Por isso às vezes deixo-me a remoer, mas a minha questão é: não foi este mesmo mundo que alegou que ampliar e difundir massivamente a fotografia de uma criança refugiada morta na praia era a estaca zero da condição humana e que abaixo daquilo já não havia mais nada, que agora aplaude de pé a fotografia vencedora do World Press Photo deste ano, onde o corpo de um embaixador russo jaz aos pés do terrorista que acabara de o assassinar barbaramente à queima roupa enquanto este discursava em directo para as televisões? Até o erro de casting parece ser o mesmo: um dever para despertar a consciência social.
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017
A costureira triste
Um fim de tarde de um tédio absolutamente inconcebível, longe de tudo, incluindo de si mesma, a costureira triste lança as agulhas finas e afiadas num vai e vem enrolado, repetido e certeiro sobre o chifon dourado que há-de ser uma saia de godê simples, uma e outra vez.
Por estes dias, tudo em seu redor se encontra tão imóvel e silencioso que a enrola e adormece. O som da bernina é uma estranha canção de embalar, uma cadência tão melodiosa e tão profunda que parece saída das profundezas do mar. Apenas ouve o coração no exercício da sua única tarefa: bombear o sangue. Parece que a vontade ainda não venceu o frio. E que pode fazer se nada a chama? Se as coisas, alegadamente agradáveis, se atenuam como uma vela que vai ficando sem oxigénio. Uma chama que se inclina diante de uma sombra tridimensional composta por pouco de nada. Essa pequena chama restante, é a vaga sensação que ainda a vai fazendo crer na inevitabilidade do regresso, do reencontro. Mas, por quanto tempo?
Ao sol nascente
Zanele Muholi
Incansável velho louco, Sol atrevido,
Porque vens tu assim
Visitar-nos, através das janelas por entre cortinas?
Devem as estações dos amantes obedecer a teus movimentos?
Miserável descarado e pedante, vai repreender
estudantes atrasados e aprendizes azedos
Vai dizer aos monteiros que o rei sai a cavalo,
Chama as formigas rústicas para as colheitas.
Ao amor tudo é igual, não conhece estação, nem clima
Nem horas, dias ou meses, que são os farrapos do tempo.
__John Done, Ao sol Nascente - Assírio & Alvim
terça-feira, 14 de fevereiro de 2017
Valentinos
Nunca percebi muito bem, se as pessoas que transformam o 14 de Fevereiro numa data especial oferecendo bombons, peluches, perfumes e cuecas aos seus companheiros, o fazem por convicção ou se são românticos de pacotilha com graves problemas de consciência?
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017
Estólidos
"De que te queixas, alma abandonada? Por que razão esse voo agitado em torno da casa da vida? Porque não olhas os longes que te pertencem em vez de lutar contra o que é alheio? Mais vale o pombo vivo no telhado que o pardal semi-morto que, na mão, se debate, crispado de terror.
__Franz Kafka, Antologia de páginas intimas.
Graciela Iturbide
Nem as aves nem os animais são fieis, nem correm o risco de ouvir reprimendas ou sofrerem sanções quando dormem com outros. O sol, a lua e as estrelas projectam a sua luz onde desejam, os navios não são aparelhos para permanecerem nos portos, nem as casas construídas para permanecerem trancadas. As metáforas sucedem-se em cadeia, tocando as suas buzinas como veículos todo-o-terreno num engarrafamento do centro da cidade. Um homem a queixar-se das limitações da fidelidade é uma figura tão inepta!
Quem diz um homem diz uma mulher.
sábado, 11 de fevereiro de 2017
Asilo
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017
Anastassiya Petrov
Jamais falta à visita privada que ele solicita mensalmente. Como sempre, permite que ele, por trás, se derrame dentro de si com urgência cerrada. A ela o orgasmo só lhe vem mais tarde, quando à saída o pesado bater de cada uma das portas gradeadas ressoa em homenagem à sua dupla liberdade.
Entretanto surgiu a emenda.
Entretanto surgiu a emenda.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017
Costa e Silva
É um demónio pequeno, de categoria inferior, com uma grande barriga e um rosto redondo e petulante. A maior parte do dia, esconde-se pelos cantos do seu gabinete, por vezes sentado em cima da sua trouxa, outras vezes coçando as orelhas grandes e afiladas ou metendo os dedos pequenos e grossos no nariz, mas está sempre a observar, sempre alerta. Mais de que qualquer outra coisa, aprecia aqueles erros em que nem os operacionais nem os revisores reparam e que sobrevivem no novo plano sem serem corrigidos, mas lapsos tão significativos são bem-vindos porque dificultam a obra dos homens de Deus. Ao fim da tarde, quando a luz se atenua, recolhe cuidadosamente todos os erros na sua mala e arrasta-os até ao Inferno, para aí os apresentar ao Diabo, de modo a que cada pecado possa ser registado num livro - ao lado do nome do errante responsável - para ser lido em voz alta no dia do julgamento final.
terça-feira, 7 de fevereiro de 2017
Cortinas
De copo na mão, escondido atrás da cortina com a barba por fazer, supõe-se sempre o pior. Entra-se num inferno do qual não se poderá sair sem arranhões. O wiskey que sabe a chuva. O filme continua a rodar: os amantes bebem o molho proibido, amam-se sobre a carpete, sob o chuveiro, no carro, três quarteirões antes de chegar a casa. Fecha-se a cortina. Finge-se adormecido. À dor da consciência soma-se a mágoa incontrolável de não ter imaginação. Tempo ao tempo, é o que lhe sobra. Em cima da cama uma maçã: "atentamente, a cobra".
Dulce Maria Cardoso
“A minha solidão? Alguém viveu o mesmo que eu”.
O Retorno - Edição Tinta da China 2011, seleccionado para o European Literature Night 2017.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017
Arestas
Quem és tu? - perguntou ele.
Quem sou eu? - Ela riu, passou as mãos pelos cabelos. Tinha um rosto arguto.
- Há quem diga que sou uma mulher perversa. Há quem me descreva como uma analista financeira de uma empresa. O meu pai, em tempos, diria que sou a menina dos seus olhos. Não te piques nas arestas da minha personalidade. Não há lugar, nem tempo, para mal-entendidos.
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017
Boletim meteorológico
O vento e a chuva disputando-se para dominar o outro. E quem não for duro será estraçalhado sem sequer ter tempo de perceber onde está. Por baixo de uma fina camada de decoro, que se desfaz a cada sopro ou bátega, uma terrível escuridão.
É de homens e de mulheres.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017
Alerta vermelho
À sua frente conseguiam ver o mar e os penhascos escarpados que se projectavam sobre a água de ambos os lados. Era uma vista que nem um nem outro tinham vislumbrado antes, naquelas circunstâncias. Em qualquer outra ocasião, seria provável que parassem maravilhados para contemplar a basta extensão de água verde-acinzentada e manchada de branco nas zonas onde as ondas, revoltas, se quebravam sem cessar. Mas naquele momento não havia tempo...
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017
Eutanásia
Pode ser um instante. O fim do sofrimento. Uma réstia de dignidade. O derradeiro êxtase num momento de esplendor luminoso, como deve sentir um homem que salta da ponta de uma falésia indo cair sobre rochas longínquas, almofadadas. Ou como um criminoso, atirado para a eternidade pelo empurrão do carrasco, voando sobre o silêncio da multidão vendo tudo, compreendendo tudo, uma luz intensa, um ar calmo, depois o vento a quebrar as ondas sobre a cabeça, a luz aumentando, o corpo a pairar, lá em cima, e a zumbir de dormência. O espírito passeando-se em grandes latitudes. A vida trespassada pelo morno de um último arrepio. Uma hesitação. Uma recusa em voltar. Um renovado calafrio a cristalizar o momento final. O descanso eterno.
Mas... não sei. Tenho dúvidas. Muitas dúvidas. Decidi vós. Decidi bem.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2017
Morrer de amor - breve dissertação
O momento é sempre o mesmo e sempre novo, um instinto forte que anula a memória. Permanecer imóvel no instante, mesmo no coração do corpo, o lugar do princípio e do fim, agarrá-lo ali, a destempo, movermo-nos suavemente em toda a calma da carne, degustar de novo aquele instante trémulo, suste-lo, conhece-lo, saborear e deixá-lo soltar-se, o passarinho que retemos, o seu coração martelando na concha da mão, lançado livre para o ar. A morte há-de chegar da mesma forma, a tensão abandonando o corpo, em dor e não nesta doçura, mas uma última vez, o círculo que se completa, sem nunca ter de voltar atrás para agarrar o momento fugidio que é sempre igual, sempre em voo.
sábado, 28 de janeiro de 2017
Qwerty
Tem tudo para escrever a sua saudade. As letras
perfeitamente alinhadas, os dedos inclinados sobre as teclas, o silêncio da sua
voz, a nostalgia humedecendo-lhe a boca, a pele recordando-lhe caricias, a
música invadindo-lhe o mais recôndito e profundo patamar do âmago. Mas, não. A
página continua em branco como que a iludir a ausência. Não há palavras para
desenha-la. Apenas umas palpitações electrizantes no corpo todo. Um ou outro
soluço intermitente. Uma teimosia pacifica.
sábado, 21 de janeiro de 2017
Constança
Há um odor a vida nova, insistente, a libertar-se da sua pele, o cabelo a ondular como uma anémona-do-mar, o desejo a formar-se a partir do nada, do ar. Da mente, prisioneira de todos os anseios, há uma luz a projectar-se e as sombras crescendo em seu redor, tremeluzentes, fugidias, abraçando o agora e o nunca, cristalizando todas as células na incerteza se resistirá ao choque da noite morna e escura a dar lugar à luz branca da manhã fria. No espelho, uma ausência que se pronuncia.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2017
Ainda por outro lado
...pegava agora mesmo na Nikon F60 analógica, introduzia um rolo 400 ISO e sairia ao seu encontro para fotografar em pormenor, mas com pouca luz, aquele corpo maduro completamente despido. Os seus ombros redondos e tonificados. A sua penugem de pêssego. Embriagar-me-ia no leve odor das suas axilas. Captava cada um dos sinais que tem nas costas. Registaria os seus cabelos de um ruivo muito suave bem como aquelas nádegas que são de um branco leitoso. Tomaria nota das marcas ali deixadas pelo aperto das minhas mãos, da vermelhidão e da velocidade com que a mesma desaparece. Sentiria o peso e a maleabilidade inesperados do seu peito quando se deita de costas, do tom suavemente corado dos seus mamilos e da forma como reagem ao mais leve dos toques. O umbigo delicado. O glorioso contraste entre o branco de porcelana da sua pele e o negro, como tinta permanente, dos pêlos púbicos que não são nem espessos nem finos. Guiaria as suas pernas, afastando-as, para lhe explorar o interior. A sua maturidade. A cor. O pulsar. Colocaria a cabeça entre as suas coxas e teria a noção da sua perfeição, sentindo o calor que daí emana como se saísse de uma fornalha intrincada... fechando-me por completo ao mundo exterior.
Mas não vai dar. Está um frio de rachar.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
Por outro lado...
Gianni Berengo Gardin, "Il bacio di Venezia"
segunda-feira, 16 de janeiro de 2017
Trilho
Gianni Berengo Gardin
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