sábado, 29 de dezembro de 2018

Balanço do ano civil

Todas as manhãs, na altura em que acordava, o sono pesava fortemente sobre si, quase como uma força física a prende-lo à cama, mas teve de libertar-se dele como de um atacante, e arrastar-se até à casa de banho. A feiura dos dias manifestou-se repetidamente através das janelas, uma fealdade opressiva, a exigir de si uma espécie de resignação, e a deixá-lo com uma vaga sensação de culpa. 
Às vezes era sábado. 

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Balanço do ano religioso

Queixou-se todas as noites e sabe Deus que tinha bastantes razões para isso. Nas suas lamentações nocturnas todos os infortúnios se tornaram iguais, por isso conseguiu entrelaçá-los a todos como fios da mesma oração contínua, a pedir a Deus que lhe perdoasse e que tivesse misericórdia, amén.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Epicurismo


Parou de chover, acolhe-me a noite serena. Uma quietude hospitaleira, sem pensamentos, sem sobressaltos, apenas a noite calada e fria. O presente, ou seja, aqui e agora. Um lume que me aquece triunfalmente, e eu, por mim, ávido do livro que aguarda os meus olhos e as minhas silenciosas questiúnculas, não me quero implicado em contrariar minimamente esta efémera felicidade que o mundo vive por estes dias. Nem sequer do mundo que está aqui mesmo ao meu lado.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Palomar

O Senhor Impontual recebeu esta manhã, na volta do correio, um cartão de Natal manuscrito com letra de traço espesso e adornada à direita, e está agora a lê-lo encostado ao parapeito da varanda do seu local de trabalho, de onde vai observando os terraços apinhados com os seus inúmeros vasos para as plantas, pires para gatos, cordas de roupa, antenas de televisão por satélite, algumas cadeiras encostadas e uma série de chaminés já a fumegar. Os cabos eléctricos e telefónicos estendem-se por todas as direcções. No fim da rua, os automóveis param e arrancam nos semáforos a um ritmo alucinante. Na praça central do bairro de fronte, dois catraios correm numa perseguição sem tréguas atrás um do outro. O Senhor Impontual dá por si a recordar a mestria com que ele com a sua bicicleta subia três lanços de escadas e sorri ao pensar o quanto chorava a bola quando chegava aos seus pés.

Os amigos feitos na orla do tempo são diferentes dos outros. Fazem gracejos. Tiram uma história velha da algibeira, dão-lhe uma trinca e oferecem-na aos outros - como uma maçã verde. Aparecem de maneiras diferentes. Mesmo que tenham viajado milhas e milhas, aparecem sem se anunciarem e sem nenhuma explicação. E têm a certeza de que são bem-vindos.Têm a sua maneira própria de decidirem quando se devem referir a qualquer coisa séria. Sempre num momento inesperado - ao entrarem para o carro, com o banco puxado para a frente, ou quando estão a dar a última tacada numa partida de snooker. E são muito meticulosos com os sinais. Com os olhos, rabiscam a mensagem essencial.

O Senhor Impontual ao ler este cartão de Natal sentiu toda a oxitocina da elasticidade do tempo e teve vontade de se meter ao caminho, mas o Senhor Impontual está tão farto de aviões e aeroportos...

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Camilo


O mês é Dezembro, a pouco mais de uma semana do Natal.
A gente das cidades pergunta-me em que lugar do mundo florescem, em Dezembro, as árvores nas bouças e montados. Respondo que é no Minho, esse perpétuo jardim do mundo. Onde os falsos poetas, como eu, se engasgam de tanta beleza.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Quarenta natais depois

É impressionante como os impulsos humanos mais ancestrais  a vaidade, o quero que tu te fodas e a ganância  se continuam a agitar permanentemente sob o verniz da sociedade. 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Plaza Nueva

É estranho, como o carácter de um espaço publico se modifica quando está vazio, o campanário abandonado, a ópera fechada, a esplanada deserta. No cinema isto é muitas vezes utilizado como pano de fundo de cenas que pretendem assustar ou manipular o espectador. O mesmo acontece com este local onde me encontro agora: os visitantes como eu reduziram-se a apenas alguns, a praça assumiu contornos bastante ominosos. Talvez isso tenha algo a ver com o céu nublado por cima de nós, através do qual ocasionalmente se consegue antever uma pequeníssima nesga de sol, ou talvez às sombras cada vez mais escuras no emaranhado de becos que daqui partem em todas as direcções, mas eu sugiro que é talvez o medo da solidão aquilo que mais os inquieta, o facto de estarem sós, apesar de se encontrarem no coração da cidade.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

O Retratista


Voltou da sua sessão de ontem chupado até à ultima gota, como um limão usado, com pedaços de tinta espalhados pelas mãos dando-lhe um aspecto doente, e caiu na cama sem dizer nada. Uma palavra que fosse. É um homem magro que parece ter-se alimentado daquele esquisso, e que, agora, sem ele, está a desaparecer. Até a estrutura óssea que mantém o seu rosto se está desmoronar.
Esta manhã ergueu-se por instantes mirou o espelho da cómoda Luís XIV. Olhou-se por uns segundos arrepiantes, deitou-se para trás novamente, muito rígido, como alguém que estivesse a ser baixado para dentro de um túmulo.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O Dono Disto Tudo

Vem de uma sociedade onde, há pouco mais de uma década, mais de mil milhões de pessoas tinham o mesmo corte de cabelo e se vestiam com o mesmo fato azul-acinzentado para reprimir a individualidade de cada um, recordo.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Pintar Dezembro

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma terça-feira. Estamos em Dezembro. Sorri, o olhar é agudo, gelado, isso mesmo um olhar gelado, como se, lá dentro, no interior do olhar, houvesse um registo de uma memória coberta de névoa que um vento glaciar faz emergir: um espelho com a devolução de precárias e lacónicas imagens. Nunca um silêncio, porque aquela tropelia de lembranças arrasta-se com gritos lancinantes, suplicas veementes, resignações, uma teia laboriosamente tecida, um meandro, um labirinto.
Pela primeira vez reparo que a sua beleza é assimétrica, que cada metade do seu rosto terá de ter uma atenção separada. O seu perfil visto de lados opostos é diferente, como as deusas tradicionais de duas faces.
Abro subitamente o caderno de esboços, numa folha em branco, tentando não olhar para os desenhos anteriores, e com o lápis de carvão desenho as suas formas. Os contornos são conhecidos e esperados. Posso ser honesto com ela, dentro daqueles contornos encontro novos sinais que o seu espírito mandou imprimir na pele - rugas, vincos e laivos de amargura. Registo todos eles. E, curioso, a sensação que me invade, à medida que a minha mão segue o seu instinto, é de indulgência. Indulgência plenária. 
Preciso preparar uma mistura equilibrada entre o vermelho e o azul. Púrpura. Não sei se um magenta ou um anil. Se mais vermelho, se mais azul.  

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Teoria corpuscular

É absolutamente notável o quão teatral a luz feita pelo homem pode ser quando a luz do sol começa a desaparecer! A forma como nos pode afectar emocionalmente, mesmo hoje em dia, em pleno século XXI, em cidades tão grandes e tão luminosas como as nossas, chega a ser ridícula.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Catapulta

Hoje, neste país, mesmo atardadamente, ouve-se centos de vezes o proferir de palavras gratuitas, com destino, mas sem presente, sem passado, sem final, sem sentido. Como se as palavras atiradas pudessem explicar sempre tudo. Excepto o ter-se chegado atrasado, claro.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Sessão da Meia-Noite



"Mónica e o Desejo" - Ingmar Bergman,1953

Com a Miss Smile, porque a admiração tanto advém dos mergulhos no escuro como dos mergulhos na alma. Portanto, uma assinatura sóbria, com letras pequenas e inclinadas e uma pequena laçada, por vezes ridícula, no fim do nome.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Palomar

O Senhor Impontual esteve fora, num desses países com pouco sol e muita noite, e está feliz por ter voltado num fim de tarde magnifico como o de hoje! Enquanto percorria a auto-estrada do aeroporto até casa, o Senhor Impontual veio acompanhado pela lua. A cada mudança de direcção lá se ia escondendo atrás das nuvens, depois lá aparecia de novo no topo dos montes, imponente. Foram cinquenta quilómetros a observar no horizonte uma lua ora fugidia, ora omnipresente e luminosa. De vez em quando o Senhor Impontual ia fazendo um tubo com a mão e encostava-o ao olho e aí ela diminuía de tamanho, mas o seu interior ficava ainda mais encantador - a lua e quase todas as suas crateras.

Em tempos o Senhor Impontual conheceu uma mulher que também fazia com que o seu mundo ficasse agradavelmente mais reduzido, pelo que não tinha necessidade de mais nada para ficar numa felicidade extrema a não ser olhar para ela imersa na banheira com o corpo refractado pela água, ou observa-la enquanto dormia, ou mesmo quando se levantava da cama num gracioso movimento arqueado. Ela era o tipo de mulher que nunca nos cansamos de olhar, pois era reservada e tinha uma vida interior intensa que dava muito que fazer ao Senhor Impontual. Olhar para ela enquanto estava concentrada em alguma coisa - num livro, a fazer uma mala, a atar os atacadores dos ténis - era maravilhoso demais. 

O Senhor Impontual está agora no alpendre, distendido na poltrona de orelhas com os pés sobre o escabelo, a ouvir Sinatra em "fly me to the moon" enquanto toma um copo de vinho tinto e, de repente, sentiu vontade de montar a árvore de Natal. Mas já se sabe, o Senhor Impontual não responde a impulsos subliminares.

O Senhor Impontual teve pena de não poder estar presente na festa do Jazz que acontece todos os anos em Novembro numa cidade que ama muito.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

LH2086 - Seat 6A

"Sabe, as pessoas não imaginam o que significa envelhecer. Um homem não tem nada a perder quando envelhece, desde que não faça um mau negócio com a lei da gravidade. Mas não é isso, sabe. Não é o peso, não são as rugas, não é a falta de cabelo. O problema é que ninguém nos avisou que passaríamos a ter de urinar 5 vezes por noite. Com a sua licença..."

No regresso dos lavabos, mais aliviado, conta-me que vai visitar a filha - que resolveu vir viver para um destes países com pouco sol e muita noite -  e o quanto tinha adorado a mulher, que morreu quando a filha era ainda um bebé. Amava-a completamente, e depois, de repente, o seu pâncreas deixara de funcionar e ele ficou com a criança pequena, como única lembrança dela. À medida que ela foi crescendo, começou a parecer-se estranhamente com a mãe, e ele deu consigo a olhar para ela fixamente, à mesa da ceia, observando aquela rapariga a transformar-se à sua frente, em etapas definidas, numa mulher há muito tempo falecida. Isto acabou por leva-lo à loucura: começou a pensar que ela tinha voltado para ele, e que ele tinha de novo trinta anos e a cortejava...

"Sabe, eu acho que a doença mental é um luxo de que a maioria das pessoas não pode usufruir. Eu pude..."

sábado, 27 de outubro de 2018

Bolsonaros

Acredito que desejem, tão-só, respostas práticas, caminhos e direcções onde o particular ceda vez ao geral. Talvez se odeiem uns aos outros. A miséria possui formas subtis para degradar a lucidez humana. E os aspectos singulares do desespero confundem-se, frequentemente, com o desdém da própria solidariedade colectiva.

Sempre ouvi dizer que uma história começa quando a própria história nos surpreende. Não há-de ser o caso. Mas não é certo.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Questiúncula

As pessoas humildes sabem que são humildes, ou aquilo nem se nota?

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Toucador


Envelhece, mantém-te inteligente, educa os teus filhos para que sejam bons escuteiros e amantes fieis, ensina-os a usar a confiança com prudência, diz-lhe que acreditem, mas não os deixes viver pendurados na esperança, deixa o teu cabelo embranquecer, deixa que as tuas ancas aumentem de volume e ocupem toda a cadeira, deixa que os teus seios fiquem descaídos, permite que quem te ama não seja o último. Não fiques só. Não faz nada bem viver só. Regenera. Regenera-te em cores abstémias.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Sessão da Meia-Noite


      Viver - Akira Kurosawa, 1952

Com a Alexandra G

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Orçamento do Estado

Tenho evitado pensar sobre a razão que me despertou para isso. Nunca dei grande atenção à politica; se há uma coisa a que não sou obrigado, enquanto criador é, sem dúvida, saber em profundidade o que o governo está a fazer. Para mim é muito mais interessante saber como transformar um pensamento numa imagem e depois a imagem em paredes que serão fortalezas e janelas largas que serão monóculos virados para o mundo, saber como pintar o céu sem usar o azul, erigir um jardim sem usar o verde, ali e acolá obter intencionalmente uma falsa perspectiva... alheando-me dos arrebatamentos insignificantes da política remodelada à força. Todavia, algo me está a incomodar, um ruído de angustia sob os sons nocturnos, vozes de burro a jogarem às escondidas, vozes de burros que se abeiram dos céus. Dos céus sem azul...