segunda-feira, 6 de março de 2017

Salvador Sobral



Nunca fui muito de festivais da canção. Confesso que não vi nada de nada. Não conheço as outras canções que lá foram a concurso. E confesso ainda que só ouvi a canção na viagem matinal que fiz pela rede. Parei, escutei e senti um leve tremor... palavras melodiosas dardejando tranquilamente sobre a superfície das águas profundas do meu oceano pacifico. Estou varado. Não me reconheço. Confesso.
Parabéns Salvador, parabéns Luísa.

sábado, 4 de março de 2017

De Torga a Calvino, num ápice

Que interessa? Se a vida é isto o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre este areal coberto de um sol manso e tépido, um manto ondulado de água azul resplandecente, de onde esvoaça uma gaivota solitária, e mais dois seres — eu e o cão de pêlo pardo — silenciosos, escancarados, pasmados, a olhar e a ouvir o arrulhar das ondas. A vida hoje é isto. Amanhã será outra coisa qualquer, igualmente inexaurível.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Andorinhas de beiral


Antes de mais nada, o que há a fazer é passear em nós. É passear, olhar e cheirar. Depois, sim, discutiremos e alinharemos o resto das nossas primaveras. Depois.

Ruy de Carvalho

 

"As pessoas deviam  reivindicar mais cultura. A cultura é tão importante como a economia, ou mais. Uma pessoa culta não acarneira. Nao é acarneirado. E isso é um dos princípios da democracia: não ser carneiro. "

  • Na Grande Entrevista da RTP3

quarta-feira, 1 de março de 2017

Quarta-Feira de Cinzas

Acendeu outro cigarro do maço de tabaco americano, chupou profundamente, expeliu o fumo, olhou fixamente e disse: - quando vamos foder?
Deu outra passa no cigarro e ficou a olhar com os seus intensos olhos a brilhar, um levíssimo sorriso eufórico nos lábios carnudos, o mesmo sorriso da jogadora que aposta tudo e mostra três ases quando apenas se esperava um par de cincos, um ligeiro tremor instala-se-lhe no queixo como se estivesse a degustar um naco de carne suculento e delicioso. Estava feliz por falar e ter quem a ouvisse em silêncio.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Vórtice


Cá dentro, amparo e calor. Uma luz suave. Silêncio. Sob a chaminé, uma pequena lareira. Esperança. Ponto zero. A imensidão do tempo. O dia que se prolonga como se não fosse ter fim.
Lá fora, um frio imaculado. Cortante. Uma brancura azul, um sol forte e uma paisagem de montanha. Picos perigosos e selvagens a recordar uma terra sem homem. Uma imagem turva, uma respiração, um batimento cardíaco, um grito. E depois, repentinamente, a partida. Aceleração vertiginosa, dias, semanas, meses, confusão, imprecisões, impontualidades, vivências, pensamentos, experiências, mais e mais depressa, corrida, redemoinho.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Nas margens do Lago Tanganica

Entretanto entre nós há anões e gigantes, imberbes e com bigode, pobres e ricos, taciturnos e barulhentos, nobres e vulgares, abnegados e preguiçosos, comuns e providas de peitos rijos como pêras, gorduchas de pele fria, diferentes e idênticos. Aprendemos que para combater a apatia e a preguiça é necessário viver com o prurido da ordem, da exactidão, da coerência, da harmonia e de um grande sentido de comunidade. Aprendemos que a riqueza não existe a não ser por comparação com a pobreza, que a beleza casa bem com a fealdade e que, na sua ambição pelas alturas, o abnegado necessita da admiração do preguiçoso. Aprendemos a complementar-nos. Aprendemos que o aborrecimento do rotineiro não tem nada a ver com o aborrecimento do que não tem absolutamente nada para fazer. E que, sim, isto afinal pode perfeitamente ser só blogs. E que o Lago Tanganica continua a ser o que se vê daquela janela.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Sete centimetros


Não sabia se era do seu cabelo arruivascado, das sardas ligeiras pelo rosto, do sorriso lento, demorado, que lhe repuxava os lábios carnudos ou se da saia justa - sete centimetros por cima do joelho -, com aquela racha atrás que deixava à vista o perfil das duas pernas até uma altura considerável, ou simplesmente a maneira de olhar quando virava a cabeça.
O que parecia uma mera troca de confidências, transformou-se num ponto de ebulição carnal que o cercava gradualmente. Devia quere-la mais do que costumava querer qualquer mulher, porque naquela tarde, já ao cair da noite, até tremia. Estava tão pouco habituado à ternura não instituída que não sabia como aproximar-se dela, não sabia como tinha de lhe fazer cair a roupa. Em seu redor, retido, um silêncio ambíguo, estranho, solidário.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

"Quinta-Feira"

Não li. Não gostei. Não recomendo.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Eu não gosto de falar sobre coisas das quais pouco ou nada sei

Por isso às vezes deixo-me a remoer, mas a minha questão é: não foi este mesmo mundo que alegou que ampliar e difundir massivamente a fotografia de uma criança refugiada morta na praia era a estaca zero da condição humana e que abaixo daquilo já não havia mais nada, que agora aplaude de pé a fotografia vencedora do World Press Photo deste ano, onde o corpo de um embaixador russo jaz aos pés do terrorista que acabara de o assassinar barbaramente à queima roupa enquanto este discursava em directo para as televisões? Até o erro de casting parece ser o mesmo: um dever para despertar a consciência social.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

A costureira triste

Um fim de tarde de um tédio absolutamente inconcebível, longe de tudo, incluindo de si mesma, a costureira triste lança as agulhas finas e afiadas num vai e vem enrolado, repetido e certeiro sobre o chifon dourado que há-de ser uma saia de godê simples, uma e outra vez.
Por estes dias, tudo em seu redor se encontra tão imóvel e silencioso que a enrola e adormece. O som da bernina é uma estranha canção de embalar, uma cadência tão melodiosa e tão profunda que parece saída das profundezas do mar. Apenas ouve o coração no exercício da sua única tarefa: bombear o sangue. Parece que a vontade ainda não venceu o frio. E que pode fazer se nada a chama? Se as coisas, alegadamente agradáveis, se atenuam como uma vela que vai ficando sem oxigénio. Uma chama que se inclina diante de uma sombra tridimensional composta por pouco de nada. Essa pequena chama restante, é a vaga sensação que ainda a vai fazendo crer na inevitabilidade do regresso, do reencontro. Mas, por quanto tempo? 

Ao sol nascente

Zanele Muholi

Incansável velho louco, Sol atrevido,
Porque vens tu assim
Visitar-nos, através das janelas por entre cortinas?
Devem as estações dos amantes obedecer a teus movimentos?
Miserável descarado e pedante, vai repreender
estudantes atrasados e aprendizes azedos
Vai dizer aos monteiros que o rei sai a cavalo,
Chama as formigas rústicas para as colheitas.
Ao amor tudo é igual, não conhece estação, nem clima
Nem horas, dias ou meses, que são os farrapos do tempo.

__John Done, Ao sol Nascente - Assírio & Alvim

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Valentinos

Nunca percebi muito bem, se as pessoas que transformam o 14 de Fevereiro numa data especial oferecendo bombons, peluches, perfumes e cuecas aos seus companheiros, o fazem por convicção ou se são românticos de pacotilha com graves problemas de consciência?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Estólidos

"De que te queixas, alma abandonada? Por que razão esse voo agitado em torno da casa da vida? Porque não olhas os longes que te pertencem em vez de lutar contra o que é alheio? Mais vale o pombo vivo no telhado que o pardal semi-morto que, na mão, se debate, crispado de terror.

__Franz Kafka, Antologia de páginas intimas.

Graciela Iturbide

Nem as aves nem os animais são fieis, nem correm o risco de ouvir reprimendas ou sofrerem sanções quando dormem com outros. O sol, a lua e as estrelas projectam a sua luz onde desejam, os navios não são aparelhos para permanecerem nos portos, nem as casas construídas para permanecerem trancadas. As metáforas sucedem-se em cadeia, tocando as suas buzinas como veículos todo-o-terreno num engarrafamento do centro da cidade. Um homem a queixar-se das limitações da fidelidade é uma figura tão inepta!
Quem diz um homem diz uma mulher.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Asilo


Vim para o Principado, porque já me chega a República roubar-me a liberdade durante o resto da semana.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Anastassiya Petrov

Jamais falta à visita privada que ele solicita mensalmente. Como sempre, permite que ele, por trás, se derrame dentro de si com urgência cerrada. A ela o orgasmo só lhe vem mais tarde, quando à saída o pesado bater de cada uma das portas gradeadas ressoa em homenagem à sua dupla liberdade.

Entretanto surgiu a emenda.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Costa e Silva

É um demónio pequeno, de categoria inferior, com uma grande barriga e um rosto redondo e petulante. A maior parte do dia, esconde-se pelos cantos do seu gabinete, por vezes sentado em cima da sua trouxa, outras vezes coçando as orelhas grandes e afiladas ou metendo os dedos pequenos e grossos no nariz, mas está sempre a observar, sempre alerta. Mais de que qualquer outra coisa, aprecia aqueles erros em que nem os operacionais nem os revisores reparam e que sobrevivem no novo plano sem serem corrigidos, mas lapsos tão significativos são bem-vindos porque dificultam a obra dos homens de Deus. Ao fim da tarde, quando a luz se atenua, recolhe cuidadosamente todos os erros na sua mala e arrasta-os até ao Inferno, para aí os apresentar ao Diabo, de modo a que cada pecado possa ser registado num livro - ao lado do nome do errante responsável - para ser lido em voz alta no dia do julgamento final.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Cortinas

De copo na mão, escondido atrás da cortina com a barba por fazer, supõe-se sempre o pior. Entra-se num inferno do qual não se poderá sair sem arranhões. O wiskey que sabe a chuva. O filme continua a rodar: os amantes bebem o molho proibido, amam-se sobre a carpete, sob o chuveiro, no carro, três quarteirões antes de chegar a casa. Fecha-se a cortina. Finge-se adormecido. À dor da consciência soma-se a mágoa incontrolável de não ter imaginação. Tempo ao tempo, é o que lhe sobra. Em cima da cama uma maçã: "atentamente, a cobra".

Dulce Maria Cardoso


“A minha solidão? Alguém viveu o mesmo que eu”.

O Retorno -  Edição Tinta da China 2011, seleccionado para o European Literature Night 2017.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Arestas

Quem és tu? - perguntou ele.
Quem sou eu? - Ela riu, passou as mãos pelos cabelos. Tinha um rosto arguto.
- Há quem diga que sou uma mulher perversa. Há quem me descreva como uma analista financeira de uma empresa. O meu pai, em tempos, diria que sou a menina dos seus olhos. Não te piques nas arestas da minha personalidade. Não há lugar, nem tempo, para mal-entendidos.