quinta-feira, 6 de maio de 2021

Professor Mamadu

Desci do hotel bem cedo. Fiquei de pé um instante no passeio a olhar pela rua abaixo onde teria deixado o carro, mas logo depois o avistei. Tirei uma folha de publicidade do pára-brisas: "Professor Mamadu , astrólogo, medium e grande conselheiro de assuntos do oculto", ajeitei-me atrás do volante e com pequenas manobras consegui sair do lugar apertado e entrar na rua. Tomei o caminho em direcção à ponte que me levaria para a outra margem para fora da grande cidade.
Àquela hora o tráfego era escasso e a faixa de rodagem estava praticamente vazia à minha frente. Enquanto atravessava os quarteirões imaginava as pessoas da cidade a acordarem, a espreguiçarem-se na cama a dizerem as primeiras palavras absortas umas às outras ou simplesmente a levantarem-se em silêncio, torneiras a abrirem-se nas casas de banho e os espelhos a encherem-se de rostos sonolentos.
É sempre com alivio, um agradável tremor no âmago, que entro na ponte, pressiono o botão para que o vidro baixe e inspiro fundo o ar fresco. Deleito-me a sentir a confusão da cidade, o seu alarido e movimento a desaparecer atrás de mim enquanto bato, de exaltação mal contida, com os dedos no volante acompanhando a música que a rádio me oferece.
Sair da grande cidade!
Primeiro a aceleração a fundo. Depois, sucessivamente, o caminho estreita-se, as árvores nos lados da estrada vão ficando para trás alastrando quietude. Levanto o pé do acelerador e deixo-me encher com uma funda inspiração pelo perfume adocicado. Deito uma fugaz vista de olhos para mim próprio no retrovisor, da maneira como as pessoas que conduzem distâncias longas sozinhas têm por hábito fazer, como que para se assegurarem de que continuam ali. Reparo no meu rosto. Tem uma cor saudável. Apesar da idade ir avançando, é um rosto sem rugas, apenas algumas finas linhas aparecem quando franzo o sobrolho. Passei a mão pelo cabelo grisalho e virei a cara, estudando-a, como se tentasse descobrir algo. Talvez a barba estilo pêra seja um look forte demais para mim. A verdade é que por mais idade que se atinja, nunca conhecemos ao certo o nosso visual. Todos os dias nadamos na ignorância sobre nós próprios. Mas observando bem, percebe-se o quanto ainda podemos ser. Corpo e alma que se digladiem...

13 comentários:

  1. «Deito uma fugaz vista de olhos para mim próprio no retrovisor, da maneira como as pessoas que conduzem distâncias longas sozinhas têm por hábito fazer, como que para se assegurarem de que continuam ali. (....) A verdade é que por mais idade que se atinja, nunca conhecemos ao certo o nosso visual. Todos os dias nadamos na ignorância sobre nós próprios. Mas observando bem, percebe-se o quanto ainda podemos ser. Corpo e alma que se digladiem...»

    Perfect!

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    1. Querida Alexandra, ainda almeja o perfeito Martini? :)

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    2. i can find it anywhere - without even looking for it - usually in the most unusual places, querido Man With a Chair :)

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  2. Para onde se dirige o senhor Impontual que tanta pressa tem...e sai cedo ainda por cima. Quem sabe chega a dormir mal só de pensar nessa viagem que o satisfaz. Somos cada vez mais como crianças agradadas dos pequenos prazeres. Ou serei eu só. Não interessa. Que atravessar a ponte lhe seja sempre benéfico. E dê a quem o lê o prazer do seu contar.
    Boa noite.

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  3. Corpo e alma que se digladiem... enquanto o ego se mantém em paz e saciado!

    Boa noite, Senhor Impontual.

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  4. "Todos os dias nadamos na ignorância sobre nós próprios." E como eu me afogo nela!

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  5. Esse professor já me deixou mensagem e não surtiu tal efeito, não parti em busca de mim própria:)
    Mas na verdade reconheço que as viagens solitárias, coisa que faço com frequência, também me provocam esse efeito. Outras, fazem nascer coisas novas, ideias, projectos...ou ajudam a resolver nós que ainda não tinha desatado. Quanto às brancas, um dia, hei-de deixá-las aparecer...por enquanto procuro o tom aproximado daquele com que vivi a minha infância (louro escuro dourado é o que diz a caixinha).
    ~CC~

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