quinta-feira, 13 de junho de 2019

Santo António Pequenino

Diz-me, sem hesitar, que o casamento é a forma mais difícil de se viver com outra pessoa. Faz desaparecer os enigmas da relação, junta aquilo que talvez nunca devesse juntar, compartilha coisas que não deveriam ser compartilhadas, vai emudecendo subtilmente os cônjuges porque as palavras vão perdendo o seu antigo brilho, o que anteriormente parecia uma ideia original acaba por parecer uma ideia mil vezes repetida, mais que sabida, velha, com o passar dos anos as pessoas começam a não se ver e já não se aborrecem, mas também não provocam fúrias entre si, nem paixões, nem há motivos para reconciliações. Já não há despedidas do lado de fora da porta, nem partidas de madrugada, nem beijos furtivos nas escadas. Deixa de haver ruas por onde se deambula à noite, a sonhar. Do casamento em diante os beijos tornam-se cada vez mais conhecidos e menos húmidos e aquilo que vem depois da noite é mais do mesmo do dia de ontem, acaba o amor louco, romântico, mágico e começa a rotina do papel higiénico e do pagamento das contas e faz-se sexo a pensar no que se há-de comprar para o almoço do dia seguinte porque o marido tem o colesterol alto e não come isto e aquilo... 
Senti uma espécie de pânico. Borges é que tinha tinha razão. "O casamento é um destino demasiado pobre para uma mulher".

quarta-feira, 12 de junho de 2019

O acaso é intrigante!

Sempre me intrigaram as coisas que acontecem por casualidade. Não consigo deixar de me maravilhar perante as consequências de um encontro fortuito, um homem entra num café e vê uma mulher muito bonita e nessa mesma noite volta a encontrar-se com ela e, no dia seguinte, telefona-lhe e convida-a para tomarem um copo e acabam por se tornarem amantes. Ou um avião que não se conseguiu apanhar porque um despertador se avariou e o avião cai e morrem todos os passageiros. Não vos parece esmagador que algo tão improvisado como não acordar ou ir tomar um café possa mudar a vida inteira de uma pessoa? Assim, sem qualquer determinação?

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Feira do Livro

Aproximo-me do stand. A rapariga que está de pé atrás do balcão, folheia um livro, não se apercebe da minha aproximação. Observo-a sem que ela dê por mim. Gosto desta atitude das mulheres que viram distraidamente as páginas de um livro, que têm aquele ar falsamente concentrado, ausente do mundo, que tresvariam mais do que lêem, que vagueiam por onde nenhum homem está em condições de se lhes juntar, que são belas porque não estão arranjadas, que têm encanto porque não procuram seduzir, que são indefesas porque são desatentas.
No balcão ao lado, uma mulher - que me parece ser a gerente do stand, da editora - tenta atrair-me com o olhar. Só com o olhar. Os seus lábios mantém-se ostensivamente selados. Também se os entreabrisse, dar-se-ia pela peçonha nas suas comissuras. Detenho-me sobre o seu fácies estriado de rugas, o carrapito cinzento, a sua pele quase transparente onde finas veias azuis desenham formas monstruosas. Estou certo de que aquele ar de malvadez não veio com a idade, que tudo já lá estava no começo, que os anos mais não fizeram do que acentuar este traço do seu carácter. Ao lado dela, a tez fresca e rosada da rapariga acorda subitamente: "ai desculpe estava aqui a deitar os olhos sobre o "Eu Confesso" do Jaume Cabré. Já leu? Olhe que está barato". Não li, mas vou ler - retorqui.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Pintar Junho

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma quarta-feira. Estamos em Junho e no ar paira a fragrância do jasmim, do alecrim, da madressilva e das mimosas. Os botões da catalpa rebentam nas árvores, parecendo estrelas, o seu perfume a leite-creme espalha-se delicadamente pelo ar. 
Estou impedido de lhe mentir. Tudo deve ser dito, posto na tela. Observo a sua cara bonita, os lábios tingidos de vermelho pelo refresco de framboesa, a tez diáfana pontuada de sardas, o cabelo ruivo e aquela espécie de esgotamento, esse estigma da vida, apesar de toda a sua frescura. Está imóvel na banqueta, impõe a si mesma essa inércia, essa anquilose. É patente. Usa as suas feridas com elegância, com desenvoltura. 
Na tela, deslizo o carvão pelo seu sorriso imperceptível. Na paleta, ensaio o carmesim que será o respingo nos seus lábios. Nada mais.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Chumaço

Nessa terra cujos céus eram límpidos, as madrugadas húmidas, as manhas frescas, e onde as silhuetas se dobravam contra os ventos ruins, tu era uma espécie de contra-mão, a prova de que a bruma não vence todas as resistências. Sorriso gratuito, franco, livre, quase involuntário, eras como um bálsamo. Assumias a expressão do triunfo.
A principio não falávamos. Havia somente o ruído dos nossos passos sobre o asfalto húmido, o sopro do vento da tarde que se embrenhava nos nossos pescoços; havia as nossas cabeças curvadas, os nossos narizes avermelhados, o frio dos corpos, a companhia muda do outro, a marcha silenciosa. E depois, sem que nada o deixasse prever, tu tomaste a palavra. Acreditei que irias fazer uma alusão ao tempo. Mas não, foi outra coisa, dessas coisas que não se dizem quando as pessoas não se conhecem, mas que contudo tu disseste, pois tu não eras uma mulher como as outras.
Disseste que eu era um homem como tu gostavas. Não era teu desejo deixar-me embaraçado, apenas tinhas necessidade de o dizer. Disseste que não tiveste de vencer uma única reticência, não tiveste que te conter. O que tu notaste antes de mais em mim foi o ar distante, a indiferença, a displicência. Não te terias aproximado de um homem que te tivesse cobiçado, que se tivesse exibido. Desses homens que trazem a virilidade a tiracolo.
Hoje pensei em ti. Fiquei com um alto nas calças.

"Fim - o que resta é sempre o princípio feliz de alguma coisa."

[Agustina Bessa-Luís]

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Sem foto de pouco vale

Mas seja como for, de manhã, o ar que se respira no alto desta falésia é tão revigorante, que nos leva a crer que, graças a ele, se ganha um suplemento de tempo. Dizem-me que à tarde, os reflexos no mar têm por vezes qualquer coisa de assombroso e quando os céus alaranjados se estendem sobre a baía, ao pôr- do-sol, quase dá vontade de chorar. Vou ficar para ver. Mas não estou para choros.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Lolita

A rapariga da loja de conveniência onde me abasteço de manhã é uma rapariga de uma simplicidade absoluta. Não verdadeiramente bela. O rosto não chama particularmente a atenção. Mas, olhando de mais perto, damo-nos conta de que há qualquer coisa na sua silhueta, no seu modo de andar, no rubor das suas faces, no seu sorriso também, que é mais próprio da adolescência. A rapariga da loja de conveniência é uma mulher-menina. Tenho ocasião de observar as suas mãos longas: são finas e longas. Uma rapariga de mãos finas e longas. E manchas de rubor nas faces. Usa roupas informes e lenços intermináveis que lhe ficam bem na tez fresca e rosada. Os seus olhos brilham. No entanto não sinto desejo por ela. Já não desejo tudo o que vejo.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Abstencionismo

É certo que se tem vontade, necessidade, que o mundo seja branco ou negro, que os homens sejam inocentes ou culpados, santos ou escumalha. É uma cisão que dá segurança. Cada um tem o seu modo de vida, tem o seu papel. O cinzento, isso é que não é assunto nosso. O intermédio não se sabe bem onde se encontra. As fronteiras devem estar claramente estabelecidas, desenhadas. Consoante o lado onde cada um se encontra, assim se é capaz de dizer a que campo se pertence. Tem-se necessidade de coisas límpidas, e legíveis, e duras. No entanto, a mim, acontece-me acreditar que a realidade é mais contrastada. Aprendi que a luz e a sombra são indissociáveis. Aprendi que é preciso fazer escolhas na base da tridimensionalidade. Na sombra própria e na projectada. Apreendi a puxar-me as orelhas. Vou lá. Mas percebo quem não vá. Quem não queira ir. Quem não queira puxar as orelhas.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Desaparição

Chego à casa. Finalmente. Avanço no escuro. No escuro e no vazio. Não arrisco embater em nada, excepto nas paredes. Tudo parece mais vasto e os meus passos ressoam. Pelas janelas entram os reflexos azuis da lua. É o instante de maior desapossamento. Da inigualável solidão.
A casa já não é a casa, os quartos já não são os quartos, são apenas espaços intocáveis, sem ocupantes, sem vida, lugares desimpedidos. Esta desolação, este despojamento é verdadeiramente a ausência. É o que mais se parece com a ausência. É um território ao abandono, estéril. É o silencio apenas perturbado pelo ruído dos meus passos no soalho nu. Ando sem me dirigir a nada em particular. Ando na casa que já não é a casa, desamparado. Os meus olhos habituam-se ao escuro. Trago comigo o odor da desaparição.
Não sei o que fazer àquilo. Ou melhor, sei.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Melgaço

É a vida, diz-me Dona Célia enquanto me coloca o café sobre a mesa com os olhos fixos na CMTV acompanhando mais um daqueles casos.
Só que, aqui, os homens e as mulheres não se separam. São indissociáveis até à morte. Estão unidos perante Deus, não correm o risco de um perjúrio. E, depois, não descontam a felicidade como um retorno da sua união. Casam-se porque é assim, porque os mais velhos o fizeram antes deles, maquinalmente. Das mulheres, os homens esperam que cuidem bem da casa, que se ocupem dos filhos. Dos maridos, as mulheres esperam que tragam uma paga e que as acariciem quando não estão fatigados. A vida é tão simples quanto isto nestas terras. Não se é sofisticado. Posso testemunha-lo: não agi de outro modo. Estou casada à 30 anos.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Vulpes pilum mutat, non mores

Enquanto lhe digo as coisas, os seus olhos franzem-se ligeiramente. O resto da sua cara permanece absolutamente impassível. Ela tem a forma oval dos vasos sagrados. Esta impassibilidade é para significar que não tem nada a acrescentar, que o que acaba de ser enunciado não tem nenhuma necessidade de ser confirmado. Esquadrinho a estranha imobilidade dos seus traços, a cera da sua máscara. Impressiona-me tanto auto-domínio, tanta discrição. Manteve as mãos entrelaçadas sobre os joelhos cruzados, exibindo uma elegância que já não se usa. Encoraja-me com a sua simples presença muda, mas não tenho mais nada para lhe dizer.

sábado, 18 de maio de 2019

Mestrado em marketing e estratégia

Na Finlândia um deputado e candidato às eleições legislativas daquele país fez toda a sua campanha no Pornhub. O Pornhub é um site de cunho pornográfico com mais de cem milhões de visitas diárias. 
"Temos de estar onde as pessoas estão", justificou o candidato.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Layer vectorial

Está fora de dúvida de que apenas gosto da periferia, das fronteiras, das orlas, dos contornos. Desconfio dos centros, das evidências.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Azad

No local onde me encontro os paquistaneses têm umas mercearias onde gravita todo o tipo de gente à procura do improvável. Os paquistaneses são gente fleumática. Não consigo entender se a sua fleuma advém da indiferença na qual foram acantonados e à qual parecem acomodar-se. Ou serão eles, muito simplesmente, gente que não procura as histórias das outras gentes, decididos que estão em não exprimir nenhuma opinião para não afastar ninguém? Fundem-se na paisagem até se tornarem um elemento dessa paisagem, apenas um pouco mais exótica do que o resto do cenário. Usam turbante, mas a sua fisionomia castanha é impassível e pacifica. Os seus modos são elegantes e lentos. A sua falta de afecto funciona nos outros como um bálsamo de relaxamento.

Azad não é visivelmente o género de pessoa para se lançar em grandes dissertações, nem para formular extensas teorias. Guarda as suas reflexões para si próprio, jamais desejaria embaraçar alguém. Aprecio este tipo de discrição, que é a verdadeira elegância. Sou tocado por esta moderação, este pudor, que são de um homem honesto. Contenta-se em perguntar-me como tomo o meu chá. Voltamos ao silêncio. O chá arrefece na minha chávena. Azad tem movimentos lentos, seguros, delicados. Não se desgasta inutilmente. Quando acabo de tomar o meu chá, pronuncia algumas palavras a propósito do tempo, da chuva, da morrinha. Conta-me que nunca se habituou ao chuviscar permanente. Que lhe falta o sol do Paquistão. Interrogo-o para saber quando deixou o seu país. Informa-me que nasceu em Londres, que nunca pisou solo da terra natal dos seus pais, que sente a falta do que não conheceu, dessa pertença que lhe foi negada, que lhe é impossível reivindicar. Diz que é um puro produto da Inglaterra. Dí-lo sem acrimónia, mas com verdadeira tristeza. Diz que é um exilado no seu próprio país.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Da noite em que me deitei com Anaïs Nin e acordei com a Hilda Hilst

Perturbado, incerto, inquiridor não cessei de respirar, de tirar proveito de uma presença fulgurante, de um corpo que se movia a meu lado mas que insistia que o dia impediria a continuidade do êxtase, porque tudo o que se move, tudo o que flui, tudo o que passa sufoca-nos e enche-nos de angustia. 
Adormeci atolado na ideia de que não há maior erro possível do que acreditar que uma ausência é um vazio. A diferença entre os dois sentimentos é uma questão de tempo (sobre o qual eles não podem fazer nada). O vazio está antes, a ausência está depois. De vez em quando é fácil confundir os dois. Há-de ser daí que emergem alguns dos nossos desgostos.
- Ama-me na exiguidade, é tempo ainda. Ouvi, estremunhado, de uma voz vinda do lado de fora.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Palomar

O Senhor Impontual não sabe ao certo quais a razões para tal, mas quando se encontra longe de casa torna-se um homem bastante mais introspectivo, um homem que se intriga com as pessoas e com o mundo. O Senhor Impontual também não tem a certeza se o intrigam mais as pessoas do mundo ou o mundo das pessoas. O que é certo é que o Senhor Impontual, e o seu eu flutuante, está imerso num mundo desincorporado e chegado a este grau de amadurecimento sente o desejo de agradar a si mesmo, prelúdio ao prazer, mergulhar em si próprio, rodeado por uma música interior, construir um abrigo e às vezes elevar-se para observar de longe. O Senhor Impontual sente mesmo gosto em frequentar esse universo alargado de pessoa só, sem se atolar em delírios de desgaste lento, mas não deixa de se questionar: pode alguém ser quem não é?

domingo, 5 de maio de 2019

Olívia

O local onde me encontro neste momento está quase deserto. Uma senhora e um cavalheiro, seguramente italianos do norte, estão a desfrutar do magnifico fim de tarde sentados em duas cadeiras de lona já algo amarelecida. Ele parece rondar os oitenta anos e ela segue-o de perto, setenta e cinco ou talvez até mais. A senhora pediu um Belini, ele uma Birra Moretti. Dão a impressão de estar casados há uma vida inteira e sem dúvida que o estão. Tomam as suas bebidas com aquele ar condescendente de quem que já não tem pressa de coisa nenhuma e que estão tranquilos em relação aos fantasmas do passado. Parecem ter toda a certeza de que tudo está bem assim. E está.
Entretanto a voz de Omara Portuondo fez-se ouvir de alguma coluna escondida entre os bem cuidados arbustos que rodeiam o jardim. Alguém pôs um disco a rodar. Lembrei-me do meu pai que, naquela altura da sua vida, de cada vez que ouvia esta musica cantada pelo Milanés dizia que a única mulher com quem um dia voltaria a casar seria com uma que se chamasse Olívia. Eu, dou por mim a pensar o mesmo: um dia se vier a ter outra mãe também terá de ser uma Olívia. Eternamente Olívia.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Contratenor

Gostava de conseguir olhar para este tipo de situações e seguir em frente com a leveza dos que ignoram. Em vez de indagar, varrer a minha breve inquietação para debaixo do tapete. Doravante vou tentar fazê-lo, mas não sem que antes emita um pequeno sopro: estes gajos são uns filhos da puta. Todos.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Câmara escura


Sempre que regresso de um périplo, e já depois de as ter revelado, é que descubro a insigne grandiosidade das minhas películas e enfrento então três placebos absolutamente complementares: a puerilidade, o riso ensimesmado e o deslustre -- praticamente simultâneos.