quinta-feira, 2 de agosto de 2018

E tu Impontual, o que vês da tua janela?

Caiu a canícula sobre a cidade, os citadinos caminham mais rígidos que de costume, ombros direitos, passo rectilíneo, carregam o peso de uma fatalidade impensável. As guitarras eléctricas calaram-se, está-se agora em Mozart e na sua perfeição tensa que atapeta as ruas. Instalou-se uma névoa que emite vagas calorificas muito acima do suportável. As horas invadiram a atmosfera para aí se desfiarem mais lentamente, pousando as suas voltas sobre as pedras ardentes dos edifícios. Gotas de suor, gargantas secas, a canícula estendeu os seus tentáculos sobre a cidade e impôs a sua disciplina. Gestos comedidos. Respirações contidas. Vive-se em poupança. Crânios abrasados, entre-pernas suados, desejos amolecidos, os corpos reagem e crepitam brandos. Enquanto os pensamentos se revestem de gelo e de cristais glaciares, cada qual segue como um ladrão de sombras, rasando paredes sem sol.

Mas, ainda há quem trabalhe em Agosto.

10 comentários:

  1. Se há... mas por outro lado, as ruas mais desertas, menos carros, os serviços a meio gás, algum do nosso trabalho também, sair muito mais a horas que o normal e ainda assim conseguir despachar trabalho porque há menos interrupções... eu diria que trabalhar em Agosto e fugir quando o bulício de Setembro rebenta, não é nada estúpido ;)
    Bom dia Sr Impontual, há quanto tempo... um bom Agosto para si

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querida Olvido.
      Não é nada estúpido.... estou seriamente a pensar em queimar os resto dos fulminantes na época do bulício. Não diz mal.

      Como vai?

      Eliminar
  2. ...e os corpos dilatam, as ideias encolhem e tudo se resume ao ávido desejo de uma boca fresca. E esta hein? :))

    E sim, Impontual, há quem trabalhe em Agosto, mas também há quem se esquive ao trabalho, invocando as altas temperaturas e o coração doente, ficando em casa a queimar as pontas dos dedos massacrando as teclas de um computador... :) Alguém pode entender esta dicotomia? :)

    Bom Agosto, Impontual.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nessa dicotomia mãos/coração o que importa é que se possa lamber as pontas dos dedos.

      Obrigado, Janita.

      Eliminar
  3. Quem trabalhe e sem ar condicionado... vale o leque! :)

    Beijo soprado, que os outros ficam suados. :p

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caríssima Maria Eu.
      Um Leque, mesmo com este calor, não será demasiado elitista. Não lhe desfazendo a elegância, claro.

      Eliminar
    2. Elitista? Qual quê! Misterioso...

      Eliminar
  4. Impontual, quando tem de se ter um emprego, trabalhar nele em Agosto é bom. Talvez dos melhores meses para trabalhar no emprego.

    Quanto ao Verão:


    O verão é assim

    O verão é assim: a masculina e mineral
    e quase táctil vibração das cigarras.
    Não sou apenas eu, também elas
    se alimentam de claridade,
    fogem do escuro.
    Porque o escuro é onde se abrigam
    a calúnia e a usura,
    o escuro é onde a vaidade
    e a demência do lucro acorrem
    ao apelo do mais rasteiro.
    O céu não passa de um imenso
    e vazio buraco negro,
    mas tenho a esperança que o inferno
    conserve ainda activas as fogueiras
    da inquisição, e nas suas chamas
    possam ouvir-se um dia
    esses cães, que tanto abusam do poder,
    rechinar – como as cigarras no verão.


    Eugénio de Andrade | in: "Sal da Língua",1995

    __________________

    Esta noite preciso de outro verão sobre a boca
    crescendo nem que seja de rastos.


    Eugénio de Andrade

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Isabel, permito-me retocar o que diz acima: quando se tem trabalho e se tem de trabalhar nele em Agosto é um pouco mais difícil. Este calor não ajuda também.

      Já quanto ao Verão de Eugénio: que maravilha!

      Como vai, em Agosto?

      Eliminar