Signori, ali e acolá aproveita uns salpicos da água que cai dos fontanários e interroga-se como é que ainda há quem ouse dizer mal do aquecimento global. Isto há malta que nunca está contente.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Coetzee, invertido

Primeiro o pensamento, depois o crânio: as duas partes mais duras do meu corpo.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Osvaldo

Do amor, almeja apenas os golpes, as contorções dos corpos, o prazer carnal que esquece logo que é saciado, as traições, as águas turvas e densas onde nada como um peixe ágil que produz bolhas de felicidade. Tudo o que mantém a distância e impede a reunião dá-lhe ardor, apetite. Os elogios, as palavras doces, as atenções, a ternura que jorra dum coração para outro, provocam-lhe uma repugnância petrificante. 

sábado, 22 de junho de 2019

Solstício

©Jacques Henri Lartigue

(...)
uma fornalha, uma cavidade sofrendo dores até à cisão;
um vazio,
uma mulher, à espera de ser cheia
a luminosidade dos elementos, 
a corrente que avança! 
(...)

__William Carlos Williams,  Alguns rastos de "Paterson".

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Bernhard

... no fundo quero estar sempre onde não estou, exactamente de onde acabo de zarpar.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Cinéreo

Tudo nele é cinzento: o fato, a armação dos óculos, os olhos, os cabelos, a gravata, os sapatos. Por mais que me esforce não lhe noto o mínimo vestígio de uma outra cor qualquer. Fala e eu escuto. Nunca faz uma pausa de controlo para perceber se aquilo que está a dizer me apaixona de algum modo; está habituado a ser escutado. Não anda, pavoneia-se, não se senta, sobe ao trono, não telefona, a sua secretária marca os números por ele. 
Demora-se entre duas garfadas de comida requintada que saboreia com o ar contido do conhecedor exigente que reflecte sempre antes de se abandonar ao prazer das coisas. Deixa cair palavras, pomposo e lento. Sujeito, verbo, complemento directo, e uma série de subordinadas eloquentes. Ignora-me e continua a pontificar, limpando a comissura dos cantos dos lábios com o guardanapo de pano branco que, em seguida, coloca sobre a barriga arredondada. Estende o copo e faz o vinho rolar devagar na boca e atira: "aceita pegar no projecto nestas condições?"
Lancei-lhe um multicolorido "tenho de pensar". Certo de que hoje ele não ia aguentar o rotundo "não", cinzento como chumbo, que tenho para lhe deixar amanhã à mesma hora sobre a mesma mesa de pé de galo estilo inglês. Espero que não se coma pior.

sábado, 15 de junho de 2019

Contra-luz


Fatigado por uma semana inteira, sentir perfeitamente que esta informação de que poderá chover me proporciona uma onda de prazer, não deixando de ser embaraçosa, mas ainda assim deixar-me levar totalmente por essa emoção ambivalente. À minha volta a paisagem começa a desaparecer num crepúsculo precoce. Mordiscado pela sombra cinza suspensa num céu prestes a apagar-se na noite que chega inquieta e cuja negrura é a própria expressão das expectativas, dou comigo a pensar que ainda há quem saiba alumiar os outros enquanto outros não possuem, nesse particular, qualquer talento especial, e que isso também faz parte das coisas ocultas que ainda não sabia que sabia.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

1888-2019

Cento e trinta anos depois, "sentir continua a ser uma maçada."

Santo António Pequenino

Diz-me, sem hesitar, que o casamento é a forma mais difícil de se viver com outra pessoa. Faz desaparecer os enigmas da relação, junta aquilo que talvez nunca devesse juntar, compartilha coisas que não deveriam ser compartilhadas, vai emudecendo subtilmente os cônjuges porque as palavras vão perdendo o seu antigo brilho, o que anteriormente parecia uma ideia original acaba por parecer uma ideia mil vezes repetida, mais que sabida, velha, com o passar dos anos as pessoas começam a não se ver e já não se aborrecem, mas também não provocam fúrias entre si, nem paixões, nem há motivos para reconciliações. Já não há despedidas do lado de fora da porta, nem partidas de madrugada, nem beijos furtivos nas escadas. Deixa de haver ruas por onde se deambula à noite, a sonhar. Do casamento em diante os beijos tornam-se cada vez mais conhecidos e menos húmidos e aquilo que vem depois da noite é mais do mesmo do dia de ontem, acaba o amor louco, romântico, mágico e começa a rotina do papel higiénico e do pagamento das contas e faz-se sexo a pensar no que se há-de comprar para o almoço do dia seguinte porque o marido tem o colesterol alto e não come isto e aquilo... 
Senti uma espécie de pânico. Borges é que tinha tinha razão. "O casamento é um destino demasiado pobre para uma mulher".