segunda-feira, 19 de março de 2018

Crepusculário

Hoje não te vou abraçar, também não te vou oferecer uma gravata (azul), tão pouco vou sorrir-te e dizer: "estás cada vez mais pai". Mas se tiveres tempo e paciência, posso ir ali à prateleiras dos velhos buscar o Crepusculário. Que dizes?

"...nada podem teus olhos doces, 
como nada puderam as estrelas 
que me abrasam os olhos e as faces. 

Escutarei de noite as tuas palavras: 
... menino, meu menino... 

E na noite imensa 
com as feridas de ambos seguirei..."
                                                                                     (Pablo Neruda)
                    

quinta-feira, 15 de março de 2018

Da noite em que eu dormi com a Sylvia Plath

Perturbado, incerto, inquiridor não cesso de respirar, de tirar proveito de uma presença fulgurante, de um corpo que se move a meu lado, como se ali estivesse o quotidiano de ambos, caminhar juntos nos bastidores das horas perdidas antes de nos enfiarmos nos de uma cidade, debaixo de uma campânula de vidro... debaixo de uma bátega.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Gisele

Acariciam-se com o olhar, promessas de rapidez, onde fica a cama, lugar acolchoado onde vão desenrolar-se as intempéries? contando que ele seja meigo, bruto, outra vez meigo, que tome e dê, retarde e acelere, se cale, que humedeça, sem excesso, sem arrebatamento fingido, docemente, concentrado no contacto extremo, no molhado, sem pensar no depois, ali e agora. Quanto ao resto, Gisele saberá inventá-lo, à sua maneira.

Doutrina

Como em tudo na vida. Nada de arrependimentos, nada de más consciências: a recordação simples de um falhanço em que ninguém bebeu do essencial para o oferecer em dádiva ao outro. Alguns amplexos e basta. Os réus acolhendo a objurgatória.

terça-feira, 13 de março de 2018

Setenta e nove

A Bloga está a passar por uma crise de realidade. Os escribas são todos iguais, não descansam até o mundo que inventam substituir aquele em que vivem e que os desilude. É tão pueril! As palavras não são as coisas, e por mais que profiram as suas encantações, nenhum milagre se produzirá segundo os seus desejos. O mundo é rebelde e não tem lógica, não obedece a qualquer injunção das palavras, é um monstro e nós os seus lacaios. Não acham?

__ Não!?

sábado, 10 de março de 2018

Palomar


Como é que o homem se desarticula, interroga-se o Senhor Impontual, por que motivo um dia se perde quando julga ter chegado em segurança a fim de respirar um pouco de ar puro, olhando a paisagem e dizendo para com os seus botões: o mundo é belo, eu faço parte deste universo, mas sinto-me bem aqui? Como se pudesse abeirar-se de uma janela, voar e esquecer.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Duas fotografias, uma efeméride

 @Robert Doisneau

@Josef Koudelka

terça-feira, 6 de março de 2018

segunda-feira, 5 de março de 2018

A hora mais negra

O mundo sofre de graves perturbações: chovem bombas na Síria - uma imagem altamente desconcertante, Trump, Putin, Kim Jong, ameaçam o mundo todos os dias, a Venezuela está um inferno, o Brasil chapinha na lama da corrupção, a Alemanha está numa encruzilhada politica, Berlusconi pode voltar na Itália. Os movimentos de alerta resumem-se a tirar camisolas, deixando o empowerment das mulheres em muito maus lençóis. O globo entretém-se em festas alegres e jazz.
Que outra civilização além da nossa sentiu tanto prazer em destruir-se, em fazer sofrer os corpos, em conspurcar as almas, em esfolar as peles?

quinta-feira, 1 de março de 2018

Baseado num poema de Eugénio de Andrade

Após a euforia das noites mal sonhadas, aterra suavemente em madrugadas baças. Fala e agita-se. Nenhuma respostas às suas aspirações. Sente-se inacabada, incompleta, amputada de desejos, de perfumes, de vontades. Querer, é a faculdade de nomear o que não é, moldar com sombras um rosto, perfumar o inodoro. Pratica o bem e isso não a torna feliz. Preocupa-se. No entanto, tem um desejo simples: dançar a sua vida com um homem.
Dançar...
Dançar no mundo com alguém. Viver dias vulgares dizendo para consigo, logo à noite o baile continua...

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Conclamação

O verdadeiro triunfo da indiferença podia ser outra coisa qualquer. Como o gosto de manejar a condescendência e a delicadeza. Mas não. Cada coisa a seu tempo. Em primeira analise são as palavras vindas de nenhures que se tem vontade de imprimir, vindas de onde não podiam ser ditas e, sobretudo, (con)clamadas.

Acontece muito em dias de frio e chuva.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Sabem aquelas pessoas ?

Que porque se dão mal com ausências injustificadas, com a falta de respostas, com silêncios enlouquecedores, com desaparecimentos. Nunca o mereceram, são naturalmente transparentes e se andam sufocadas para dizer, havia sempre uma forma de o saber - olhando-as nos olhos, e bastaria isso para que pudessem dizer tudo. E tinha de ter sido dessa maneira. Não sendo, e esperando que o dano seja o menor possível, apresentam automaticamente a sua demissão de uma história que nunca o foi. Sabem?
Por vezes gosto de gente assim, outras não dá jeito nenhum.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Luz

Separamo-nos à primeira claridade da manhã, debaixo da dúbia luz dos dias que nascem depois das chuvas. Já é uma luz que se distingue, mas ainda sem ostensivo orgulho. Há muitos pintores da noite para além de Rembrandt. Mas há poucos pintores da aurora, porque a aurora é luz glauca, é a hora da essência, a vereda dos passadios. O único que sobressai neste aspecto é  Caravaggio e poucos mais. Gosto muito de ti. Sê prudente.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Ainda sobre as idades

Agarrou-lhe na mão, puxou-o para dentro e fechou lentamente a porta atrás deles. A névoa ficou do lado de fora. Os deuses haviam preparado a candeia do pecado: a um canto tremeluzia a luz minúscula do candelabro azul sobre a cama. Ela já não era a mesma, adquirira novos truques de elevar o prazer, praticava-os com todo um outro tacto e com uma outra paixão, as pernas longilíneas e ainda muito sedosas, levantadas para o céu, cadenciavam o triunfo de um amadurecimento irreversível. Tudo na perfeição: a mente, as emoções, o corpo, a cegueira do instante revisitando um tempo lá mais atrás, a pulsação surda, a frenética simultaneidade. A explosão do pus dos adiamentos acumulados. O tempo compulsivo, a época das idades menos amadurecidas, explanados numa tarde de sol brando.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Geração sem idade


As pessoas da geração sem idade estão desanimadas com o futuro, porque estão cada vez mais conscientes de que, como espécie, perseguem um sonho inspirador que as levou à ruína. Disseram a si próprias que o mundo estava ali para ser conquistado por elas, pelo que quanto melhor parecessem e o mostrassem publicamente, quanto melhor seria o seu controlo, maior seria a sua vantagem, melhor o seu mundo seria. A base filosófica desta geração, apoiada na crença que o mundo estava aqui para ser controlado por quem dominasse o outro, parecendo bem, é uma crença equivocada. Esse optimismo rapidamente passou a ser a fogueira em que se têm queimado. Uma espécie de auto-aniquilação progressiva que, a cada flash, lhes mostra um mundo mais azedo, mais caótico, profundamente confuso.

Por exemplo, se isto fosse o Facebook ou o Instagram, eu precisava de pensar muito bem sobre que mensagem pretendia transmitir como alternativa ao mito do domínio e do parecer bem que deformou ideologicamente esta geração sem idade. Felizmente isto é um blog. E a melhor coisa de um blog é que não precisa sequer de fazer sentido. Por isso fico com o meu cérebro descansado a fotografar a música que oiço, os livros que leio, o cão que se passeia no areal. O que, diga-se em abono da verdade, também não faz de mim um rapaz sem idade.
Busca, Fiodor, busca...

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Plebiscito

Nunca um ditador deu ao seu povo a escolher se queria ser livre ou continuar a ser oprimido. Nunca uma ditadura na história da humanidade se submeteu a sufrágio para passar a democracia ou manter-se ditadura.
Os estultos são fáceis de manipular. Não discutem projectos, desígnios ou intenções. Cultivam em si o sentido da aclamação. Por isso não têm o impulso de começar uma guerra, por exemplo. Mas continuam a ter prazer em ser cruéis.
Aquilo parecia um congresso de uma igreja qualquer de um qualquer reino de deus.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Neve

Regressados, contam-me sobre castelos e dragões esculpidos a partir dos montes de macia neve dinamarquesa, de como eles e outras gentes importantes percorreram, deslizando em tábuas de madeira de fino recorte, toda a distância até à Prússia, mas vê-se claramente que não estão preparados para que a neve apagasse o mundo inteiro (que não houvesse céu, não houvesse cidades) e o deixasse como uma página quebradiça e em branco.
Friorentos.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Quarta-feira de cinzas

É provável que todos venhamos a odiar aquilo em que nos transformamos. Ninguém é o único. Já vimos mulheres olharem para si mesmas em espelhos de restaurantes, quando os seus consortes não estavam presentes, mulheres sob o seus próprios feitiços, enquanto observavam alguém que não reconheciam. Já vimos homens retornados de outras vidas olharem furtivamente para si próprios em vitrinas de lojas, enquanto tacteavam o crânio sob a pele. Uns e outros pensaram que se livrariam do pior da juventude e que conquistariam o melhor da idade, mas o tempo acumulou-se neles, enterrando as suas esperanças antigas sob a areia. A vida relembrada na medula e não na mente. A tua e a minha história podem até ser muito diferentes, mas acabam por ir dar ao mesmo. 

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Da leitura de Al Berto, em contraponto

@Graciela Iturbide

Primeiro é aproveitar o silêncio, pois é aí que melhor se consegue espantar a morte (lenta, digo eu), depois é caminhar como sempre caminhamos, dentro de nós - rasgando paisagens, lavrando mares, deglutindo todas as imagens, distraindo o medo na fímbria da noite, afugentando todos os pássaros do crepúsculo. Assobiando.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Quereis não uma mas duas sugestões de leitura?


Mas se antes quiserdes vestir um desses farrapos de tule com uns penduricalhos de brilhantes falsos em cima, a deixar entrever as carnes brancas e mal passadas e, enregelados, ir dançar o samba num desses cortejos carnavalescos onde com uma folia abnegada aclamareis o vosso amigo Charlie Brown, estais à vontade.

Ah, e estou a ouvir ora Lou Reed ora Fausto Bordalo Dias. Não sei se gostais?