Vós que sois dotados de olhos inquietos, testemunhas sem fronteiras que palpais com ousadia as entranhas do mundo, que metralhais cada uma das suas tremulações, que apreendeis tudo o que mexe, tudo o que muda, tudo que se revolve, tudo o que se agita, tudo o que salta, tudo o que corre, tudo o que se exibe, tudo o que se pavoneia, tudo que escorrega, tudo que cai, tudo que nasce, tudo que chora, tudo o que se entedia e morre, já não tinhas dado grande conta disto e agora deixais passar isto. Então?
quarta-feira, 22 de março de 2017
terça-feira, 21 de março de 2017
Se eu fosse cego amava toda a gente
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemitérios - as lágens são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.
__Almada Negreiros
segunda-feira, 20 de março de 2017
Caturra
Perguntou: leste "O monte dos vendavais"? Respondi: sim, li. E leste como deve ser? Reformulou. Respondi que achava que sim. Ela disse: então sabes que o ser humano não é apenas luz, é também escuridão, loucura, tristeza.
Acreditas na felicidade? Acredito, respondi-lhe. Acredito na felicidade ilusória, ocultei-lhe.
Acreditas na felicidade? Acredito, respondi-lhe. Acredito na felicidade ilusória, ocultei-lhe.
sábado, 18 de março de 2017
Atrasados
Ao sábado de manhã gosto de ir até ao Café, sentar-me na esplanada, pedir um café e ler os atrasados. Gosto de café. Gosto de atrasados. Noutros tempos talvez me irritasse esta mania insistente das ciências da comunicação, que consiste em filtrar a insignificante espuma dos dias para dela extrair apenas a matéria empobrecida. Só que dentro de mim há já algum tempo que as marés vivas foram dando lugar a um mar de putas. E que magnifico mar de azul lavrado avisto eu hoje! Vocês, não sei. Mas, se ainda vos abespinhais, ide "AQUI" e "AQUI" e depois contai-me de que cor é o vosso mar, vizinhos.
quarta-feira, 15 de março de 2017
E também abomino mediadores
Nunca dizem acidente, dizem sempre colisão. Acidente significa que não há culpados. E isso não pode ser.
terça-feira, 14 de março de 2017
Cú de Judas
Esta última semana passei-a a fotografar árvores e pensava por lá ficar mais um par de dias, mas por motivos de compromisso cá da minha vida tive de voltar à grande cidade.
O choque é frontal. Onde havia ciprestes há pessoas, onde havia espaço há carros enfileirados a perder de vista, onde havia terraços voltados para o horizonte há esplanadas sombrias com mesas carregadas de gente, onde havia pássaros em chilreo há músicos de rua. Onde havia um mar levemente ondulado há gente que grita, gente ferida, gente que fere, gente que disputa lugares, gente que não sorri, gente sem rosto, gente curvada sobre si mesma, gente que ultrapassa pela direita, gente que pára sem travar, gente que muda de direcção sem dar sinal, gente que vai, gente que vem, gente que fica... gente, gente, gente.
Acreditem, eu não tenho absolutamente nada contra cada uma destas pessoas individualmente, mas quando se juntam em forma de multidão... às vezes abomino-as. Não sei se podia dizer isto?
Mas vá lá, ganhei um bilhete para o Rodrigo Leão & Scott Matthew no Primavera Sound, vá lá.
Mas vá lá, ganhei um bilhete para o Rodrigo Leão & Scott Matthew no Primavera Sound, vá lá.
segunda-feira, 13 de março de 2017
Constança
Violentas rajadas de vento vindo do norte abanavam as árvores do jardim assobiando entre os ramos e os troncos. De pé, em frente à janela, via a vegetação agitar-se na escuridão. Tinha uma ideia exacta daquilo que desejava naquele momento: uma parcela do tempo presente, suportar o peso desmedido do pensamento e apegar-se à trama lassa da existência, um breve instante subtraído ao formol dos hábitos, qualquer coisa de instintivo, quiçá uma lufada de sexo à toa e que depois tudo continuasse como antes. Não sendo contudo falho de interesse um regresso às origens da espécie para descobrir aquilo de que realmente é feita, reiterando o desejo de ver nascer a aurora, prometa ela o que prometer.
quinta-feira, 9 de março de 2017
Frederico.
A noite passada teve um pesadelo e acordou a gritar sobressaltado, mas agora não consegue recordar-se do pesadelo por meio de palavras, ele quebra-se em pequenos fragmentos que vão perdendo a cor rapidamente e depois evaporam-se por completo. Sente-se culpado porque não se recorda da razão de ter acordado a gritar. Tenta achar alguma coisa para justificar o incómodo, mas quanto mais procura uma história para contar, mais o seu espírito se esvazia e tudo o que consegue dizer é: "desculpa ter-te abraçado daquela maneira..."
quarta-feira, 8 de março de 2017
Cavalleria Rusticana
Mas não fui. Tenho pena. Muita pena. Fico fora de combate.
terça-feira, 7 de março de 2017
Ia agora ali a passar e... chegou a Prima.
Fez de conta que não me viu, não me sorriu, não me falou - a sostra. Pois eu há muito que furtivamente lhe contemplava os lábios, e o resto, e estou seguro de ter fantasiado e imaginado o impensável com aqueles lábios e com o resto, antes de ter a sombra da sua realidade diante de mim. Ter imaginado aqueles lábios, e ainda o resto, noutros lábios e noutros corpos tem sido também uma penitência. Acto de contrição: um dia ainda viverei somente a sonhar com ela. Um dia.
Garfield
Eu, que não sou de intrigas, nunca imaginei dizer isto, mas é que anda aí um blog de um gajo que é gaja que me diverte à grande. E está cada vez melhor. Até a mim me deixa assovelado.
segunda-feira, 6 de março de 2017
Salvador Sobral
Nunca fui muito de festivais da canção. Confesso que não vi nada de nada. Não conheço as outras canções que lá foram a concurso. E confesso ainda que só ouvi a canção na viagem matinal que fiz pela rede. Parei, escutei e senti um leve tremor... palavras melodiosas dardejando tranquilamente sobre a superfície das águas profundas do meu oceano pacifico. Estou varado. Não me reconheço. Confesso.
Parabéns Salvador, parabéns Luísa.
sábado, 4 de março de 2017
De Torga a Calvino, num ápice
quinta-feira, 2 de março de 2017
Ruy de Carvalho
"As pessoas deviam reivindicar mais cultura. A cultura é tão importante como a economia, ou mais. Uma pessoa culta não acarneira. Nao é acarneirado. E isso é um dos princípios da democracia: não ser carneiro. "
- Na Grande Entrevista da RTP3
quarta-feira, 1 de março de 2017
Quarta-Feira de Cinzas
Acendeu outro cigarro do maço de tabaco americano, chupou profundamente, expeliu o fumo, olhou fixamente e disse: - quando vamos foder?
Deu outra passa no cigarro e ficou a olhar com os seus intensos olhos a brilhar, um levíssimo sorriso eufórico nos lábios carnudos, o mesmo sorriso da jogadora que aposta tudo e mostra três ases quando apenas se esperava um par de cincos, um ligeiro tremor instala-se-lhe no queixo como se estivesse a degustar um naco de carne suculento e delicioso. Estava feliz por falar e ter quem a ouvisse em silêncio.
Deu outra passa no cigarro e ficou a olhar com os seus intensos olhos a brilhar, um levíssimo sorriso eufórico nos lábios carnudos, o mesmo sorriso da jogadora que aposta tudo e mostra três ases quando apenas se esperava um par de cincos, um ligeiro tremor instala-se-lhe no queixo como se estivesse a degustar um naco de carne suculento e delicioso. Estava feliz por falar e ter quem a ouvisse em silêncio.
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017
Vórtice
Cá dentro, amparo e calor. Uma luz suave. Silêncio. Sob a chaminé, uma pequena lareira. Esperança. Ponto zero. A imensidão do tempo. O dia que se prolonga como se não fosse ter fim.
Lá fora, um frio imaculado. Cortante. Uma brancura azul, um sol forte e uma paisagem de montanha. Picos perigosos e selvagens a recordar uma terra sem homem. Uma imagem turva, uma respiração, um batimento cardíaco, um grito. E depois, repentinamente, a partida. Aceleração vertiginosa, dias, semanas, meses, confusão, imprecisões, impontualidades, vivências, pensamentos, experiências, mais e mais depressa, corrida, redemoinho.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017
Nas margens do Lago Tanganica
Entretanto entre nós há anões e gigantes, imberbes e com bigode, pobres e ricos, taciturnos e barulhentos, nobres e vulgares, abnegados e preguiçosos, comuns e providas de peitos rijos como pêras, gorduchas de pele fria, diferentes e idênticos. Aprendemos que para combater a apatia e a preguiça é necessário viver com o prurido da ordem, da exactidão, da coerência, da harmonia e de um grande sentido de comunidade. Aprendemos que a riqueza não existe a não ser por comparação com a pobreza, que a beleza casa bem com a fealdade e que, na sua ambição pelas alturas, o abnegado necessita da admiração do preguiçoso. Aprendemos a complementar-nos. Aprendemos que o aborrecimento do rotineiro não tem nada a ver com o aborrecimento do que não tem absolutamente nada para fazer. E que, sim, isto afinal pode perfeitamente ser só blogs. E que o Lago Tanganica continua a ser o que se vê daquela janela.
terça-feira, 21 de fevereiro de 2017
Sete centimetros
Não sabia se era do seu cabelo arruivascado, das sardas ligeiras pelo rosto, do sorriso lento, demorado, que lhe repuxava os lábios carnudos ou se da saia justa - sete centimetros por cima do joelho -, com aquela racha atrás que deixava à vista o perfil das duas pernas até uma altura considerável, ou simplesmente a maneira de olhar quando virava a cabeça.
O que parecia uma mera troca de confidências, transformou-se num ponto de ebulição carnal que o cercava gradualmente. Devia quere-la mais do que costumava querer qualquer mulher, porque naquela tarde, já ao cair da noite, até tremia. Estava tão pouco habituado à ternura não instituída que não sabia como aproximar-se dela, não sabia como tinha de lhe fazer cair a roupa. Em seu redor, retido, um silêncio ambíguo, estranho, solidário.
domingo, 19 de fevereiro de 2017
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